segunda-feira, 29 de abril de 2019

4461) Cuma?... (28.4.2019)






O que dá riqueza a um linguajar regional, muitas vezes, é algo que vai além da ortografia.

A poesia matuta, regional, etc., desliza com muita facilidade para a mera linguagem comum com grafia precária, mas sem muita ousadia ou criatividade para criar expressões próprias.

Existem palavras que têm um sentido consensual no país inteiro mas em certas regiões cabe ali uma camada nova de significado.  Às vezes por uma pequena quebra de regulamento.

Em Campina Grande usa-se muito o termo “pertubado”, escrito assim, para qualificar certos sujeitos que são mentalmente ou emocionalmente instáveis, aquelas granadas sem pino sempre a ponto de explodir.

O jeito local de falar conhece, sim, o adjetivo padrão “perturbado” (desorientado, inquieto, instabilizado) mas emprega também o substantivo “pertubado”:

– Lá vem aquele pertubado que passa o dia lá na pracinha.

A questão é que um hipotético tradutor estrangeiro poderia confundir os dois usos de formas tão próximas. Poderia até constatar o “erro” numa delas e atribuir a um coloquialismo ou rusticidade. Mas talvez não captasse o uso desse “erro” para individualizar aquele emprego da palavra.

Um termo que pra mim é tipicamente paraibano é o substantivo “muído”, para designar qualquer atividade incessante, repetitiva, que parece nunca acabar e que nunca leva a lugar nenhum. Eu escrevo “moído”:

– Rapaz, bora pagar logo a conta e acabar com esse moído, faz meia hora que vocês discutem com o garçom.

O problema é que escrevendo assim, da maneira aparentemente correta, o leitor é induzido a pronunciar “mOído” ou (pior ainda) “mÔído”, o que distorce totalmente a palavra. Tem que ser um “U” bem tosco e bem sonoro, senão não é a mesma palavra.

– Cheguei atrasado por causa daquele muído de entregar convite e procurar crachá.

“Pertubado” e “muído” são leves corruptelas. As palavras originais fazem parte do repertório nacional da língua brasileira, mas ali naquela região apresentam esse pequeno desvio de sentido, indicado por um pequeno desvio de pronúncia.

Algo parecido, em escala nacional, se dá com a palavra “bêbo” para substituir “bêbado”. Esses acentos diferenciadores já foram podados pelas reformas ortográficas, mas eu insisto em usar, para distinguir do verbo (“eu bebo”).

Muita gente de certa fineza vocabular ergue a sobrancelha diante desse termo, mas eu o considero um dos pilares do idioma. Não vejo sentido em escrever algo como:

– A festa foi ótima, e eu cheguei em casa bêbado.

Nunca!  Tem que ser:

– Eu cheguei em casa bêbo.

Há neste vocábulo uma síncope sutilíssima que reproduz a fala pouco articulada dum bêbo legítimo.

Existe uma pergunta irônica no linguajar nordestino, na verdade uma reação a algo que o interlocutor acabou de dizer. A gente pergunta: “Cuma?...”  O sentido genérico é: “Como? O que foi que você disse?”  Mas se disser “Como?” a fala perde totalmente a função, que é meio irônica, meio provocativa, como que se fingindo propositalmente de analfabeta diante da aparente sapiência do interlocutor.






















quinta-feira, 25 de abril de 2019

4460) "Aura" e o Eterno Feminino (25.4.2019)



É uma das histórias fantásticas mais elogiadas da literatura latino-americana. Aura (1962) de Carlos Fuentes é uma daquelas noveletas intensas que num livro ocupam 90 páginas e na tela utilizam 90 minutos. Não precisam de mais do que isto.

Aura tem uma história toda sensorial, depende o tempo inteiro do ouvido, do tato, do cheiro, mais que da visão. A casa da senhora Consuelo vive mergulhada numa penumbra obrigatória, como convém a uma matriarca implacável sul-americana. A todo instante o narrador precisa registrar um vislumbre de luz, uma passagem que se abre e se fecha, providências concretas rapidamente resolvidas para não atrapalhar a história de vampirismo psíquico que se segue.

Plot básico: um jovem professor de francês aceita proposta financeiramente generosa para trabalhar de secretário para uma Madame, viúva de um general, com a função de organizar e publicar os papéis do falecido. A casa é soturna, escura, toda fechada, e na companhia da viúva quase centenária ele descobre uma moça chamada Aura, que parece ser sobrinha da senhora.


A casa trevosa desta história me lembrou em algum momento o clima meio místico e meio grotesco, aquela espiral descendente de absurdos, de alucinações, que há em obras como Malpertuis (o filme e o livro), uma mansão quase tão bizarra quanto a de Delicatessen.

É apenas o clima. Em matéria de plot, Aura é de uma direiteza franciscana. A ambição financeira e o desejo erótico arrastam o personagem para um redemoinho de onde ele não consegue mais sair. O rapaz percebe que a mulher mais nova é uma aura, uma holo, uma projeção virtual da energia que a velha suga dele. Mas ele não consegue resistir.

O conto pertence a esse time de histórias claustrofóbicas de possessão, como “A Aranha” de H. Heinz Ewers, ou “O Inquilino” de Roland Topor, ou “A Queda da Casa de Usher” de Edgar Allan Poe. Ou quem sabe “Morella” do mesmo Poe, que lida com o tema da mulher que depois de morta retorna íntegra na própria filha.

Não é um tema raro em Poe, porque em “Ligéia” ele faz a mulher morta voltar aos braços do marido, ao ocupar, primeiro espiritualmente, e depois fisicamente, o corpo de sua segunda esposa. May Synclair tem um conto semelhante, onde a esposa morta surge para seduzir de novo o ex-marido.


Um clichê nas histórias de terror é o homem que abraça o fantasma de uma linda mulher, muitas vezes nua, sempre oferecida, irresistível, apenas para vê-la encarquilhar-se em seus braços e se transformar numa gárgula, numa ave de rapina, numa múmia, na negação escarninha de tudo quanto o levara até ali.

