quarta-feira, 29 de maio de 2019

4471) A fórmula do Sitcom (29.5.2019)




("The Big Bang Theory")

A gente às vezes critica um determinado tipo de criação dizendo que ele é formulaico, ou seja, que ali não existe criatividade mesmo, não existe inspiração, existe apenas a aplicação de uma fórmula pré-existente.

Tudo bem, mas deixando isso de lado podemos considerar também que a aplicação de uma fórmula também requer criatividade e inspiração. É como cozinhar. Você vai preparar um “filé ao molho gorgonzola com recheio de legumes flambados ao mel”. No livro tem a receita, ou seja, a fórmula. Basta seguir ao pé da letra o que está escrito? Em princípio sim, mas para o prato ficar bom é preciso que entre no preparo aquela coisa indefinível que a gente chama “a mão da cozinheira” ou “o toque pessoal do chef”. Que é uma forma de criação. Para além da fórmula.

Noah Charney é um escritor e roteirista norte-americano morando na Eslovênia (em 2014), e que recebeu uma encomenda da TV da Croácia para escrever um sitcom. Certamente naqueles países eles pensam que todo francês sabe cozinhar, todo brasileiro toca cuíca e todo norte-americano sabe escrever um sitcom.

“Sitcom” é a abreviatura de “situation comedy”, comédia de situações, aquela série infindável de historietas envolvendo sempre o mesmo grupo de personagens.

Noah sentou o pau a estudar os sitcoms disponíveis e chegou a uma fórmula que, segundo ele, está presente em todos os sitcoms de sucesso. Coloco aqui abaixo o link para o artigo onde ele esmiúça essas coisas com mais detalhes.


Para ele, um episódio de sitcom, qualquer um, tem tipicamente 22 minutos, com um roteiro de 25-40 páginas.

São dois atos curtos, um no começo e outro no fim, e três atos principais, divididos por dois breaks, com 3-5 cenas por ato, e ele os nomeia assim:

1)      A Isca (“The Teaser”) (minutos 1-3)
2)      O Problema (“The Trouble”) (minutos 3-8)
3)      A Embrulhada (“The Muddle”) (minutos 8-13)
4)      O Triunfo/Fracasso (“The Triumph/Failure”) (minutos 13-18)
5)      A Resolução (“The Kicker”) (minutos 19-21)

A parte 1, a Isca, prepara o conflito enquanto faz uma breve reapresentação dos personagens, porque embora o sitcom seja o império do Nada Se Transforma, sempre há novos espectadores que precisam entender quem é quem naquela história, e como se comporta cada um.

A parte 2, o Problema, introduz a aventura daquela noite. Um sitcom bem sucedido é aquele que consegue, durante anos a fio, bolar situações novas, problemas, aventuras, surpresas, que permitam aos personagens exibir seus recursos de esperteza, além de experimentar novos conflitos, etc.

A parte 3, a Embrulhada, vem complicar ainda mais as coisas, e aqui aparece a necessidade de uma sub-trama, uma história B que corre em paralelo com a história A, para que a narrativa possa saltar de uma para outra, o que dá mais dinamismo.

A parte 4, o Triunfo ou Fracasso, mostra como os personagens conseguem ou não conseguem resolver o problema inicial da parte 2 e as embrulhadas surgidas na parte 3.

A parte 5, a Despedida, é um encerramento, uma “coda” musical. O clímax propriamente dito é na parte 4, mas uma narrativa deste tipo não se encerra num clímax: é preciso que haja aquela cenazinha em que, depois que tudo acabou, os personagens se reúnem novamente naquele clima de “ufa, ainda bem”. O diálogo dá informações necessárias à amarração final das pontas soltas, tudo termina com uma piada e imagem congelada, ou então com o prenúncio de um novo episódio.

Isso funciona? Claro que funciona, desde desenhos animados como Os Simpsons até comédias urbanas como Friends ou Seinfeld.

Por mais que dramaturgos mais sofisticados condenem a presença dessas fórmulas repetitivas, usá-las com eficiência nao é nada fácil, justamente porque elas impõem sempre a mesma dinâmica na evolução da ação.

O espectador tem noção disso, e está satisfeito com isso. Quem se “gruda” numa série é porque gosta da fórmula da série, sente-se confortável com ela, quer “um pouco mais daquilo mesmo”. E quer novidades, é claro: novas situações, novos problemas, novos ambientes, novo personagens secundários, novas piadas...

Contanto que a fórmula se mantenha inalterada, e o espectador sinta-se, a cada vez que começa um episódio, dentro de uma zona-de-conforto dramatúrgica onde ele não sabe o que vai acontecer, mas sabe que vai acontecer do mesmo jeito de sempre, um jeito que ele aprendeu a decodificar sem muito esforço.










domingo, 26 de maio de 2019

4470) Eu me Lembro - XV (26.5.2019)




1
Eu me lembro de quando minha Tia Adiza começou a comprar para mim, por volta de 1959, pelo Reembolso Postal, a coleção das Obras Completas de Conan Doyle (Edições Melhoramentos, a coleção vermelha/azul/verde), e me levava no Correio para que eu tivesse o gosto de receber pessoalmente o pacote (vinham 2 livros por mês). E me lembro de ir lá de novo em 1974, para receber livros de Jorge Luis Borges da Ed. Emecé, no mesmo balcão, no mesmo guichê, à esquerda de quem entra.





2
Eu me lembro de quando eu tocava nos Sebomatos (portanto foi em 1969) apareceu em Campina um dinâmico produtor que dizia se chamar John Louis, ou Johnny Lewis, já que nunca vimos o nome dele por escrito; vinha vender um show de Bob Lester, o cantor de rock e sapateador, acho que já sessentão, naquela época. Precisava de uma banda local para acompanhar o ídolo, e tinham indicado a gente. No espaço de 24 horas arranjou-se divulgação, ensaio, o Teatro Municipal, uma venda de ingressos da qual não faço idéia, porque tudo que a gente queria era tocar num palco de verdade, e cantar em microfones (a gente tinha guitarras e amplificadores, mas ensaiava na guela). O sucesso foi absoluto e felliniano.





