Todo mundo sabe que no Cemitério
das Profecias Apressadas o túmulo dos que preconizaram o fim da poesia com métrica
e rima fica a apenas duas aléias de distância do mausoléu dos que decretaram o
fim da pintura figurativa.
Modernismos literários à parte, a
poesia de forma fixa continua a ser praticada no mundo inteiro, convivendo em
paz com as formas mais recentes, que incluem a poesia não-discursiva, a poesia
visual, o poema-objeto, o poema-performance, e por aí vai.
Rimar é como dançar. Exige intuição
e exige técnica. Para efeito deste artigo vou considerar apenas a chamada rima
exata ou rima consoante, onde as duas
palavras que rimam precisam ter som igual a partir da vogal da sílaba tônica
(rima / prima; tônica / eletrônica; precisa / camisa, título / capítulo; etc).
É diferente da rima toante, em que
basta haver uma certa semelhança entre os sons: longe / onde; olhos / relógios;
estrada / mata. Em geral, a rima toante se funda na vogal tônica, que é a
mesma, como nos exemplos anteriores, ou parecida, como nestes: automóvel /
ouro; quente / parede; profundo / pulso.
O Rei da Rima Toante chama-se João
Cabral de Melo Neto.
O poeta é o dono do seu poema.
Ninguém o obriga a nada. Quando põe o lápis no papel ou o dedo no teclado, ele
é livre para escrever palavras até de cabeça para baixo, se quiser (Carlos
Drummond já o fez, em “Amar/Amaro”).
Acontece, no entanto, que nessa
Metrópole da Liberdade Absoluta existe uma região chamada O Bairro das Formas
Fixas, como o soneto, o hai-kai, a sextilha, a décima... São fixas porque o
prazer de cultivá-las está nas regras que devem ser seguidas. O jogo poético tem
um componente de desafio técnico. Grande parte da sedução dessas formas
poéticas é o esforço de estar à altura de uma exigência radical. A prática das
formas fixas é uma espécie de esporte radical poético. Não é para qualquer um.
É para quem pode.
O poeta que usa essas formas
precisa mostrar que as conhece e as domina, tal como um músico que empunha o
violão ou senta ao piano deve mostrar domínio do instrumento. Sem isso,
dificilmente ele vai produzir algum efeito estético.
As palavras que rimam são utilizadas
pela semelhança de som. O poeta inexperiente, que tem pouco vocabulário, tende
muitas vezes a terminar uma linha com uma palavra qualquer e, ao chegar na próxima
linha onde a rima deve aparecer, colocar no papel a primeira rima que lhe vem à
cabeça. O poema é romântico. Ele diz à amada: “Eu te amo, e por isso estou
aqui”. Mais adiante, precisando de algo que rime com “aqui”, vê-se obrigado a
enfiar no poema um abacaxi ou um índio guarani, que não têm nada a ver com o
que está sendo dito. Estão ali somente para não perder a rima. É o que chamamos
de rima forçada, rima apelativa, usando palavras que entraram no poema como
Pilatos no Credo.
A
palavra que rima está sendo usada pelo som, mas é preciso fazer com que pareça
estar sendo usada pelo sentido. Como se nenhuma outra palavra pudesse ter
sido colocada ali, a não ser aquela, que, aliás, vejam só a coincidência! –
rima exatamente com a palavra de uma ou duas linhas atrás.
Vi uma discussão sobre aquela
antiga canção, “Mamãe” (Herivelto Martins, David Nasser e Washington Harline), que
diz:
Mamãe, mamãe, mamãe...
Eu te lembro, chinelo na mão,
o avental todo sujo de ovo...
Se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe,
começar tudo tudo de novo.
É evidente que o letrista queria
encerrar a canção com estas duas últimas linhas, certamente as primeiras que
ele pensou para este trecho. Ele precisava de uma palavra que rimasse com
“novo” – e que se encaixasse no contexto. Podia ter usado povo, louvo, comovo... A solução encontrada (que
alguns contestam) me parece boa, porque o avental sujo de ovo se encaixa
perfeitamente na memória de infância proposta pela letra. A palavra fornece a
rima, mas também tem tudo a ver com o assunto.