A mulher na banheira do quarto 237 em O Iluminado de Kubrick. As súcubas de Saragoça, sedutoras ao primeiro toque, letais no último. O que Aura traz de diferente é essa capacidade de difração da personagem, de projetar dois fachos distintos da mesma energia original, mesmo que cada uma roube energia à outra. É uma história de feitiçaria, feitiçaria européia; um duplo conscientemente focalizado e projetado para que todo mundo o veja.


Não falei ainda do detalhe que talvez seja o mais evidente do livro: ele é todo narrado na segunda pessoa, o “você”, que o autor usa com admirável rigor do princípio ao fim:

Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido diretamente a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza do cigarro dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e barato. Torna a ler. Solicita-se historiador jovem. Organizado. Escrupuloso. Conhecedor da língua francesa. Conhecimento perfeito, coloquial. Capaz de desempenhar funções de secretário. Juventude, conhecimento do francês, preferentemente que tenha vivido na França por algum tempo. Três mil pesos mensais, comida e aposento cômodo, batido pelo sol, estúdio bem instalado. Só falta o seu nome. Falta apenas que as letras do anúncio informem: Felipe Montero. Solicita-se Felipe Montero, antigo bolsista da Sorbonne, historiador cheio de dados inúteis, acostumado a exumar papéis amarelados pelo tempo, professor auxiliar em escolas particulares, novecentos pesos mensais. Mas se você lesse isso, ficaria desconfiado, tomaria tal coisa como brincadeira. Donceles 815. Apresentar-se pessoalmente. Não há telefone.
(Aura, Ed. L&PM, tradução Olga Savary, 2015)

Quantos mil contos fantásticos, aventurescos ou criminológicos não terão começado assim, com um personagem jovem, inteligente, em agruras financeiras, recebendo por meios escusos ou sobrenaturais, ou num mero anúncio classificado, a famosa Proposta Irrecusável? Felipe vai à casa atraído pelo dinheiro, e não consegue mais sair dela, visgado pelo corpo quase luminescente de Aura.  

Lembrei de outro livro que começa fazendo uso desse você: Se um Viajante num Noite de Inverno, de Ítalo Calvino. Calvino faz um jogo hábil de tentar enredar o leitor no labirinto de premissas narrativas que ele começa a criar. Mas o “você” de Calvino se dirige mesmo a “mim”, que estou lendo. No de Carlos Fuentes não é ao leitor que o “você” se dirige, é somente ao personagem, em momento algum ele troca idéias com o leitor.


Fuentes se dirige ao personagem, profetizando as coisas no instante em que elas se desencadeiam, definindo um rumo irrecusável. Não há liberdade nem escape para esse “você” condenado ao sacrifício ritual que uma história fantástica se sente obrigada a oferecer ao seu deus sem face.

O sacrifício, no caso, pertence a um feitiço trazido da Europa por esse casal. Aura (ou a senhora Consuelo, mas esta raramente deixa o leito) cuida de um jardinzinho no pátio, que Felipe Montero, o rapaz culto e sorbonniano, reconhece sem esforço.

Você distingue as formas altas, cheias de ramos, que projetam suas sombras à luz do fósforo que se consome, queima-lhe os dedos., obriga-o a acender um novo para acabar de reconhecer as flores, os frutos, os talos que você lembra de terem sido mencionados em velhas crônicas: as ervas esquecidas que crescem perfumadas, adormecidas – as folhas amplas, longas, fendidas, peludas do meimendro; o caule sarmentoso de flores amarelas por fora, vermelhas por dentro; as folhas rígidas e agudas da dulcamara; a penugem cinzenta do verbasco, suas flores espigadas; o arbusto ramoso do evônimo e as flores esbranquiçadas; a beladona.
(p. 54-55)

Felipe Montero é meio personagem de tragédia grega, porque o autor se transforma numa espécie de demiurgo pessoal, e passa a cuidar apenas dele.
E ele se deixa prender à armadilha contida naquele classificado, com o mesmo desprendimento que faz William Holden querer ficar vivendo na mansão de Joan Crawford, em Sunset Boulevard.

O fatalismo contido no “você” do livro de Carlos Fuentes é tão insólito quanto o “eu” desse narrador, o roteirista interpretado por William Holden, que conta a história depois de morto. É como se Holden dissesse ao público: “prestem atenção, nada mais no passado vai mudar, quando a gente morre o passado se torna irrevogável”, e Fuentes falasse a Montero: “Presta atenção: você não passa de um personagem, um avatar para que eu não suje as mãos. Faça o que eu estou dizendo, e bote as mãos pro céu.”








segunda-feira, 22 de abril de 2019

4459) Em Meu Ofício ou Arte Soturna (22.4.2019)



(foto: Dylan Thomas)

Fiz uma tentativa de tradução de um dos poemas mais conhecidos do galês Dylan Thomas (1914-1953). Thomas é um poeta de um vigor verbal extraordinário. Espirituoso e grave, ele tem a destreza das imagens inesperadas, reveladoras, arrebatadoras, bizarras. Tem aliás um bom lote de contos fantásticos, todos escritos com verve e imaginação.

Abaixo, a minha tradução. O poema em inglês pode ser lido aqui:


***


Em meu Ofício ou Arte Soturna
(Dylan Thomas – tradução BT)

Em meu ofício ou arte soturna
neste exercício de noturna paz;
quando somente a lua vaga
e os amantes jazem na cama
abraçados às suas dores,
eu laboro à chama fugaz;
nem ambição nem pão me inflamam,
nem o canto-sereia dos mercadores
nem o marfim da ribalta;
a mim basta a modesta paga
daqueles corações ocultos.

Não é para o orgulhoso que se posta à parte
que escrevo, sob a lua furiosa,
nestas folhas ao vento;
nem para esses mausoléus de mortos
com seus salmos, seus rouxinóis.
É para os amantes: seus braços protetores
em volta dos ombros, em todos os tempos.
É para esses desinteressados, para esses desatentos;
que nem ligam para meu ofício e arte.