3
Eu me lembro dos bichos empalhados que tinha na vitrine da loja Palacinho da Criança, onde minha mãe e minha tia levavam a gente para admirar, ali numa transversal da Maciel Pinheiro. A loja era pequena, mas a vitrine tinha os bichos em pose bem real e uma iluminação meio mágica. Vizinho à loja ficava o caldo de cana de Hipólito, onde quinze anos depois ficaria exposta a foto dos Sebomatos, porque o fotógrafo era Telmo.





4
Eu me lembro do dia em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 62, porque na de 58 eu não era torcedor ainda. Agora já. Me lembro depois do fim dos 3x1 sobre a Tchecoslováquia (era um país que tinha naquele tempo) eu parado no terraço da casa dos meus pais no Alto Branco, olhando à minha frente o perfil completo da cidade enquanto ela pipocava em foguetões, chega parecia uma purpurina rebrilhando. Lembro de uma crônica de alguém que li na época celebrando a vitória, que foi de virada: “...o tímido sorriso de esperança com o gol do empate, de Amarildo; a alegria esfuziante do gol de Zito; e o grito uníssono de vitória com o terceiro gol, de Vavá”.





5
Andei relendo uns livros da saudosa Coleção Futurâmica, das Edições de Ouro. É uma pulp fiction tipo filme B. Vai do pior clichê à coisa mais inesperada e tem pelo menos um livro genial: “A Cadeia das 7” (La Mort Vivante) de Stefan Wul, e os paradoxos temporais de F. Richard-Bessière. Lembro de quando os livros de bolso começavam a ser vendidos em Campina, a partir de 1959. Meu box preferido era um da parte de trás do Abrigo Maringá, lá dentro mas virado para a praça. Surgiu nessa época aquele tipo de display de metal giratório, com escaninhos onde se podiam amontoar vários títulos. Depois, já em meados dos anos 1960, abriu a poucos metros dali, nas primeiras portas da descida da Irineu Joffily, virada para o Capitólio, uma lojinha montada pelas próprias Edições de Ouro. Era um espaço minúsculo e muito bem aproveitado, forrado de escaninhos de alto a baixo.





6
Eu me lembro dos tempos do Cineclube de Campina Grande em que a gente programava filmes que só eram disponíveis nas distribuidoras do Recife. A gente reservava o aluguel por telefone. No dia da exibição (que era à noite) um de nós pegava o ônibus de manhã para o Recife, chegava lá 4 horas depois, ia a pé da antiga Rodoviária para a distribuidora, que ficava perto do Mercado São José. Se identificava, pegava o filme, que era uma caixa de madeira, com alça de couro, amarrada com tiras de couro e fivelas, trazendo no interior 2 ou 3 rolos de película em 16 mm. Voltava para a Rodoviária, pegava o ônibus de volta, chegava em Campina no fim da tarde. O filme era exibido à noite, e no dia seguinte outro de nós refazia o mesmo trajeto, devolvia o filme e pagava o aluguel. E me lembro que um dia um dos gêmeos (Rômulo ou Romero Azevedo) ficou preocupado porque carregando a caixa na rua cheia de gente, bateu com ela e quebrou a lanterna traseira de um carro estacionado. (Só falta agora aparecer o dono do carro e cobrar a indenização.)





7
Eu me lembro que logo no começo do Cineclube de Campina Grande a gente fez um convênio com o Colégio das Damas (que tinha auditório e projetor) para fazer sessões de Cinema de Arte ali. O primeiro filme exibido, depois de acaloradas discussões diante dos panfletos das distribuidoras (que naquele momento só tinham filme fraco) foi Ato de Misericórdia, de Anatole Litvak, um filme de guerra preto-e-branco do qual não lembro rigorosamente nada. O público deu algo em torno de 10 pagantes. Novas discussões acaloradas, em que condenamos o elitismo de nossa escolha. Na semana seguinte, passamos Louras, Morenas e Ruivas, com Elvis Presley, e deu 5 pessoas.









quarta-feira, 22 de maio de 2019

4469) O palhaço do mundo em preto e branco (22.5.2019)




Chaplin é o palhaço do cinema em preto-e-branco.  Seu visual surgiu com o cinema, e é difícil conceber que pudesse ter nascido no teatro apenas, e menos ainda no circo.  

A balança visual do teatro e do circo pende para um mundo necessariamente colorido, brilhante, reluzente.  Palhaços de circo, mesmo dos circos mais mambembes, circo tomara-que-não-chova, circo que só tem um pano-de-roda, orgulham-se de suas roupas em cores berrantes, costuradas em cetim barato, em faíte, em qualquer pano lustroso que realce seu cromatismo de pintura primitiva.

Carlitos surge no “mundo fantasmo” do cinema preto-e-branco, do cinema puro.  Um cinema que era como se a própria fotografia recém-inventada já começasse a se mexer por si mesma.  Um mundo sem cores, mas com todos os tons de cinza; e onde o branco não é somente branco, mas um branco luminoso, coruscante, prateado.  E onde o preto costuma se esfarelar como se fosse pó de carvão ou borrifozinhos de nanquim.

O mundo fantasmagórico de onde brota Carlitos é esse mundo granulado como na retícula dos velhos clichês de zinco, com aquele seu gradeamento infinitesimal de pontos negros maiores ou menores.   É como se essa pulverização nos mostrasse um universo feito com os átomos do preto e do branco, misturando-se, separando-se, em torvelinhos que se unem e se apartam, e vão sugerindo aos nossos olhos imagens toscas mas reconhecíveis.  Uma estética visual que tem doses iguais do pontilhismo impressionista e dos contrastes toscos das gravuras dos romances populares.

É nesse mundo de lanterna mágica que Carlitos brota.  Um mundo silencioso como o mundo dos sonhos, onde sempre parecemos estar embaixo dágua. 

Um mundo, como registra Sarte em suas recordações de infância, feito de “...um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada.” 

O cinema preto e branco era de fato um chuvisco permanente, uma poeira de trevas e de estrelas, e nele não haveria lugar para os arlequins e os saltimbancos da comedia dell´arte, com seu colorido básico de histórias em quadrinhos e de estampas populares.

A frustração que sentimos quando vemos algumas tentativas contemporâneas de reconstituir esse período é que falta-lhes essa qualidade – não sei de melhor descrição que o verso de Cruz e Sousa – “pulverulentamente nebulosa”. 

