Entre as muitas coisas que devo ao filme Blow Up (1966), de Michelangelo
Antonioni, está o fato de que ali ouvi pela primeira vez falar em Júlio
Cortázar, um escritor argentino que por vias transversas acabou se tornando
muito mais importante, para mim, do que o próprio cineasta italiano.
O filme se baseia no conto “Las Babas del Diablo”, que
está no livro As Armas Secretas (1959),
já traduzido no Brasil mais de uma vez. Há bastante diferença entre o conto
original de Cortázar e a história narrada por Antonioni. Em ambas, um fotógrafo
vai passear num parque, faz algumas fotografias e depois percebe ter registrado,
sem perceber, uma história um tanto sinistra que acontecia entre outras pessoas.
Li em algum lugar que Cortázar não teria ficado muito
satisfeito com as liberdades tomadas por Antonioni. Em todo caso, a adaptação serviu
para popularizar ainda mais seu nome, depois do sucesso de O Jogo da Amarelinha (1963), quando ele já vivia em Paris.
Numa carta de outubro de 1965 a seus grandes amigos,
Eduardo e Maria Jonquières, ele diz:
No dia 9, Aurora [Bernárdez, então esposa de Cortázar] vai para Roma. No dia 17 de manhã chego eu
a Paris, de onde sairei talvez no dia seguinte para Roma (because o
filme de Antonioni, que está em sua etapa de assinatura de contratos.
E noutra carta de fevereiro de 1966 ele complementa:
Assinei meu contrato com [Carlo] Ponti e voltei para Genebra; tudo em
14 horas. Foi como uma espécie de sonho muito belo, com uma longa vadiagem
solitária às duas da madrugada pela Piazza del Popolo, e os afrescos de
Pinturicchio em Santa Maria, em Araceli, e o cheiro de pão que paira sobre Roma
às oito da manhã. Antonioni começa a filmar em Londres em abril. Por enquanto o
filme tem um nome muito curto: História de um fotógrafo e de uma mulher numa
manhã de abril. Falei que agora vou chamá-lo de Mizoguchi Antonioni. Falei
mentalmente, porque ele não estava lá, mas dá no mesmo.
(“Cartas a los Jonquières”, p.
437 e 446-447.)
A brincadeira com o nome do cineasta certamente é uma
evocação do famoso filme de Kenji Mizoguchi, Contos da Lua Vaga, Pálida e Misteriosa Após a Chuva.
Revendo agora Blow
Up, e fazendo o necessário vasculhamento das trívias no Internet Movie Data
Base, me deparei com esta informação:
Informação aparentemente confirmada na escalação do
elenco:
Achei notável que Cortázar tivesse feito um “cameo”,
mesmo brevíssimo, no filme londrino de Antonioni. Quem viu o filme lembra que nas
primeiras cenas vemos o amanhecer do dia numa Londres ainda quase vazia, um
jipe cheio de mímicos pintados e mascarados fazendo brincadeiras pela rua, e a
porta de um abrigo para homens sem-teto, por onde saem os indivíduos pobres que
ali passaram a noite.
Entre esses sujeitos, geralmente velhos, pobremente
vestidos, de aspecto soturno, sai o fotógrafo Thomas (David Hemmings), que
tinha passado a noite ali, disfarçado (seu Rolls Royce ficou estacionado a
alguns quarteirões de distância) para captar “a vida como ela é”.
Será que Cortázar é visível nesse grupo? Repassei a cena
várias vezes sem encontrá-lo. Ele tinha mais de 2 metros de altura, de modo que
não seria difícil destacá-lo num grupo visto à distância. O mais parecido que
encontrei foi esse sujeito aí, olhando para trás, mas ainda assim as feições
não me parecem as de Julio.
No entanto, acabei encontrando um saite que dava outra
pista: Cortázar não aparecia ao vivo entre os hóspedes do abrigo para sem-teto: ele era um dos fotografados.
Stephania Amaral, a articulista, identifica a foto dele na
cena abaixo, quando o fotógrafo Thomas, horas depois, mostra ao seu agente, num
restaurante, as cópias das fotos que fez no abrigo.
Thomas diz: “Queria ter um montão de dinheiro. Para ser
livre.” O outro diz: “Livre? Livre como
ele?” – e mostra a foto de um mendigo barbudo, que seria justamente Cortázar
(segundo o artigo).
Há uma certa semelhança, mas que não me convenceu.
Repassando a cena, e imobilizando cada imagem, acabei encontrando esta aqui. (Toda
esta amostragem de fotos se dá a partir dos 36:00 minutos de filme, na cena do
restaurante.) É esse mendigo de boné,
por trás da vidraça partida, que imagino ser Julio Cortázar.
Para comparar, uma foto do escritor na década de 1960:
Não encontrei nos escritos de Cortázar, nem nos vários
livros de entrevistas com ele, nenhuma menção a uma participação dele nas
filmagens de Blow Up. Talvez tenha
sido uma dessas presenças fantasmáticas que nunca aconteceram mas que as pessoas
acabam descobrindo em retrospecto – mais ou menos como o próprio fotógrafo
Thomas fotografa um casal se beijando e depois percebe que havia fotografado um
assassinato.
De todo modo, Cortázar e Antonioni continuaram amigos,
como mostra a dedicatória desta foto enviada pelo escritor para o cineasta,
muitos anos depois, quando Julio estava viajando pelos Estados Unidos:
Caro Antonioni: Totalmente por acaso, quando atravessava o Vale da Morte,
acabei chegando a Zabriskie Point. Pensei em você, e mandei que tirassem esta
foto, que lhe envio agora com toda minha admiração e minha grande amizade.
Julio
Zabriskie Point
é o título do filme dirigido por Antonioni nos EUA, depois de Blow Up.
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