***

Já comentei aquele velho princípio segundo o qual “traduzir é perder, mas nós escolhemos a perda”.

Ou seja: às vezes o tradutor sacrifica a beleza do sentido de um verso para manter sua musicalidade; outras vezes sacrifica essa musicalidade para preservar uma alusão (mitológica, biográfica, qualquer coisa) que era cara ao poeta; outras vezes o tradutor manda essa alusão para o espaço em troca de reproduzir um efeito métrico de rara beleza.

Traduzir, entre outras coisas, é também negociar perdas e danos. A gente perde, mas pode escolher o que ganha.

Às vezes pode-se mandar a rima para o espaço, numa tradução. Neste caso, mandei para o espaço a métrica, porque o poema varia suas linhas entre 6-7 sílabas, e eu liberei este aspecto.

Por outro lado, tentei captar a idéia do que está sendo dito, e tentei manter a mesma disposição meio aleatória de rimas do original, que seria algo como ABCDEBDECCA-ABCDECCA. Não mantive sempre a correspondência fora da estrofe, ou seja, a rima “A” na primeira estrofe não é necessariamente a mesma rima “A” usada na segunda; no interior das estrofes, as rimas são obedecidas.


Notas

·        Quando um poeta rigoroso usa explicitamente uma forma clássica como o soneto ou o vilancete ou o hai-kai, ele se sabe vigiado. Um dos impulsos modernistas mais saudáveis é o de a certa altura, depois de decolar usando as formas clássicas, mandar as formas para o espaço e deixar que, se for uma história, ela se conte a si mesma, e se for poema, que ele invente sua própria dicção e sua cadência pessoal.

·        Não sei se a estrutura de rimas de “In my Craft...” corresponde a alguma forma clássica. São cinco rimas distribuídas em duas estrofes de onze e nove versos. Cada estrofe começa com cinco rimas diferentes em sequência. Na segunda, há dois versos a menos, e é como se a primeira estrofe tivesse perdido as linhas 6 e 7, e com elas as rimas BD no primeiro esquema.

·        Esta tradução aí ficou com uns versos quilométricos em relação às poucas sílabas do verso em inglês. Já me disseram, na editora, que na proporção de palavras uma tradução em português é 25% mais extensa do que o original em inglês. Se for verdade, todo poeta deveria ter direito a usar um quarto de palavras a mais ao traduzir um verso de Dylan Thomas ou de Bob Dylan.

·        E às vezes é preciso inventar um efeito porque não se pode aproveitar o do original, mas o que importa é que naquela linha, àquela altura do poema, precisa acontecer algo parecido.

·        Existe um verso de Shakespeare, mais de um talvez (que é isso, deve haver centenas), onde as dez sílabas são preenchidas com dez palavras diferentes, formando uma frase lógica e cristalina. Pode-se fazer o mesmo em português, mas é uma gincana, como compor um palíndromo ou um monovocalismo. Deve-se (pode-se) exigir isso do tradutor? Só se ele quiser, por amor à arte.

·        Toda tradução é uma proposta de criar algo que ainda não se sabe o que vai ser, só depois de criado. Traduzir é produzir uma obra que, naquele idioma, nunca tinha sido formulada por extenso.

·        Às vezes um poema nos seduz para traduzi-lo por ter uma idéia original, ou por um ritmo aliciante. Outros, porque aludem a um mito. Outros, porque usam uma linguagem inventiva. Em algum poema, o tradutor pode achar que as imagens visuais são mais importantes, no poema original, do que o rigor métrico, por exemplo. Ou vice-versa.

·        Essa escolha se reflete na tradução. O que era mais importante para o autor, ao escrever exatamente assim? Nunca saberemos, só nos é dado adivinhar e saltar no escuro. Traduzir é psicografar. Em termos literários, claro.

·        Alguém já disse: “O tradutor profissional deve fingir ser capaz de pensar igual ao autor, acreditando nisso o bastante para de fato canalizar o espírito verbal desse autor, e ao mesmo tempo desacreditando o suficiente para saber que é preciso não extrapolar. Traduzir é a melhor das tarefas: reescrever, uma reescritura aliás aprovada e encorajada pelo autor e pelos editores do original.”








sexta-feira, 19 de abril de 2019

4458) A terceira torre (19.4.2019)




Também fiquei apreensivo quando ouvi as notícias sobre o incêndio da Catedral de Notre-Dame. Poucas semanas atrás eu tinha lido O Corcunda de Notre Dame (Nossa Senhora de Paris, 1831) de Victor Hugo, e comentei aqui no blog. A leitura me fez pensar não somente na catedral distante, mas em todas essas edificações em pedra que se pretendem para sempre.

Eu até entendo o raciocínio, porque o mundo é cheio de construções monumentais em pedra que estão resistindo bem há milhares de anos. Mas a pedra também se esfarela, e vira areia.

Como na história do poderoso Ozimândias, no soneto homônimo de Percy Bysshe Shelley (trad. minha):

Encontrei um viajante de uma terra antiga
que disse: “Duas pernas gigantes de pedra
jazem sem tronco no deserto... Perto, na areia,
um rosto semi-enterrado franze o cenho

e torce o lábio, num esgar de comando,
a mostrar que o escultor era bom leitor
dessas paixões que eternizam as coisas sem vida,
a mão que arremeda, o coração que inspira.

E no pedestal leem-se as palavras:
Meu nome é Ozimândias, Rei dos Reis;
contemplai minha obra, ó poderosos, e desesperai!

E não resta nada em volta. Entre as ruínas
daquele desastre colossal, deslimitado e nu,
estende-se apenas a areia lisa e deserta.”

O poema original é rimado. Ele é citado na ficção científica de Robert Silverberg e na série Breaking Bad de Vince Gilligan. Ozimândias é outro nome de um personagem histórico (Ramsés II), citado por Alan Moore na série Watchmen e por Anne Rice em A Múmia.