A nitidez dos filmes de hoje nos parece insatisfatória, mesmo em reconstituições de época impecáveis como a de Scorsese em “Gangs de Nova York”.  Por um lado, é aquele, sem dúvida, o ambiente social e econômico onde viveu o vagabundo de Chaplin; sabemos que são aqueles os pardieiros em equilíbrio precário, as ruas enlameadas, os botequins, as cabeças-de-porco.  Mas tudo ali está fotografado com uma nitidez supérflua e mesmo incômoda.  Na nossa memória, aquele mundo não era assim.   Era um mundo sem substância, um mundo que aos nossos olhos infantis parecia feito de açúcar e pó de café.

Nesse mundo, Carlitos parecia mais real que o resto, mais real que as ruas, mais real que o rio de fubicas resfolegantes que se entrecruzavam nas avenidas.  A cadência frenética dos 16 quadros por segundo realçava os deslocamentos meio espasmódicos daqueles habitantes de um universo que pela primeira vez via-se obrigado a mover-se mais depressa, mais depressa.  Era tudo uma coreografia de esbarrões, ultrapassagens, gente colidindo, carros tirando fino, jatos dágua, nuvens de poeira. 

Já eram as esteiras rolantes de “Tempos Modernos” que punham aquelas cidades em movimento, e no meio delas deslocava-se o pequeno lorde esfarrapado, o bom malandro janota, o “barão da ralé”, com roupas que pareciam não ser suas, a jaqueta muito acochada, as calças frouxas demais, os sapatos marca O Defunto Era Maior, o chapeuzinho equilibrado no coco. 

Ele todo preto e o rosto todo branco, xilográfico, caligaresco, o bigodinho rimando com a gravata borboleta.  O habitante arquetípico daquele mundo de luz e sombra, um mundo que nunca existiu, mas que sobreviverá, com ele, a este mundo colorido onde existimos agora.


(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Continente Multicultural, Recife, ano III, # 33, dezembro 2003)









segunda-feira, 20 de maio de 2019

4468) "Juntos e Shallow Now" (20.5.2019)



Tem sido muito comentada uma canção recente, regravada no Brasil por Paula Fernandes e Luan Santana: “Juntos e Shallow Now”. A canção original, que concorreu ao Oscar deste ano, é “Shallow”, gravada por Lady Gaga e Bradley Cooper para o filme Nasce Uma Estrela.

A versão brasileira foi ridicularizada nas redes sociais. Mostra um lado arriscado e difícil da arte de fazer a versão para uma canção em outra língua. 

Vivo dizendo aqui neste blog que fazer letra de música é mil vezes mais difícil do que fazer um poema. Me parece óbvio. No poema, o poeta determina as regras, e tem 100% de controle sobre o produto final. Quem não gostaria de trabalhar num regime tão livre? Eu pelo menos gosto, e muito.

O poeta é o dono do poema. Se ele quiser usar métrica usa, se não, não. Se quiser fazer versos rimados ou brancos, ele é quem decide. Pode empilhar palavras, pode escrever tudo em caixa alta ou tudo em caixa-baixa, pode citar trechos em latim ou grego, pode usar gíria, pode escrever as palavras de cabeça para baixo (Carlos Drummond já o fez).

Já o letrista trabalha sabendo que seu texto não é o produto final: é um elemento a mais que precisa se encaixar num processo mais longo, onde surgirá uma melodia, um conjunto de progressões harmônicas, um ritmo, a voz do(a)(s) cantore(a)(s), o timbre dos instrumentos...

Um poema é 100% de si mesmo. Uma letra de música é uma fatia bem menor da obra de arte (ou de entretenimento) que ajuda a construir.

O que dizer, então, de uma versão? Muito mais difícil. É preciso dizer em português o que foi dito (no caso) em inglês, com palavras de extensão e de sonoridade totalmente distinta, com vogais e consoantes diferentes.

E repito aqui o que repito sempre: na poesia, e mais do que na poesia, na letra de música, a sonoridade é crucial. O sentido, o significado das palavras, corre em paralelo – e digo isto com plena consciência de que a maior parte da humanidade só enxerga nas palavras o significado, e não presta atenção na sonoridade delas.

As pessoas podem até ter ouvido musical quando ouvem um instrumento tocando, mas perdem esse talento quando escutam palavras. Ficam musicalmente daltônicas. Por que? Porque ninguém lhes disse que as palavras que ouvimos são feitas primeiro de som, e só depois de sentido.


O filme Nasce Uma Estrela é, se não me engano, a terceira ou quarta refilmagem da mesma história: já assisti duas delas, uma com James Mason e Judy Garland, e outra com Kris Kristofferson e Barbra Streisand.

É aquela história (que já foi muitas vezes à lavanderia, mas ainda tem muitas refilmagens pela frente) do cantor famoso, encanecido e problemático que se apaixona por uma cantora jovem, anônima, brilhante e cheia de amor pra dar. Ajuda-a a fazer sucesso, e depois se desestrutura quando se vê eclipsado por ela.

A canção (pelo que se diz – não vi o filme) surge no momento em que os dois decolam na relação, tanto amorosa quanto profissional. É aquela canção que faz avançar a narrativa, algo que os norte-americanos sabem fazer tão bem (quando querem).

Aquele momento da relação em que duas pessoas se olham pra valer e perguntam: Tá a fim mesmo? Quer ir até onde der? Tá sabendo o que vem pela frente? Tá disposta a encarar a responsabilidade? Então bora.

A parte mais interessante de toda a letra é justamente a teia de significados que eu, pelo menos, enxergo em torno da palavra-título, “shallow”, que significa basicamente “raso; a parte rasa de alguma coisa” (água, por exemplo).

A letra diz:

I'm off the deep end, watch as I dive in 
I'll never meet the ground. 
Crash through the surface, where they can't hurt us 
We're far from the shallow now.


O que ao pé da letra daria, mais ou menos:

Já passei dos limites, veja como eu mergulho
nunca vou tocar o chão.
Rompendo a superfície, onde eles não podem nos machucar,
estamos longe do raso agora.