Palavras que têm poucas rimas
forçam o poeta (ou o letrista de música) a repetir eternamente um pequeno
repertório. Uma passada de olhos pela música popular brasileira nos mostra que
o uso da palavra samba acaba levando
os autores a se referir a muamba, corda bamba, a corda e a caçamba e assim por diante. A palavra Brasil, curiosamente, tem centenas de
rimas possíveis, mas alguma pressão cívica empurrou inúmeros poetas ao uso de varonil, céu de anil, eventualmente fuzil
ou cantil.
Drummond já abriu um poema
(“Consideração do Poema”) anunciando: “Não
rimarei a palavra sono / com a incorrespondente palavra outono”. Drummond
nunca foi inimigo da rima. Rimou fartamente ao longo de sua obra, mas esse
pontapé na mesa era para que as rimas fossem pensadas, e tivessem uma motivação
maior além da mera sonoridade. Ou seja – que parecessem estar ali não pelo som,
mas pelo sentido.
Pode-se falsificar uma rima? Há
exceções? Claro, e exceções ilustres. Um caso clássico de rima apelativa foi
produzido por Victor Hugo, no seu poema de tema bíblico “Booz endormi” do livro
La Légende des Siècles (1855-1876). Dizia ele:
Tout reposait dans Ur et dans Jérimadeth ;
Les astres émaillaient le ciel profond et sombre ;
Le croissant fin et clair parmi ces fleurs de l'ombre
Brillait à l'occident, et Ruth se demandait, (…)
(Em tradução rápida, ou seja, sem
pretender reproduzir todos os efeitos do original:
Tudo estava em repouso em Ur e em Jérimadeth;
os astros cravejavam o céu fundo e sombrio;
o crescente fino e claro, entre as flores da sombra,
brilhava no ocidente, e Ruth se inquiriu...”
Muitos críticos se dedicaram a
buscar essa referência geográfica à cidade de Jérimadeth, até que se percebeu
que era um trocadilho do poeta com “J’ai rime à deth”, “eu tenho uma rima para deth”. Rimas inventadas para “quebrar o
galho” de um autor não são coisa rara, mas o fato disso ser feito pelo maior
poeta francês não apenas legitima em parte o processo, mas aos meus olhos deixa
o poeta, que era tão sisudo, com uma imagem mais bem-humorada e simpática.
Muitos poetas, antes de começar a
redigir uma estrofe, fazem uma pequena lista das rimas possíveis. A lista de
rimas é um pequeno mapa dos caminhos que ele poderá percorrer para dizer o que
pensa. Ações metódicas como esta não comprometem a espontaneidade da escrita.
Pelo contrário: mostrando antecipadamente as alternativas, ajudam a escrita a
fluir de modo mais espontâneo, e deixam o poeta mais seguro, já sabendo por
onde pode passar para chegar ao objetivo.
Se o poema vai ter rima obrigatória,
não custa nada fazer antes uma lista de palavras com essa rima. E procurar
entre elas as palavras que pareçam mais naturais, que desenvolvam o assunto da
melhor maneira. É preciso evitar o perigo da primeira rima que vem à cabeça. Geralmente
é ruim.
Por toda parte vemos poemas onde o autor,
escrevendo meio de improviso, põe no fim do verso uma palavra com poucas rimas.
Digamos que ele escreveu “cinza”. Agora, por causa disto, precisa escavacar a
memória atrás de uma rima correta, e só acha “ranzinza” – e aí vai ter que
encaixar essa palavra tão específica dentro do assunto que vinha tratando. Às
vezes, dá. Geralmente, não. É aquele caso de “pintar o piso e se encurralar num
recanto”. Fica sem escolhas.
Lembrei aqui de um desafio na comunidade Cordel do finado Orkut. A brincadeira era fazer um mourão de sete pés, onde o primeiro chegava com as duas primeiras linhas, logo vinha o segundo com mais duas, e um terceiro (ou o primeiro mesmo) arrematava com as três finais. Eis que surge um: "Quero ver o bom poeta / que venha a rimar com cinza". E logo veio outro: "Não diga o que já sabemos / Dizendo que eu sou ranzinza" Repara só no desfecho que algum abençoado encontrou: "Comprei um monza cinzento/ Mas erraram o documento / Escreveram conza minza" Achei genial, haha.
ResponderExcluirUma vez empurraram esta mesma rima pra Geraldo Amâncio e ele contou que uma velha ranzinza em vez de escrever "camisa" só escrevia "caminza"... Drummond também inventou uma saída coringa para este tipo de aperto: ... e faltou a rima em "inza" (ou "ar, "ento", "isco", etc.)
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