O poema ecoa a derrocada de um poder que se achava indestrutível, mas quando chega sua hora cumpre seu destino e vira pó.

É uma alegoria fácil, ao alcance da mão de qualquer mente, de modo que não custa nada ir um pouco além e ver no poema uma certa vindicação do pobre do Ozimândias.  Ficaram destroços bastantes dele para inspirar um soneto que acabou lhe sendo superior e mais duradouro, mas em todo caso não se perderam a sobrevivência (simbólica) do rosto semi-enterrado na areia e da arrogante inscrição.

Sem elas, não haveria poema.

E quando até a pedra passa, a palavra fica. Isso era mais ou menos a imagem que Victor Hugo propunha em 1831 no capítulo “Isto acabará com aquilo” do Livro Quinto do seu romance sobre Notre Dame.

É o que diz o arcediago Frollo, erguendo um livro e apontando para o edifício da catedral visto pela janela. “Um dente triunfa duma massa; o rato do Nilo mata o crocodilo; o espadarte mata a baleia; o livro matará o edifício”. Hugo glosa este tema ao longo de dez robustas páginas, sob a forma “a imprensa acabará com a igreja” e em seguida “a imprensa acabará com a arquitetura”.

Quando se refere à imprensa, não é propriamente o jornalismo, mas o livro impresso, o papel com letras. Notre Dame já foi chamada “o Livro dos Pobres”, porque diante de suas paredes, altares e nichos passaram sucessivas gerações de pessoas, ao longo dos séculos, que ali encontravam os símbolos remotos de uma sabedoria vedada aos sábios e acessível aos analfabetos.

As paredes de inúmeras catedrais estão cobertas de memes cifrados, para quem sabe o que significa cada um daqueles detalhes. É outra forma de saber ler, que prescinde da alfabetização das massas.


(ilustração: Edgar Moura)

O livro impresso, contudo, é ubíquo, está por toda parte, cabe em qualquer mão, deixa-se devassar por qualquer olho que lhe conheça as letras. Diz Hugo: “Toda civilização começa pela teocracia e acaba pela democracia”. E nesse trecho ele vê uma ruptura tecnológica proporcionando essa mudança. A catedral podia ser interpretada por analfabetos, mas era preciso ir até ela. O livro requer um certo treino; mas ele se multiplica e se amplia, até cobrir o mundo com um tapete de mensagens escritas.

No dia do incêndio, compartilhei um texto de Sara L. Uckelman, no Facebook, onde ela (estudiosa da Idade Média) diz:

Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas, são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam porque a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem novas ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem verdadeira importância. 

Ela vê a catedral como algo mais dinâmico do que o que Victor Hugo enxergava quando diz que “até surgir Gutenberg, é a arquitetura a escrita principal, a escrita universal”. Hugo vê os monumentos de pedra como algo majestoso que está virando um dinossauro pesadão, em luta contra os velociraptores que são os livros.

Curiosamente, é uma encruzilhada semelhante à de hoje, quando o próprio livro, o papel impresso, se depara com a leveza e a velocidade e a maleabilidade da linguagem digital. “Isto acabará com aquilo”. Chegou a vez do livro ser substituído por outra espécie dominante?

Quando Hugo diz que “a invenção da imprensa é o maior acontecimento da história” abre caminho para que o William Gibson possa dizer o mesmo do ciberespaço ou Philip K. Dick dizê-lo da simulação artificial do pensamento.

“Um livro faz-se tão depressa, custa tão pouco e pode ir tão longe!”, admira-se Hugo. Parece que há um sonho antigo na humanidade de fazer com que o registro do pensamento seja tão rápido, tão leve e impalpável quanto o pensamento propriamente dito; e parece que o mundo digital tenta realizar esse sonho.

Hugo descreve o “edifício” gigantesco, de “mil andares”, formado pelo conjunto de livros disponíveis ao ser humano. É quase o que um escritor de hoje poderia dizer da World Wide Web, das redes sociais, da Internet em si:

Incontestavelmente é esta uma construção que cresce e se levanta em espirais sem fim; lá há também uma confusão de línguas, atividade incessante, labor infatigável, concurso incansável da humanidade inteira, refúgio prometido à inteligência contra um novo dilúvio, contra uma submersão de bárbaros. É a segunda torre de Babel do gênero humano.

Hugo fala da torre feita de papel; nós de hoje podemos dizer o mesmo da torre digital que estamos guardando entre as nuvens. Isto acaba sempre com aquilo. Ao que parece, continuamos marchando numa direção em que o mais leve deixa para trás o mais pesado, o numeroso prevalece sobre o único, o imaterial se prova mais duradouro do que o físico. A catedral é substituída pelo livro, que é substituído pela tela eletrônica conectada, que seria no caso a terceira torre de Babel do gênero humano.








quarta-feira, 17 de abril de 2019

4457) Gene Wolfe, 1931-2019 (17.4.2019)




Outro dos grandes da ficção científica em todos os tempos nos deixou esta semana. Pouco conhecido no Brasil (não lembro da tradução de nenhum livro dele aqui), Gene Wolfe era tido nos EUA como um autor “difícil”, pela sua erudição e pelo estilo elíptico, cheio de alusões.

Ele gostava de obras sequenciais, uma série de romances que vão pouco a pouco ampliando um ambiente vasto e heterogêneo, com surpresas e revelações em cada capítulo. Cada livro era como a temporada inteira de uma série de TV, terminando numa encruzilhada que nos deixava ansiosos para ler logo o próximo.

Era um narrador de aventuras em larga escala, mas isso não o impedia de produzir contos curtos de grande impacto e originalidade.

A vida, afinal, não é uma coisa elevada, e sob muitos ângulos ela é exatamente o contrário da pureza. Sou mais sábio agora, embora não muito mais velho, e eu sei que é melhor ter todas as coisas, as mais elevadas e as mais rasteiras, do que apenas as coisas superiores.
(The Shadow of the Torturer, p. 223)

Tinha um temperamento lúdico, brincalhão. Um dos seus romances se intitula Pandora, by Holly Hollander, o que fez dezenas de redatores e diagramadores imaginar que Holly Hollander era a autora do livro. Sua coleção de contos mais famosa chama-se The Island of Doctor Death and Other Stories, and other stories, porque “The Island of Doctor Death and Other Stories” é o título da primeira história do volume.