Posso estar me confundindo, mas vejo uma série de ambiguidades interessantes nesse trecho (o resto da letra é banal). Estar “off the deep end” significa algo como chutar o pau da barraca, mas o uso da expressão “deep end” (literalmente, “a parte mais funda”) faz a letra derivar para metáforas de água, mergulho, etc.

Dizem que numa versão anterior do roteiro o personagem de Bradley Cooper morria afogado, e talvez a lembrança desse detalhe, mesmo descartado depois, tenha arrastado a letra para essa área semântica.

A autora (imagino que seja Lady Gaga a principal autora da letra) fala em mergulhar sem tocar o chão (ou seja, um mergulho na parte funda, na parte segura), mas ao mesmo tempo lembra que agora eles (os amantes) estão longe do raso. Nadar no fundo é tão perigoso quanto mergulhar no raso e bater com a cabeça no chão.

Ainda na mesma área semântica é bom lembrar uma expressão muito usada no inglês quando a pessoa quer dizer que está numa situação desconfortável, insegura, perigosa: “I am out of my depth”. Estou fora da minha profundidade (adequada). Estou num lugar fundo demais, num lugar onde não dá pé. Corro o risco de me afogar.

Pra mim, essas linhas são a parte mais interessante da letra original. E é justamente para essa parte que a versão (que imagino ter sido feita por Paula Fernandes) não conseguiu achar um equivalente satisfatório.



Deveria ter sido este o primeiro desafio. Se me pedissem uma versão, seria essa palavra, “shallow”, que eu tentaria transpor, porque sem ela, não existe letra. Mas a sonoridade de “shallow” é meio rara em português. “Achá-lo”? Não. “Falo, calo?” Acho que não. E principalmente com esse “now” logo em seguida. Onde achar alguma coisa que cubra esse “xalonáu”, e que abra as mesmas possibilidades de múltiplo sentido?

Como é difícil, a versão em português decidiu deixar como estava, mesmo ao preço de, na balança entre o som e o sentido, dar 100% ao primeiro e zero para o segundo. Uma solução pouco adequada.

Aconteceu com o(a) autor(a) dessa versão aquela situação para a qual o inglês também tem uma expressão muito saborosa, quando diz: “He painted himself into a corner”. Ou seja: “Ele pintou o piso e se encurralou num recanto”. É quando a pessoa entra numa situação sem saber como vai sair, ou começa a resolver um problema e deixa a parte mais difícil para encarar no fim (e não consegue).

Tem mais uma coisa – e aí voltamos àquele papo de que na música popular o Som é tão importante quanto o Sentido.

A palavra escolhida na letra original, “shallow”, acaba induzindo o compositor (pelo que li, a música foi feita por Lady Gaga ao piano e três parceiros ao violão, todos dando idéias ao mesmo tempo) àquele efeito vocal que todo mundo conhece, o famigerado “sha-la-la-la-la”.

O “sha-la-la-la-la” está para a música pop dos EUA assim como o “olelê, olalá” está para a música popular brasileira.

É uma figura-de-linguagem musical, e a canção acaba inevitavelmente derivando rumo a ela, atraída pela força gravitacional de um refrão que todo mundo conhece desde a infância e que convida a cantar junto.

De cara eu me lembrei de “Baby, it’s you”, um sucesso de 1961 de The Shirelles, que os Beatles regravaram logo depois:

Na década de 1970 houve o enorme sucesso de B. J. Thomas com “Rock and Roll Lullaby” (1972):

Pra mim a utilização mais comovente é a de Tom Waits no clássico “Jersey Girl”, de 1980:

Ora, se eu, que sou eu, lembrei logo de três exemplos, imagine Lady Gaga. “Shallow” conduz inevitavelmente ao “sha-la-la-la-la” tão norte-americano quando a torta de maçã. E foi esse x-do-problema linguístico que a versão brasileira não conseguiu reproduzir. Recortou e colou o original: “juntos e shallow now”.

Isso é um crime, um escândalo, uma coisa condenável? De jeito nenhum. É um problema de ordem estética que o autor não resolveu satisfatoriamente. A prova de que a “solução” encontrada não é satisfatória foi a grita imediata de inúmeras pessoas que não fazem a menor idéia dos problemas envolvidos numa tradução, mas são capazes de reconhecer um remendo mal feito quando se deparam com um.

Devemos por isso apedrejar o(a) versionista? De jeito nenhum. Eu boto essas coisas na mesma caderneta dos pênaltis perdidos e dos cacófatos involuntários. E a verdade é que a gente aprende tanto com os erros quanto com os acertos. Principalmente quando são os outros que erram. 










sexta-feira, 17 de maio de 2019

4467) Os becos sem saída da tradução (17.5.2019)




Todo tradutor profissional deveria mandar imprimir uma placa, ou um pôster de bom tamanho, e pregá-lo na parede do seu escritório, transcrevendo este comentário de Jorge Luís Borges, numa de suas entrevistas parisienses com Georges Charbonnier:

Talvez o ofício de tradutor seja mais sutil, mais civilizado, do que o de escritor. O tradutor chega evidentemente depois do escritor. A tradução é uma etapa mais avançada.

Borges era fértil em paradoxos (era discípulo atento dos insuperáveis G. K. Chesterton e Oscar Wilde), e não devemos ver nestas suas “boutades” nenhuma afirmação peremptória. Ele se divertia em fazer inverter papéis, para mostrar ao interlocutor que tudo depende do ponto de vista. Por que não ver um texto como algo que evolui sem cessar, ao passar pelas mãos de diferentes indivíduos?

Em frases assim, Borges está meio que seguindo aquela visão evolucionista, bem século 19 (ele foi um homem do século 19 durante a vida inteira), de que as coisas inevitavelmente evoluem, de que a passagem do tempo é benéfica para quem sobrevive a ela.

Basta lembrar aquela outra frase sua, de que os séculos fazem com uma frase o que faz com as pedras de um rio: dão-lhes polimento, reduzem-nas ao essencial, desbastam tudo que é acessório.

Infelizmente não é assim: toda tradução é uma espécie de retorno de um texto à estaca zero. Tudo vai recomeçar dali. Não importa quantas vezes a Divina Comédia já tenha sido traduzida: quando alguém começa a traduzi-la de novo todos os problemas possíveis voltam a ser colocados.

