(foto: Dylan Thomas)
Fiz
uma tentativa de tradução de um dos poemas mais conhecidos do galês Dylan
Thomas (1914-1953). Thomas é um poeta de um vigor verbal extraordinário.
Espirituoso e grave, ele tem a destreza das imagens inesperadas, reveladoras,
arrebatadoras, bizarras. Tem aliás um bom lote de contos fantásticos, todos
escritos com verve e imaginação.
Abaixo,
a minha tradução. O poema em inglês pode ser lido aqui:
***
Em meu
Ofício ou Arte Soturna
(Dylan Thomas – tradução BT)
Em meu ofício ou arte soturna
neste exercício de noturna paz;
quando somente a lua vaga
e os amantes jazem na cama
abraçados às suas dores,
eu laboro à chama fugaz;
nem ambição nem pão me inflamam,
nem o canto-sereia dos mercadores
nem o marfim da ribalta;
a mim basta a modesta paga
daqueles corações ocultos.
Não é para o orgulhoso que se posta à parte
que escrevo, sob a lua furiosa,
nestas folhas ao vento;
nem para esses mausoléus de mortos
com seus salmos, seus rouxinóis.
É para os amantes: seus braços protetores
em volta dos ombros, em todos os tempos.
É para esses desinteressados, para esses desatentos;
que nem ligam para meu ofício e arte.
***
Já
comentei aquele velho princípio segundo o qual “traduzir é perder, mas nós
escolhemos a perda”.
Ou
seja: às vezes o tradutor sacrifica a beleza do sentido de um verso para manter
sua musicalidade; outras vezes sacrifica essa musicalidade para preservar uma
alusão (mitológica, biográfica, qualquer coisa) que era cara ao poeta; outras
vezes o tradutor manda essa alusão para o espaço em troca de reproduzir um
efeito métrico de rara beleza.
Traduzir,
entre outras coisas, é também negociar perdas e danos. A gente perde, mas pode
escolher o que ganha.
Às
vezes pode-se mandar a rima para o espaço, numa tradução. Neste caso, mandei
para o espaço a métrica, porque o poema varia suas linhas entre 6-7 sílabas, e
eu liberei este aspecto.
Por
outro lado, tentei captar a idéia do que está sendo dito, e tentei manter a
mesma disposição meio aleatória de rimas do original, que seria algo como ABCDEBDECCA-ABCDECCA.
Não mantive sempre a correspondência fora da estrofe, ou seja, a rima “A” na
primeira estrofe não é necessariamente a mesma rima “A” usada na segunda; no
interior das estrofes, as rimas são obedecidas.
Notas
·
Quando
um poeta rigoroso usa explicitamente uma forma clássica como o soneto ou o
vilancete ou o hai-kai, ele se sabe vigiado. Um dos impulsos modernistas mais
saudáveis é o de a certa altura, depois de decolar usando as formas clássicas,
mandar as formas para o espaço e deixar que, se for uma história, ela se conte
a si mesma, e se for poema, que ele invente sua própria dicção e sua cadência
pessoal.
·
Não
sei se a estrutura de rimas de “In my Craft...” corresponde a alguma forma
clássica. São cinco rimas distribuídas em duas estrofes de onze e nove versos. Cada
estrofe começa com cinco rimas diferentes em sequência. Na segunda, há dois
versos a menos, e é como se a primeira estrofe tivesse perdido as linhas 6 e 7,
e com elas as rimas BD no primeiro esquema.
·
Esta
tradução aí ficou com uns versos quilométricos em relação às poucas sílabas do
verso em inglês. Já me disseram, na editora, que na proporção de palavras uma
tradução em português é 25% mais extensa do que o original em inglês. Se for
verdade, todo poeta deveria ter direito a usar um quarto de palavras a mais ao
traduzir um verso de Dylan Thomas ou de Bob Dylan.
·
E
às vezes é preciso inventar um efeito porque não se pode aproveitar o do
original, mas o que importa é que naquela linha, àquela altura do poema,
precisa acontecer algo parecido.
·
Existe
um verso de Shakespeare, mais de um talvez (que é isso, deve haver centenas), onde
as dez sílabas são preenchidas com dez palavras diferentes, formando uma frase
lógica e cristalina. Pode-se fazer o mesmo em português, mas é uma gincana,
como compor um palíndromo ou um monovocalismo. Deve-se (pode-se) exigir isso do
tradutor? Só se ele quiser, por amor à arte.
·
Toda
tradução é uma proposta de criar algo que ainda não se sabe o que vai ser, só
depois de criado. Traduzir é produzir uma obra que, naquele idioma, nunca tinha
sido formulada por extenso.
·
Às
vezes um poema nos seduz para traduzi-lo por ter uma idéia original, ou por um
ritmo aliciante. Outros, porque aludem a um mito. Outros, porque usam uma
linguagem inventiva. Em algum poema, o tradutor pode achar que as imagens
visuais são mais importantes, no poema original, do que o rigor métrico, por
exemplo. Ou vice-versa.
·
Essa
escolha se reflete na tradução. O que era mais importante para o autor, ao
escrever exatamente assim? Nunca saberemos, só nos é dado adivinhar e saltar no
escuro. Traduzir é psicografar. Em termos literários, claro.
·
Alguém
já disse: “O tradutor profissional deve fingir ser capaz de pensar igual ao
autor, acreditando nisso o bastante para de fato canalizar o espírito verbal
desse autor, e ao mesmo tempo desacreditando o suficiente para saber que é preciso
não extrapolar. Traduzir é a melhor das tarefas: reescrever, uma reescritura
aliás aprovada e encorajada pelo autor e pelos editores do original.”
Gostei do poema e da tradução.
ResponderExcluirAbraço.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEm meu ofício ou arte sombria
ResponderExcluirEm noite plena ainda exercido
onde a única fúria que vem, vem da lua
e onde amantes à cama estão tidos
todas as tristezas prenhes em seus braços,
e Elaboro meu fito cantando desta luz
Não por pão meu ou ambição minha
E nem por presunção ou comércio de magias
E nem do marfim dos palcos
Mas para os mínimos salários
em seu coração mas íntimo
E nem para o homem orgulhoso ao largo
É da furiosa lua que falo
Nestas páginas feitas de de ondas e espumas
Tampouco para altissonantes mortos
Com todos seus rouxinóis e salmos
é para os amantes e seus braços que falo
Enredados nas aflições de seus dias
A quem não se paga elogio ou salários
A quem não se dão pagamento ou elogios
Destes meu ofício e arte não fiam