Aliás, neste livro há três contos que são recriações literariamente sofisticadas dos contos de aventura e terror dos pulp magazines. Os três se intitulam respectivamente “The Island of Doctor Death and Other Stories”, “The Death of Dr. Island” e “The Doctor of Death Island”.

Tive a sensação, que tantas vezes experimentei ao conversar com pessoas idosas, de que as palavras ditas por ele e as palavras que eu ouvia eram coisas diferentes, e de que havia em sua fala uma profusão de insinuações, de pistas e de implicações tão invisíveis para mim quanto seu hálito, como se o Tempo fosse uma espécie de branco espírito que se interpunha entre nós e que com suas mangas pendentes apagava, antes que eu ouvisse, a maior parte do que tinha sido falado.
(The Sword of the Lictor, p. 212)

Gene Wolfe nasceu em Nova York, estudou no Texas, lutou na Guerra da Coréia, formou-se em engenharia. Durante muitos editou a revista Plant Engineering (“Engenharia de Indústrias”), e quando foi homenageado em 1984 numa convenção de FC lançou uma coletânea de contos intitulada Plan[e]t Engineering. Aliás, ele é um dos inventores da máquina que fabrica a batata Pringles.


Li pouca coisa da obra dele, que é vasta. O romance The Fifth Head of Cerberus (1972) é um tríptico de histórias que se relacionam distantemente umas com as outras, mas cada vez que a gente volta e relê um trecho vai descobrindo novas alusões e costurando uma rede vertiginosa de significados. As três histórias ocorrem num planeta de colonização francesa, e envolvem clonagem, pesquisas antropológicas, extermínio de aborígenes.

E essa garota com quem você sonhou (tu me perguntas), como era ela? Envolta em sombras, mas era como a descrevi. Nua. Nenhuma mulher é capaz de me excitar enquanto estiver usando uma simples nesga de vestimenta; e certa vez em Roncesvaux, quando tentei externar minha paixão por uma garota que se recusava a despir uma espécie de colete com as costas nuas, fracassei miseravelmente. Queria explicar a ela o que havia de errado, mas receava que ela risse de mim; por fim consegui falar, e ela riu, mas não como eu temera, e me contou sobre um homem que a fez usar um anel (que ele trouxe no bolso, e depois retirou do dedo dela assim que não foi mais necessário, pois era valioso), pois nada conseguia sem ele; (e desde então ouvi contar de outro homem em Sainte Croix que, incapaz de penetrar os muros de um convento, vestiu uma mulher com o hábito das freiras apenas para despi-la em seguida). Depois que ambos nos divertimos com essas histórias, ela fez o que eu lhe pedira, e descobri que usava aquele colete para ocultar uma cicatriz – que cobri de beijos.
(The Fifth Head of Cerberus, p. 234)

Sua obra mais famosa é a série The Book of The New Sun, que consta de quatro romances: The Shadow of the Torturer (1980), The Claw of the Conciliator (1981), The Sword of the Lictor (1982) e The Citadel of the Autarch (1983). É uma história complexa situada num mundo que parece uma ambientação de fantasia heróica, com espadas, cavalos, carruagens, mas que aos poucos começamos a situar no futuro remoto – é uma Terra que depois de viajar pelo espaço regrediu ao medievalismo. Uma das melhores (e mais "literárias") séries de FC que já li.


Há um quinto volume, The Urth of the New Sun, (1987) que é uma espécie de “adendo” à série principal.

No meu livro de poemas Os Martelos de Trupizupe (1984) fiz uma citação de um belo trecho dessa série, que tem entre outras coisas um fundo religioso (Wolfe era um autor católico, numa FC norte-americana povoada por protestantes e agnósticos).

No último livro da série, o personagem vem numa longa caminhada, e chega a uma praia, conduzindo consigo um Espinho que é considerado, na religião lá deles, um objeto sagrado, uma espécie de relíquia.  Ele faz, por algum motivo, uma troca deste Espinho por outro; e é neste momento que ele tem uma revelação sobre o verdadeiro significado daquele símbolo religioso que ele carrega e protege durante tanto tempo:

A idéia que me atingiu, ali na praia – e me atingiu de fato, fazendo-me mesmo cambalear – foi que se o Eterno Princípio residia naquele Espinho recurvo que eu trouxera ao pescoço durante tantas léguas, e se ele agora residia no novo Espinho que eu acabava de colocar ali, então ele residia também em todas as coisas, em todos os espinhos de todos os arbustos, em todas as gotas dágua do mar.  O Espinho era uma Garra sagrada porque todos os espinhos eram Garras sagradas; a areia em minhas botas era areia sagrada, porque vinha de uma praia de areias sagradas.  Todas as coisas tinham se aproximado do Pan-Criador e O tinham tocado, porque todas as coisas tinham brotado de Sua mão.  O mundo inteiro era uma relíquia.  E eu arranquei minhas botas, que tinham viajado comigo desde tão longe, e as arremessei às ondas, porque eu não devia pisar calçado em solo santo.
(The Citadel of the Autarch, p. 258)

O “Livro do Novo Sol” mereceu um glossário-estudo de Michael Andre-Driussi, Lexicon Urthus (1994), que se tornou uma referência obrigatória para qualquer estudioso da obra, bem como para seus tradutores. Os quatro romances ganharam um total de 7 prêmios e 16 indicações.


A obra de Wolfe é de um perfil único na FC norte-americana. Por um lado, ele era um engenheiro de formação, um articulador rigoroso de efeitos, com um olho sempre atento para a plausibilidade dos cenários delirantes que concebia. Por outro, era um humanista da velha escola européia e posso compará-lo a Jorge Luís Borges e a G. K. Chesterton, pela riqueza e  variedade de referências culturais. E tinha, como tantos garotos de sua idade, uma formação de leitor criado na jângal inesgotável da pulp fiction dos anos 1930-40-50.