As soluções encontradas pelos outros tradutores podem até ser uma ajuda; mas também podem (isso acontece tanto!) ser armadilhas. Os outros também erram.

Eu falo às vezes sobre a necessidade, em certas ocasiões, de ser infiel à letra do texto para ser fiel à intenção do autor. Por exemplo: o autor põe na boca um um personagem uma menção à cultural local, lá dele. Isso deve ser traduzido ao pé da letra, ou deve ser substituído por uma menção à cultura do leitor?

Uma vez, um norte-americano conhecido meu começou a traduzir um conto meu para o inglês. Havia um trecho onde o personagem descreve uma cena dizendo algo como: “Eu tinha deixado meu carro estacionado na calçada da direita, entre uma Brasília e um Santana...”

Eram os carros brasileiros da época. Ele fez com tanta boa vontade que ao traduzir trocou por duas marcas de carros norte-americanos que não existiam no Brasil, argumentando que o leitor dos EUA (onde eu ia tentar publicar o conto) não sabia o que eram “Brasília” e “Santana”.

Mas o resultado ficou meio zé-limeira, com aqueles dois carros desconhecidos estacionados numa rua de Copacabana.

Há um episódio engraçado no folclore da tradução de cinema. Vi um faroeste norte-americano onde o cowboy foi visitar a professorinha do vilarejo, chegou lá de chapéu na mão, cheio de intenções. Todo tímido, sentado no sofá, ele perguntou, pra puxar conversa:

– Você sabia que foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil?...

O Cine Capitólio não veio abaixo com aquela gargalhada unânime, numa prova de que é mesmo um herói da resistência. A frase do original devia se referir a algum lugar-comum dos ianques, os “peregrinos do navio Mayflower” ou coisa equivalente. Em vez de meramente traduzir, o cara das legendas fez uma valorosa tentativa para achar um equivalente.

Ele percebeu que se o cowboy dissesse: “Você sabia que o Mayflower aportou na América em 1620?” a maior parte do público brasileiro, que não sabe do que se trata, não perceberia que ele estava dizendo apenas um clichê espantoso, meramente para quebrar-o-gelo da conversa. A intenção do diálogo seria desviada.

O tradutor tentou (compreensivelmente) mostrar ao espectador brasileiro que o rapaz estava encabulado e estava puxando conversa da maneira mais canhestra possível. Mas ele não se colocou no lugar do público, para ver como ficava absurdo o vaqueiro norte-mericano dizendo a frase brasileira.

Ou então ele teve essa idéia, de falar em Pedro Álvares Cabral, e pensou: “Quer saber duma coisa? Pelo preço que me pagam, tá bom demais”. É uma guilda de gente calejada.









terça-feira, 14 de maio de 2019

4466) Dicionário Aldebarã XVII (14.5.2019)




(ilustração: Hannes Bok)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Stóleo”: certas premonições que demoram a se confirmar e que acabam se transformando num evento perpetuamente adiado e que se torna parte da vida da pessoa.

“Nakrunium”: grupos de leitores que se comprometem a toda semana passar adiante um livro para o próximo da lista, e receber um livro do membro que vem antes.

“Zarbunz”: troca de carícias físicas, sem intenção sexual, entre pessoas que se conhecem profundamente e querem apenas curtir a proximidade uma da outra.

“Argobann”: qualquer recipiente usado para aparar a água que pinga de uma goteira, de uma torneira que está vazando, etc.

“Ablanim”: cartões redondos com polarização química que mantém gelados os copos de bebida colocados sobre eles.

“Chissode”: pequenos epitáfios manuscritos, personalizados, que os amigos deixam no túmulo de uma pessoa querida sempre que vão visitá-lo.

“Raffikam”: pequenos retalhos de pano úmido que algumas pessoas colocam na quina da mesa, durante as refeições, panos que elas pegam e passam sobre a madeira nua da mesa para ir recolhendo os farelos de comida.

“Weruss”: o estado mental de quem, diante de um estresse aparentemente esmagador, consegue juntar forças e manter uma atitude permanente de que tudo está indo muito bem.

“Vontersez”: minúsculos chalés que a maioria das casas de Aldebarã tem no fundo do seu quintal ou pátio interno, e que não pode ser ocupada pela família, devendo servir de alojamento gratuito para viajantes, que ali se hospedam em troca de ajudar nas tarefas da casa, por um prazo limitado de tempo.

“Conluvig”: pequenas peças de corda, em tamanhos variados, com prendedores de metal nas duas pontas, usadas para firmar bagagens ou outras cargas ao serem transportadas.

“Saidop”: grupos de três acontecimentos relacionados entre si que as pessoas costumam usar como argumentos para justificar um conceito, uma teoria, uma opinião, uma intuição aparentemente esdrúxula.

“Orau”: cerimônia em que de tantos em tantos anos as pessoas começam a transferir suas posses para parentes ou amigos próximos, numa antecipação da herança que deixarão ao morrer.

“Arani”: a tradição de dar nomes próprios a cada objeto da casa: pratos, talheres, cadeiras, cortinas, para que cada um deles tenha sua individualidade e possa ser distinguido dos demais.

“Maltomar”: diz-se da morte de certas pessoas onde nunca se poderá saber com certeza se foi morte natural, acidente ou suicídio.

“Rurrom”: a lembrança importuna e insistente de uma pequena coisa errada que a pessoa fez muito tempo atrás e não esquece, e acha, contra todas as probabilidades, que aquilo ainda pode surgir para cobrar uma conta.

“Vasser”: tem o sentido geral de “recipiente”, e pode designar indiretamente um saco de papel, um copo, uma casa, o estômago, um casaco, uma folha de papel em branco, etc.

“Amdiris”: o período de teste que se dá para a adaptação de um novo objeto (utensílio, roupa, livro) à casa, findo o qual ele é incorporado ou descartado.

“Lodenz”: grupos de amigos que se reúnem periodicamente para lembrar os velhos tempos, e a cada reunião fazem um depósito numn fundo de ajuda para qualquer um que estiver precisando.
















sábado, 11 de maio de 2019

4465) Só Pode Ser Brincadeira, Sr. Feynman! (11.5.2019)



Saiu agora pela Ed. Intrínseca (Rio) uma nova edição de Só Pode Ser Brincadeira, Sr. Feynman!, livro meio informal de memórias do cientista norte-americano, sobre o qual já escrevi algumas vezes aqui no Mundo Fantasmo.

