Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 30 de junho de 2019
4480) O Bicho do Mazagão (30.6.2019)
Quem se interessa pelos monstros que povoam o nosso inconsciente coletivo deve consultar um dos livros mais importantes dessa nossa memória cultural.
Geografia dos Mitos Brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo, é um registro precioso de histórias de monstros, assombrações e criaturas sobrenaturais por todo o Brasil. Inclusive transcrevendo -- o que é muito importante -- o texto dos relatos originais, muitos deles dos séculos 18, 19 etc
Aqui se fala de Lobisomem, Mula Sem Cabeça, Curupira. Fala-se também de outros mitos menos conhecidos: a Onça-Boi...a Cobra de Asas... o Arranca-Língua... o Mão-Pelada... o Pé de Garrafa...
Muitos desses bichos foram abordados na literatura de cordel. Existem no entanto outros monstros que a gente imagina que só existem em outros países, outros continentes. O Pé Grande, ou Big Foot, é um monstro que faz parte do imaginário da América do Norte mas que não é muito citado aqui no Brasil.
O Pé Grande também é chamado Sasquatch, e é descrito como uma criatura coberta de pelos, que caminha ereta, tem cerca de 2 a 2,5 metros de altura. Ganhou o nome Pé Grande porque suas pegadas chegam a meio metro de comprimento.
Muita gente considera que Chewbacca, o famoso ajudante de Han Solo na série Star Wars, seria um Pé Grande interplanetário.
Voltando à literatura de cordel: eu considero ser um Pé Grande a criatura descrita neste folheto de grande importância histórica: O Bicho do Mazagão, escrito por Rosil Cavalcanti, nosso grande compositor gravado por Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marinês e muitos outros.
O folheto de Rosil foi impresso na Gráfica de Júlio Costa, e traz a data na capa: Campina Grande, maio de 1964. Talvez sua publicação tenha sido incentivada pelas celebrações do Centenário da nossa cidade, acontecido nesse ano.
Que eu saiba, é o único folheto publicado por Rosil. Um folheto de 44 páginas, em septilhas (estrofes de 7 linhas). Muito bem escrito, métrica correta, rimas perfeitas, tudo à altura das excelentes letras de músicas assinadas por Rosil Cavalcanti.
O poeta afirma, logo nas primeiras páginas:
O versejar não é fácil
como pensa muita gente;
o leitor compra o folheto
sem parecer exigente
em casa lê a história
grava tudo na memória
mas não é isso somente.
A história tem que ser
bem contada, na verdade,
pode até ser fantasia
pode ser realidade
mas não pode à criação
faltar imaginação
e nem continuidade.
O poeta às vezes falha
por uma rima forçada,
pra não perder o sentido
da idéia já pensada;
porém isso se dispensa
pois rima certa compensa
a rima desmantelada.
É uma boa reflexão, de quem já pôs a mão na massa.
Rosil refere que a história se passa nas matas do Piauí, na fronteira com o Maranhão, “na Serra da Catruzama, vizinha do Pindurão; estão ali situadas as terras do Mazagão.”
O herói chama-se Antão, é um rapaz disposto e trabalhador que ouve falar de um bicho monstruoso capaz de estraçalhar todo um destacamento de soldados mandado à sua procura. Antão vai ouvir o depoimento do Cabo Zé, único sobrevivente do confronto, que diz:
Era um monstro terrível
de quinze palmos de altura
eu estava bem sentado
numa forquilha segura
quando vi o bicho andando
ia quse desmaiando
já mudando de figura.
Me segurei bem seguro
pra ver o bicho perfeito
era grande, feio, forte,
não caminhava direito
estava assim, adiante
tinha tudo dum gigante
descomunal e sem jeito.
(...)
Sentindo faro dos cabras
ele foi pra gameleira
passava quebrando tudo
deixava atrás a esteira
ia babando, raivoso,
dando grunido horroroso
e com forte rosnadeira.
Aqui, acolá batia
com as mãos no corpo nu;
tinh catinga de enxofre
parecia Belzebu,
todo preto e cabeludo
cabeça grande, testudo,
e força de boi zebu.
O Cabo Zé estava trepado em cima de uma árvore e foi o único que escapou para contar a história. Antão escuta o relato, e pede uma descrição mais detalhada:
Agora diga, seu Cabo,
esse bicho como é.
Prontamente disse o Cabo:
“O bicho anda de pé
tem quinze palmos de altura
tem quse seis de largura
e dentes de jacaré.
“Os braços passam dos joelhos
as orelhas são compridas
os olhos são luminosos
as unhas muito crescidas
as mãos grandes pra danado
o nariz muito achatado
as pernas descomedidas.
“Da cabeça até os pés
ele é todo cabeludo
lustroso na luz da lua
que se parece veludo
é ronceiro no andar
barulhento no pisar
passa por cima de tudo.
“Quando rosna lá na mata
estronda toda a quebrada,
dos dois buracos da venta
sai fumaça avermelhada
andando vinha grunindo
os dentes todos rangindo
tem a cara esbranquiçada.”
Antão, resolve enfrentar o bicho sozinho, e vai direto para o local da refrega. E o poeta Rosil descreve:
Seguiu o rastro no chão
em direção ao nascente:
a marca do pé do bicho
era grande, diferente,
comprido, largo e bem cheio
de palmos, deu dois e meio
não era pé de vivente.
Não vou dar spoiler do final, até porque o confronto físico entre os dois se estende por várias páginas.
Será que o Bicho do Mazagão é o mesmo Pé Grande dos Estados Unidos? Não importa. Os dois existem na imaginação coletiva, e cada relato desse tipo traz mais uma camada de imaginação, de fantasia, de medo e de confronto com o medo... que é um medo de todos nós.
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