Isso que vocês chamam de “nada” é o que mantém todas as coisas separadas umas das outras. Quando ele desaparecer, todos os mundos nascerão.
(The Fifth Head of Cerberus, p. 95)







domingo, 14 de abril de 2019

4456) Os contos de Neveryon (14.4.2019)




Finalmente acabei lendo este livro de Samuel R. Delany (1979), que já tinha há muitos anos, e do qual me lembrei ao saber do relançamento (nos EUA) da série completa de “Neveryon”, em quatro volumes (tenho os dois primeiros).

O livro é classificado como do gênero “Espada e Feitiçaria” (“sword and sorcery”), mas feitiçaria não tem nenhuma. Delany pratica um tipo de fantasia bem peculiar, que eu chamaria de “Espada e Economia Política”.

Porque é disso que trata o livro (além de muitas outras coisas): ele pega uma sociedade primitiva, antiquíssima, e examina o modo como ela se organiza socialmente (nobres, escravos, bárbaros, pescadores, artesãos, guerreiros), economicamente (é a fase de transição entre o escambo e o dinheiro, o que provoca várias teorizações e discussões entre os personagens), culturalmente (já existe um sistema de escrita), civilmente (há comunidades poligâmicas, tanto de várias esposas para um homem quanto de vários maridos para uma mulher) e politicamente (as aventuras do enredo se dão, em grande parte, em função do que chamamos de “intrigas palacianas”).

São cinco contos sucessivos, com personagens que sempre reaparecem mais adiante. A estrutura do livro é em espiral, porque a história se amplia e ao se ampliar acaba puxando de novo para dentro um personagem que tínhamos conhecido numa história anterior.

Eu lhe disse isso antes de começarmos, e agora lhe digo novamente, mas o contexto desta experiência de algumas horas pode fazê-lo ponderar de novo o significado do que foi dito. (p. 230)

Esta fala de um personagem revela uma das vantagens dessa narrativa espiralada: cada vez que reaparece um personagem, um objeto, uma cantiga folclórica, um brinquedo de criança, um costume tribal, lembramos que já ouvimos falar daquilo 50 páginas atrás. Mas agora esse detalhe surge enriquecido pelo contexto do que foi dito ou mostrado neste intervalo.

É um desses livros que ganham, e muito, com uma segunda leitura. Que virá enriquecer o significado da história que imaginamos já conhecer, por ter lido o livro até o fim.

Se eu tivesse que situar um possível leitor diria que é um universo próximo de Game of Thrones (por ser a Terra, mas uma Terra sem nada da cultura da Terra, da geografia ou da história que conhecemos) e da trilogia de Earthsea, de Ursula LeGuin (com dragões, mas sem magia).

O livro tem um curioso apêndice (atribuído ao acadêmico “S. L. Kermit”) onde se sugere que sua origem seria um texto antiquíssimo conhecido como “o Fragmento Culhar” (ou Kolhare), um texto pelo menos quatro mil anos mais antigo que a epopéia de Gilgamesh e os poemas homéricos. Cópias desse texto (que Kermit compara em importância aos Manuscritos do Mar Morto) foram encontradas em quase todos os idiomas da Antiguidade, o que sugere ser ele uma espécie de “Ur-texto”, origem de toda a literatura.


(Samuel R. Delany, nos anos 1970)

Delany usa esse recurso borgiano (exibição de erudição acadêmica em cima de um fato totalmente imaginário) para refletir sobre a origem da escrita e da linguagem. Ao mesmo tempo, os trechos traduzidos do Fragmento Culhar correspondem a elementos dos contos de Neveryon, que acabamos de ler:

“...Eu caminho ao lado de uma mulher que conduz duas facas...”
“...O amor entre o pequeno bárbaro e o grande escravo de Culhare...”
“...A mercadora deixa de vender vasilhas de três pernas para vender vasilhas de quatro pernas...”
“...O espelho de metal polido distorce tudo que vejo à minha frente e atrás de mim...”

São elementos aparentemente indecifráveis, mas que surgem plenamente justificados no decorrer da narrativa.

Delany/Kermit afirma estar recorrendo à tradução do Fragmento Culhar feita por uma professora, “K. Leslie Steiner”. A certa altura ele lembra a afirmativa de Claude Lévi-Strauss de que todas as versões de um mito deveriam ser estudadas em conjunto, para poder compreendê-lo; e que a teoria freudiana do Complexo de Édipo não passava de uma versão moderna do mito, a ser estudada em conjunto com as demais.

Ele se vale disto para considerar a tradução de “Steiner” uma versão a mais dos mitos registrados no Fragmento Culhar, e se pergunta:

Se algum escritor se dispusesse a pôr estas histórias no papel, de verdade, que tipo de reflexão poderiam elas constituir, fosse do mundo moderno, fosse da nossa história passada?

Os “Contos de Neveryon” são apresentados, ficcionalmente, como uma tentativa de adivinhar que histórias estariam sendo contadas no fragmento de escrita mais antigo do mundo ocidental. Uma espécie de glosa e homenagem a esses “motes” preservados precariamente durante milênios.










quinta-feira, 11 de abril de 2019

4455) Por que sou preconceituoso (11.4.2019)




Toda nossa vida intelectual se baseia em “idéias preconcebidas”. Usar o termo preconceito (que é sinônimo) é perigoso, porque ele adquiriu uma conotação ofensiva. Querem insultar alguém, tirá-lo do sério? Digam: “Você é uma pessoa cheia de preconceitos.”

Mas o fato é que somos mesmo. Só que é preciso pegar o bisturi e sair desdobrando fibra por fibra essa expressão, para saber o que ela diz de fato. Nenhuma idéia é totalmente preconcebida: só o seria se já nascêssemos com elas. As idéias se formam na infância, depois uma camada maior na adolescência, depois outra na casa dos 20 anos (quando estamos na faculdade, p. ex.), e assim por diante. Somos receptivos, basicamente. Nossa vida é um aprendizado constante.