Não examinarei nem darei opinião sobre as descobertas científicas de Feynman, mas já que ele ganhou, entre outras coisas, o Prêmio Nobel de Física de 1965, alguma importância ele tem, além de um temperamento irrequieto, questionador, impaciente com a burrice alheia, mas bem humorado (e malicioso) o bastante para divertir-se às custas dela, ao invés de se desesperar ou se aborrecer.

A frase do título foi pronunciada pela esposa de alguma autoridade universitária, num jantar, quando Feynman, convidado, fez algum pedido que era uma espécie de heresia gastronômica e cerimonial.

Uma das diversões favoritas de Feynman era falar a verdade e se divertir com a incredulidade dos colegas. Professor por muitos anos (no Rio de Janeiro, inclusive) ele ironizava os alunos (e alguns professores) dizendo que viviam no piloto automático, ouviam mas não assimilavam, diziam mas não sabiam o que estavam dizendo, respondiam com precisão qualquer pergunta sem saber direito o que tinha sido perguntado e respondido.

Comprei esse livro em dezembro de 1990 de passagem por São Paulo, num sebo-estante que tinha ali numa praça.

No prefácio dessa edição da Bantam, Ralph Leighton diz (trad. minha):

As histórias contidas neste livro foram reunidas de forma intermitente ao longo de sete anos de agradável bate-papo com Richard Feynman. Considerei divertida cada uma das histórias isoladamente, e o conjunto delas me parece extraordinário. Que uma tal quantidade de coisas malucas tenha acontecido a ele é algo que às vezes é difícil de acreditar. E o fato de que uma pessoa fosse capaz de armar tantas traquinagens em uma só vida pode nos servir de inspiração!

As traquinagens eram às vezes um mero costume de pregar peças nos conhecidos, que muitas pessoas têm, cientistas ou não. Em outros casos, mais sérios, Feynman se valia das mesmas malandragens para envolver oponentes de raciocínio mais bitolado do que o dele. Há um episódio muito citado quando ele, reunido com outras autoridades para investigar o desastre com o ônibus espacial Challenger, propôs sua teoria para a causa da explosão e fez uma demonstração prática ali mesmo na mesa, diante de todo mundo.

Feynman batia de frente com os políticos e dizia que você pode trapacear a opinião pública, mas não as leis da natureza. Ele gostava de examinar tudo por todos os lados, e sempre se apegava aos fatos. Queixava-se de que quando as pessoas estão focadas demais nas próprias idéias não prestam atenção aos fatos, ou só o fazem seletivamente.

Feynman tem uma dessas inteligências recursivas, que estão constantemente se auto-interrompendo e se auto-analisando: Por que pensei assim? O que foi isto que eu senti? Por que razão essas coisas me pareceram ser desse jeito? O que é isso que eu estou presenciando?

Durante o tempo em que esteve ligado à Cornell University, ele esteve de passagem pelo Brasil e morou aqui durante meio ano, em 1951. Como era um percussionista amador (tocava bongô) acabou se juntando aos ensaios de uma escola de samba, que ele nomeia como Farçantes [sic] de Copacabana, tocando frigideira. Aventura que ele conta no capítulo deste livro intitulado (em português, no original) “O Americano, Outra Vez!”.

Há um trecho hilário em que Feynman está chegando ao Brasil e uma professora lhe pergunta como aprendeu nossa língua. Meio hesitante, mas aluno estudioso, ele diz que começou a aprender espanhol, mas depois descobriu que viria mesmo para o Brasil, “...e consequentemente aprendi português.” A frase que ele pensara em inglês era “So, I learned Portuguese”, e fico imaginando um Físico conhecendo uma língua em que “so” se traduz por “consequentemente”. Duas “partículas” equivalentes e diferenciadas.

Físicos teóricos da escala acadêmica e profissional de Feynman desfrutam de uma certa liberdade para imaginar cenários inesperados, mostrar que são coerentes, e depois aplicá-los ao mundo real. Podem passar décadas agarrados com uma idéia que avança a passo de jabuti, enquanto dão aulas, formam turmas, orientam futuros doutores. Podem jogar muitas teorias para o alto; faz parte de sua função; como o centroavante no futebol, ninguém espera que ele acerte o tempo inteiro. Mas todos sabem que se ele agitar e criar situações o tempo inteiro, algum gol ele acaba emplacando.

















quarta-feira, 8 de maio de 2019

4464) Filme policial: a certeza e a dúvida (8.5.2019)



Arthur Laurents, o roteirista de Festim Diabólico (“Rope”, 1948), queixava-se de que o assassinato cometido na primeira cena do filme não foi idéia dele, e sim do diretor Alfred Hitchcock.

Para quem não viu o filme: é uma história que transcorre inteiramente (em tempo real) no interior de um apartamento, durante um jantar oferecido por dois rapazes a um grupo de amigos. Antes do jantar, eles assassinam outro amigo, David, e colocam o corpo num enorme baú, cobrem-no com uma toalha, e colocam sobre eles os pratos da refeição.

O suspense do filme é sabermos que o rapaz está morto e bastaria levantar a tampa do baú para descobri-lo. E quem comparece ao jantar são o pai e uma tia do rapaz assassinado, a noiva dele, outros amigos etc. 

Laurents dizia que seu roteiro não incluía a cena do assassinato. Viam-se apenas os dois assassinos comentando o fato entre si, mas não tínhamos certeza de que um crime havia de fato sido cometido. Para ele o suspense estaria na questão: “Existe mesmo, ou não, um cadáver dentro desse baú?” 



A partir do momento em que Hitchcock mostra o crime acontecendo, o público entende que houve mesmo uma morte, e que os assassinos serão punidos.

Essa diferença de concepções entre o roteirista e o diretor pode ser ilustrada com um exemplo famoso que Hitchcock deu em várias entrevistas. Dizia ele que é sempre bom informar o público com clareza. Suponhamos um restaurante. Alguém entra, coloca uma bomba-relógio ligada embaixo da mesa, e some. Dois homens sentam na mesa e começam a conversar. Se não soubéssemos que existe uma bomba ali, a cena não teria suspense nenhum.

