Chaplin é o palhaço do cinema em preto-e-branco. Seu visual surgiu com o cinema, e é difícil conceber que pudesse ter nascido no teatro apenas, e menos ainda no circo.
A balança visual do teatro e do circo pende para um mundo
necessariamente colorido, brilhante, reluzente.
Palhaços de circo, mesmo dos circos mais mambembes, circo
tomara-que-não-chova, circo que só tem um pano-de-roda, orgulham-se de suas
roupas em cores berrantes, costuradas em cetim barato, em faíte, em qualquer
pano lustroso que realce seu cromatismo de pintura primitiva.
Carlitos surge no “mundo fantasmo” do cinema preto-e-branco,
do cinema puro. Um cinema que era como
se a própria fotografia recém-inventada já começasse a se mexer por si
mesma. Um mundo sem cores, mas com todos
os tons de cinza; e onde o branco não é somente branco, mas um branco luminoso,
coruscante, prateado. E onde o preto
costuma se esfarelar como se fosse pó de carvão ou borrifozinhos de nanquim.
O mundo fantasmagórico de onde brota Carlitos é esse mundo
granulado como na retícula dos velhos clichês de zinco, com aquele seu
gradeamento infinitesimal de pontos negros maiores ou menores. É como se essa pulverização nos mostrasse um
universo feito com os átomos do preto e do branco, misturando-se, separando-se,
em torvelinhos que se unem e se apartam, e vão sugerindo aos nossos olhos
imagens toscas mas reconhecíveis. Uma
estética visual que tem doses iguais do pontilhismo impressionista e dos
contrastes toscos das gravuras dos romances populares.
É nesse mundo de lanterna mágica que Carlitos brota. Um mundo silencioso como o mundo dos sonhos,
onde sempre parecemos estar embaixo dágua.
Um mundo, como registra Sarte em suas recordações de
infância, feito de “...um giz
fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre,
mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas
cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada.”
O cinema preto e branco era de fato um chuvisco permanente,
uma poeira de trevas e de estrelas, e nele não haveria lugar para os arlequins
e os saltimbancos da comedia dell´arte,
com seu colorido básico de histórias em quadrinhos e de estampas populares.
A frustração que sentimos quando vemos algumas tentativas
contemporâneas de reconstituir esse período é que falta-lhes essa qualidade –
não sei de melhor descrição que o verso de Cruz e Sousa – “pulverulentamente
nebulosa”.
A nitidez dos filmes de hoje nos parece insatisfatória,
mesmo em reconstituições de época impecáveis como a de Scorsese em “Gangs de
Nova York”. Por um lado, é aquele, sem
dúvida, o ambiente social e econômico onde viveu o vagabundo de Chaplin;
sabemos que são aqueles os pardieiros em equilíbrio precário, as ruas
enlameadas, os botequins, as cabeças-de-porco.
Mas tudo ali está fotografado com uma nitidez supérflua e mesmo
incômoda. Na nossa memória, aquele mundo
não era assim. Era um mundo sem
substância, um mundo que aos nossos olhos infantis parecia feito de açúcar e pó
de café.
Nesse mundo, Carlitos parecia mais real que o resto, mais
real que as ruas, mais real que o rio de fubicas resfolegantes que se
entrecruzavam nas avenidas. A cadência
frenética dos 16 quadros por segundo realçava os deslocamentos meio
espasmódicos daqueles habitantes de um universo que pela primeira vez via-se
obrigado a mover-se mais depressa, mais depressa. Era tudo uma coreografia de esbarrões,
ultrapassagens, gente colidindo, carros tirando fino, jatos dágua, nuvens de poeira.
Já eram as esteiras rolantes de “Tempos Modernos” que punham
aquelas cidades em movimento, e no meio delas deslocava-se o pequeno lorde
esfarrapado, o bom malandro janota, o “barão da ralé”, com roupas que pareciam
não ser suas, a jaqueta muito acochada, as calças frouxas demais, os sapatos
marca O Defunto Era Maior, o chapeuzinho equilibrado no coco.
Ele todo preto e o rosto todo branco, xilográfico,
caligaresco, o bigodinho rimando com a gravata borboleta. O habitante arquetípico daquele mundo de luz
e sombra, um mundo que nunca existiu, mas que sobreviverá, com ele, a este
mundo colorido onde existimos agora.
(Uma versão
ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Continente
Multicultural, Recife, ano III, # 33, dezembro 2003)
Clap, clap, clap!
ResponderExcluirMaravilha de resenha. Ótima
ResponderExcluirPois é.... Quanta genialidade! Não obstante o fato de ter sido vítima do famigerado macartismo...
ResponderExcluir