Só que a quantidade de informações, conceitos, verdades abstratas etc. que temos de assimilar aumenta exponencialmente. Um homem de 30 anos sabe que existem no mundo mais coisas do que ele imaginava aos 15. Só que não dá para ir atrás de tudo, se informar sobre tudo, “ter opinião formada sobre tudo”.

E mesmo que dê, algum tempo depois vai ser preciso dar uma revisada, porque as coisas mudam.

Tem uma definição famosa dizendo que política é como uma nuvem: você olha ela está de um jeito, dois minutos depois você volta a olhar e ela está completamente diferente. Não é só a política. Tudo, praticamente, é assim.

Muitos dos nossos valores morais, por exemplo, se formam na infância, com a lavagem-cerebral-do-Bem promovida pelos nossos pais. Muita gente convive em paz com isso até o fim da vida, e não há problema algum. Outros, no entanto, sentem a necessidade de chutar-o-pau-da-barraca e fazer o contrário do que os pais lhes aconselhavam – e também não há problema, pela parte que me toca. Cada vida tem um desenho diferente. Boa sorte a todos.

Porque quando falamos em “idéias preconcebidas” estamos falando na verdade em “idéias que recebemos e nunca mais nos demos ao trabalho de questionar”. E começamos a construir coisas em cima dessas idéias. Opiniões, valores, etc etc. E quando um dia alguém as questiona, achamos mais simples fincar pé e dizer que AQUILO É VERDADE SIM, UMA VERDADE ABSOLUTA do que colocar em perigo tudo que edificamos naquela areia movediça.

Vou fazer uma lista de coisas que nunca questionei muito, e que para mim são uma espécie de “verdades estabelecidas”, mera questão de fé, ou de preconceito:

Dois mais dois é igual a quatro.

As pirâmides egípcias foram construídas por máquinas rústicas e a força muscular de escravos.

A Terra é um globo que gira solto no espaço, em volta do Sol.

Quem escreveu as peças atribuídas a William Shakespeare foi ele mesmo.

Quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral.

Quem matou John Lennon foi Mark Chapman.


Somente nessa listinha já tem uma mixórdia ininteligível entre as “verdades indiscutíveis” e os “clichês falsos” que são o arcabouço da nossa cultura. Não importa. Convivo bem com isso.

“Como assim, quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral?!” 

Sei muito bem que antes disso outros navegadores já tinham percorrido a costa brasileira. E que “descobrir” uma coisa que já existia é mera arrogância. O que havia aqui não era “brasil” nem nada, era uma terra já habitada, e que foi invadida por gente com mais logística e armamento superior.

Calcula-se (as fontes divergem) que o Brasil tinha pelo menos 1 ou 2 milhões de índios espalhados pelo litoral, e mais do que isso no interior, enquanto a população de Portugal em 1500 era de um milhão de habitantes.

Se os índios brasileiros tivessem tido a disposição de construir balsas no estilo da “Expedição Kon-Tiki”, bem que poderiam ter descoberto Portugal.

Esses “marcos históricos”, no entanto, se incorporam à cronologia dos fatos, por mais questionáveis que sejam. Quando um consenso errado é suficientemente amplo e estabelecido, tem que se levar em conta, o que não é o mesmo que concordar com ele.

Sabemos que Jesus Cristo (o Cristo histórico) não nasceu em 25 de dezembro do Ano Zero da Era Cristã, mas nem por isso vamos ressetar todos os calendários. Mesmo não sendo verdade, torna-se um parâmetro. Parâmetros são coisas que a gente é obrigado a usar no dia a dia, não pode parar pra questionar tudo, a toda hora. Mas deve questionar de vez em quando.

A Terra é esférica e solta no espaço? Eu acho que sim, mas esse é um parâmetro que deve ser questionado de vez em quando. Quando mais não seja, para que os defensores da Terra Esférica se vejam forçados a defendê-la com argumentos mais claros, demonstrações menos refutáveis, pequenas provas capazes de convencer uma pessoa de boa fé e de inteligência mediana, que não seja um fanático.

Existem os fanáticos da Terra Plana (que acreditam, sem refletir muito, numa bizarrice) e existem os fanáticos da Terra Esférica – que acreditam, sem refletir muito, numa coisa que lhes disseram, que eles nunca investigaram, e que eles são incapazes de explicar convincentemente até mesmo aos próprios filhos, se estes chegarem do colégio anunciando que um professor “provou” que a Terra é plana.

Filhos são uma boa medida para isto, para a nossa capacidade (ou não) de explicar por que acreditamos no que acreditamos.

Na História, na Geografia, na Astronomia, na Economia, na Política, na Arte, acreditamos em milhões de coisas que alguma figura-de-autoridade nos impôs, por bem ou por mal, e que achamos conveniente acreditar. Mas nunca corremos atrás. Nunca pedimos provas (ou então nos contentamos com as poucas provas que nos mostraram).

Como leitor de ficção científica, me acostumei desde cedo à hipótese de que as Pirâmides egípcias foram construídas por extraterrestres (leiam O Falso Planeta, de Peter Randa). Achei uma boa hipótese! Extremissimamente improvável, mas mesmo assim interessante. E eu não saberia contestá-la se não tivesse visto, nos últimos trinta anos, uma série de demonstrações práticas de como foi possível, sim, construir aquilo com a tecnologia “rudimentar” da época.

Construímos os prédios das nossas crenças num terreno que jamais examinamos para saber se ali embaixo tinha infiltração de água, tinha sumidouro, tinha cemitério indígena. A gente vai construindo às cegas, ao longo da vida, e quando na idade madura alguém questiona a firmeza do prédio, é mais fácil defender com unhas e dentes o nosso terreno do que confessar que não fazemos uma idéia muito clara do que tem ali.















segunda-feira, 8 de abril de 2019

4454) "A Conversação": os escutadores de segredos (8.4.2019)



Por causa do atraso de um voo noturno, precisei pernoitar longe de casa para pegar um avião na manhã seguinte, e a companhia aérea me botou num hotel. Foi entrar no quarto, ligar a TV e ver que estava começando uma exibição de A Conversação (The Conversation, 1974) de Francis F. Coppola.