Neste sentido, eu diria que em termos de “mistério” (aquele elemento não-explicado que se torna o centro dramático muitos filmes e livros) Hitchcock tinha uma posição conservadora: “o público tem que ser informado de forma cabal e inconfundível”. E Laurents tem uma posição mais moderna: “um excesso de certeza prejudica o mistério; é bom que o público não saiba ao certo o que aconteceu”.

Muitos filmes posteriores a Festim Diabólico se baseiam num crime, ou desaparecimento, que nunca fica bem explicado.

O cadáver fotografado involuntariamente num parque (Blow-Up, Antonioni); um homem amnésico que investiga a morte da esposa (Amnésia, de Christopher Nolan); a moça que some durante um passeio de barco a uma ilha minúscula (A Aventura, Antonioni); o imigrante que vai morar num apartamento cuja inquilina anterior pulou da janela, e que começa a imaginar que está se transformando nela (O Inquilino, Roman Polanski); são inúmeros os exemplos.


(O Inquilino, Polanski)

Arthur Laurents  defendia a tese de que a mente do espectador deve ficar trabalhando o tempo todo com duas suposições igualmente plausíveis, e (complemento eu) seria até mais interessante se depois do filme nenhuma delas fosse confirmada.

Toda esta discussão acaba sendo conduzida numa direção que me parece conter um erro: “Qual é a técnica certa? Qual é a melhor técnica – revelar, ou não revelar?”.

É uma preocupação constante nos aspirantes a escritor ou aspirantes a roteirista. Porque na mentalidade de estudante vigora uma impressão de que existe “a maneira certa” de fazer as coisas, e um milhão de maneiras erradas. Infelizmente, é esse o tipo de raciocínio que nosso sistema educacional impõe no juízo das pessoas.

Uma obra de arte, e mesmo uma obra de entretenimento, propõe uma experiência. Você vai entrar num cinema, a luz vai se apagar, e durante duas horas alguma coisa vai acontecer ali na tela. Claro que existe uma expectativa prévia, e o resultado da experiência depende muito da expectativa.

Se eu entro no cinema pensando que vou assistir algo na linha de “Homem Aranha” e o filme é algo na linha de “Loucademia de Polícia”, talvez eu saia decepcionado. E vice-versa.

Se eu entro no cinema pensando que vou assistir algo na linha de “Metropolis” de Fritz Lang e o filme é algo na linha de “Os Incompreendidos” de François Truffaut, talvez eu saia decepcionado. E vice-versa.

Propositalmente comparei dois “filmes de entretenimento”, e depois dois “filmes de arte”, porque não se trata de opor um tipo de filme a outro. Eu gosto dos quatro filmes citados, cada um ao meu modo.

E – voltando ao tema principal – gosto de filmes que deixam uma sensação de história incompleta, de história que não ficou muito clara, com coisas que não foram explicadas, que não se encaixam. E gosto de filmes bem amarradinhos, onde tudo se esclarece, principalmente se for filme policial no estilo “whodunit”.

O que nos conduz de novo a Alfred Hitchcock. O diretor disse, repetidamente, ao longo da vida inteira, que não gostava de filmes policiais nesse estilo. Numerosas vezes os produtores lhe propuseram que filmasse um romance de Agatha Christie ou de outros autores clássicos, e ele se recusava. Seu interesse nunca foi o de mostrar uma investigação policial, mas de investigar aquilo que a divulgação dos filmes chama “os recessos obscuros da alma humana”.


(Rebecca, Hitchcock)

Hitchcock nunca se interessou por Agatha Christie; em compensação, adaptou três obras de Daphne du Maurier (Jamaica Inn, 1939; Rebecca, 1940 e The Birds, 1963). Uma escritora que pendia para o gótico, o soturno. 

Dos clássicos do romance policial, ele adaptou Cornell Woolrich (Janela Indiscreta, 1954) e Patricia Highsmith (Pacto Sinistro, 1951), ambos mais próximos do roman noir de crime, alucinação e tensão do que da novela detetivesca de raciocínio.

Isso de certa forma me deixou surpreendido ao ver os extras do DVD de Festim Diabólico e acompanhar a entrevista de Artur Laurents. O roteirista preferia mostrar um jantar onde dois indivíduos, quando a sós, comentam o assassinato que acabaram de cometer, e cujo cadáver está ali, escondido, no meio da sala cheia de gente. Será verdade? Será um jogo sádico de gabolice dos dois?

Ao mostrar o assassinato, Hitchcock conseguiu um dos seus famosos planos de “choque”: poucos filmes têm como primeira imagem um homem sendo estrangulado por dois outros. Daí por diante, ele cancela totalmente a ambiguidade proposta no roteiro inicial, e o filme se transforma em suspense puro, porque já sabemos quem são os culpados.

E no fim das contas, o filme não é um “whodunit” (”quem praticou o crime?”) e sim um “whydunit”: por que o crime foi cometido? Este é o grande tema de Festim Diabólico.














sábado, 4 de maio de 2019

4463) Hipnose da estrada (4.5.2019)




Eu não sei dirigir automóvel, nunca dirigi um. Isso não me impede de avaliar o modo de dirigir de quem quer que seja, nem de teorizar sem pejo sobre essa nobre atividade moderna.

Um dos aspectos que me interessam nela é o modo como “o motorista” torna-se quase um “duplo” da pessoa. É uma pessoa menorzinha que vive dentro dele. Uma espécie de “puxadinho” mental em que uma nova personalidade é criada e desenvolvida, paralelamente à personagem principal.

A ação de “dirigir automóvel” pode perfeitamente abrir mão de uma série de camadas da nossa consciência. É um ato maquinal, que se executa com transições confortáveis entre assumir o controle e deixar no piloto automático.

As pessoas dirigem enquanto conversam, até mesmo um assunto da maior gravidade. Dirigem enquanto escutam um jogo de decisão do campeonato. Dirigem enquanto cantam a plenos pulmões com os filhos pequenos no banco de trás.