Anotei isso no capítulo das coincidências, porque uma semana atrás eu estava placidamente em casa tomando a minha Itaipava e revendo pela enésima vez Blow-Up (1966) de Michelangelo Antonioni, o filme em que o de Coppola se inspirou parcialmente. (Numa entrevista que está no YouTube, ele diz que só viu Blow Up depois de já estar trocando idéias com o colega Irwin Kershner a respeito de um filme sobre espionagem eletrônica.)

O filme de Antonioni é sobre fotografia, o de Coppola é sobre gravação de áudio, mas ambos contam a história de um profissional calejado, introspectivo, desdenhoso, que registra à distância o encontro de um casal de jovens e depois, manipulando os próprios registros, percebe a trama e a execução de um assassinato.

Como se dissesse que toda história de amor tem por trás de si uma dança, uma coreografia de movimentos para escapar à morte, sem conseguir.


No filme de Coppola, o personagem é Harry Caul (Gene Hackman), um “araponga” escutador de conversas alheias, ou, como eles gostam de se apresentar, “um profissional da área de segurança, vigilância e informação”. Ele é contratado por um magnata para espionar o casal e gravar suas conversas. Os dois (de um modo assustadiço e dissimulado) se encontram durante a hora de almoço, numa praça cheia de gente, no centro dos prédios de escritórios, e falam andando sem parar, justamente como quem teme estar sendo espionado.

Harry Caul desenvolveu uma técnica própria com 3 microfones de distâncias variáveis, resultando em 3 diferentes rolos de fita que ele vai depois filtrar, ampliar, equalizar e justapor. As cenas de gravação e depois da recuperação das falas são um primor de montagem (Richard Chew; a edição de som é de Walter Murch), comparável às cenas semelhantes da revelação e ampliação das fotos em Blow Up (montado por Frank Clarke).

Há duas cenas notáveis, uma logo depois da outra. A primeira delas é a surrealista convenção de arapongas, de espiões eletrônicos. Coppola afirma que essas convenções existiam de fato mas foram tornadas ilegais depois de 1968. Eles recriaram uma delas para o filme. São estandes e mais estandes de sujeitos anônimos, nerdosos, envelhecidos, oferecendo suas engenhocas de áudio e vídeo camufladas; e Harry Caul, que até então a gente vê como um zé-ninguém, um mero sujeito arredio e mal-humorado, pela primeira vez é tratado como um ídolo, um craque, “o maior de todos”.


Logo em seguida, Caul leva os amigos (e concorrentes) para o armazém onde faz seus trabalhos. Ali se segue uma complexa sequência de diálogos e marcações onde fica evidente o ambiente cobra-engolindo-cobra em que vive esse pessoal de vigilância. Ninguém confia em ninguém, todos dão tapinhas nas costas de todos, todos estão prontos para furtar os segredos dos colegas na primeira chance que tiverem.

Coppola narra o filme com uma precisão detalhista que está a léguas dos ambientes limpos e vastas extensões de cor uniforme que a gente vê em Blow Up. Gene Hackman, soturno, introvertido, azedo, tem uma atuação minimalista e brilhante, usando roupas desmazeladas, relacionando-se de forma patética com as mulheres. Toca sax sozinho em casa, acompanhando um disco. Seus únicos instantes de prazer são quando se relaciona com instrumentos.



Há algumas piscadelas de olho na direção de Blow Up, como a música de jazz (Herbie Hancock no primeiro filme, Walter Shire no seguinte), sem falar no mímico de rosto pintado que passa perto do casal na praça, numa clara referência ao filme inglês.

O personagem de Harry Caul é também muito mais complexo e mais bem construído do que o Thomas de David Hemmings. Anos atrás, Caul gravou conversas políticas entre dois homens a sós, num barco, no meio de um lago; uma façanha técnica tão impossível que um deles atribuiu o vazamento da conversa ao outro, e mandou torturá-lo e matá-lo junto com a mulher e o filho. Caul é católico, e nunca conseguiu se perdoar por isso.


A Conversação é um filme sobre tecnologia e, curiosamente, eu imagino que um verdadeiro profissional da tecnologia digital de hoje, anos-luz à frente do material analógico e magnético usado pelos personagens do filme, entende tudo que se passa ali e se entusiasma do mesmo jeito. Porque não é o aparelho pesadão e antiquado que conta, é a mente de quem maneja o aparelho. São as pequenas jogadas criativas que se pode produzir com um aparelho qualquer; é o conhecimento refinado do que cada aparelho pode fornecer.

A manipulação política e a manipulação criminosa da tecnologia nunca vão deixar de existir, e ela repousa sempre (para benefício do criminosos e dos políticos) na existência desses nerds quarentões, que vivem para o técnica, que não pensam noutra coisa senão a técnica, que têm dificuldade até de ir para a cama com uma mulher porque a cabeça está pensando em filtros de áudio, em microfonagem de feixe direcional, em bugs miniaturizados e camuflados sabe-se lá onde. Eles só pensam nisso.

Coppola ganhou com este filme uma Palma de Ouro em Cannes, três indicações ao Oscar e uma carrada de prêmios por aí. Curiosamente, mesmo sendo um dos seus melhores filmes (para algumas pessoas, o melhor de todos) ninguém fala mais nele.

Hoje, na época das câmeras big-brother espalhadas pelas metrópoles, dos milhões de celulares fotografando tudo em todo canto, da espionagem do Estado e contra o Estado, da Mídia Ninja, das fake news, do Photoshop e do “audio doctoring”, é talvez mais presciente e mais atual do que os filmes que o diretor fez sobre a Máfia e sobre a Guerra do Vietnam.