É como se a existência do “robô motorista” permitisse liberar a mente lúcida da pessoa para cuidar de assuntos mais interessantes.

De vez em quando dá um bug. É aquele famoso momento em que estou no banco do carona, num papo animado com outra pessoa, e de repente ela diz: “Caramba. Por que é que eu vim parar aqui no girador? Era para eu ter pêgo a ponte, lá atrás!”  E ninguém nem comenta, de tão comum que é o fato.

Vou contar aqui três histórias cuja veracidade nem me interessei em discutir, porque me pareceram plausíveis. Uma ou outra dela eu já ouvi com pequenas variantes. Deve ser, sim, um fenômeno reiterativo, levando em conta a quantidade de motoristas.

A História #1 fala de uma família que foi curtir o domingo num churrasco ou pescaria ou almoço de família num subúrbio mais que distante, e na hora de voltar, ao anoitecer, armou-se um toró que não tinha mais tamanho. A esposa pediu a chave do carro. O marido estava pra lá de Bagdá, mas insistiu previsivelmente em dirigir. Ela sugeriu passarem a noite no local, havia essa opção. Ele disse que ia trabalhar logo cedo, e tinha que dormir em casa.

A tempestade caiu, o carro fez-se ao asfalto, e felizmente as crianças estavam exaustas do domingo e se enrodilharam no banco de trás. Era água de quase não se ver um palmo à frente, e ela estava reduzida a um trapo de nervos quando eles finalmente chegaram ao bairro, à rua, à casa. Ele alinhou o carro à calçada e desacordou sobre o volante.

Ela insistiu muito, depois fez a única coisa que podia fazer. Levou as crianças para dentro, primeiro uma, depois a outra, mandou deitarem nas poltronas preferidas, voltou, abriu o carro (felizmente agora estava só um chuvisco), agarrou-o pelos suvacos e o trouxe para dentro de casa. No outro dia ele acordou com o despertador pré-programado e foi trabalhar assim como se nada.



A História #2 fala de outro cara que tomou umas e outras, voltou para casa, abriu de longe o portão, subiu a rampa com o carro, entrou na garagem são e salvo. A sensação de são e salvo foi tão forte que ele apagou. Os faróis do carro continuaram acesos, o motor ligado. O carro todo zunia, fremia e trepidava em torno dele. Ao cabo de algum tempo, ele entreabriu os olhos. Viu o brilho cegante daqueles faróis refletidos na parede branca do fundo da garagem, a um metro das luzes. Pisou no freio com tanta força que partiu ossos, rompeu ligamentos.

A terceira é a de um respeitável casal que fazia de vez em quando umas viagens do sertão para a capital, com parada em uma cidade no meio do trajeto. A esposa e o marido se alternavam ao volante. Numa das vezes, ela o deixou nessa cidade do meio e prosseguiu rumo à capital, no litoral do Estado. E a certa altura, já chegando naqueles subúrbios, teve uma espécie de susto, não sei se porque precisou frear de repente. Alguma coisa desse tipo a sobressaltou, e ela pensou: “Meu Deus, mas eu já estou aqui? Eu não me lembro de ter dirigido até aqui. Quem dirigiu? Porque eu só estou acordando pra valer agora.”

A pergunta interessante é de fato “quem dirigiu”, porque quem dirigiu foi a mesma pessoa. Mas dirigir é (como muitas outras, aliás) uma atividade que ganha uma certa autonomia. Também depende do motorista. Um motorista pode dirigir assim de modo meio sonambúlico e não sofrer nenhum problema grave, porque dirige com prudência e os reflexos visuais e motores estão em ordem.

Há vários níveis, como constatou Paul McCartney durante uma viagem lisérgica dos Beatles, da qual ele emergiu com esta única frase, dando provas de ser mais minimalista do que Yoko Ono.



Na primeira história acima, eu pressuponho que o motorista estava bêbado mas era um bom motorista, e isso prevaleceu sobre a bebida. Não aconselho a ninguém (como se fosse preciso). Acho que estatisticamente há mais motoristas bêbados sem acidentes do que com acidentes. O que não vale como desculpa.

No caso do meio, o da freiada cegante, o que vejo é o grau de reflexo, de adestramento, de autocondicionamento. Vai bater e você ao volante de toneladas de tralha com metal e vidros. Pela força da pisada e pela rapidez do reflexo, é um preparo comparável ao de um campeão do tênis. Devia existir um Teste Voight-Kampff só para medir isso.

O último caso é o mais interessante, porque facilmente pode ser considerado um estado alterado de consciência. A causa pode ser a auto-segurança de quem não vai fazer bobagem por sua iniciativa. Todos veem que a pessoa está acordada, a parte sensorial toda ativa, bota bagagem na mala do carro, abastece, conversa com um e outro, pega o volante, e lá vem aquela imensa fita solitária fluindo à sua frente.

Podemos postular, pelo menos em termos de dramaturgia, a existência de um sistema emocional, que naquelas horas de preparativos e na viagem de rotina continuava ali, mas adormecido, não tinha sido chamado a abrir os olhos. A freiada brusca atrás do caminhão, nas pistas paralelas de acesso ao subúrbio, acordou uma ninhada de aplicativos que desde o despertar estavam em modo espera: medo, susto, estranheza daquilo tudo, aquela sensação estrídula de ser dois.

Há vários níveis, também diria o inefável Colin Wilson, que nunca, diante de um fato, hesitou em produzir uma teoria. A consciência não é uma coisa, é um conjunto fluido, mas voluntariamente estável, de processos que se complementam. Como descrevê-los?  Em termos que a gente visualize melhor.

John R. Searle, professor de filosofia, disse uma vez:

“Por não entendermos muito bem o modo como a mente humana funciona, somos tentados o tempo inteiro a compará-la com o tipo mais recente de tecnologia.  Na minha infância, sempre nos asseguravam que a mente era uma espécie de central telefônica – o que mais poderia ser, afinal?  Depois, descobri, divertido, que Sherrington, o grande neuro-cientista britânico, comparava a mente a um sistema telegráfico.  Freud a comparava com freqüência a sistemas hidráulicos e eletromagnéticos.  Leibnitz a comparava a um moinho, e agora, evidentemente, a metáfora é o computador digital”.