Glosava-se à vontade nos salões do tempo de Machado
de Assis, como ele próprio registrou. Pode não ter sido uma moda tão
avassaladora quanto a do soneto, ou tão cortesã quanto o álbum de autógrafos
literários. Não importa: foi moda, praticou-se, havia naqueles salões e
naqueles saraus provavelmente muita gente capaz de saber o que era um mote,
gente capaz de perceber se os versos estavam na ordem correta ou não.
Grande parte do “barato” produzido pelo ato de glosar
só ocorre quando se está diante de uma platéia que sabe a ordem (obrigatória,
com poucas variantes) em que as rimas devem aparecer.
Glosar para uma platéia de leigos é como tocar piano
para uma platéia de surdos.
No meu livro Cantoria:
Regras e Estilos (Ed. Bagaço, Recife, 2016) dou exemplos de personagens de Machado
de Assis glosando motes como qualquer poeta de hoje, nos bares de São José do
Egito ou de Campina Grande.
Um exemplo está no conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899).
Nesse conto, um grupo de jovens estudantes está em
casa quando chega Elisiário, um amigo mais velho da turma, que traja uma enorme
“opa”, ou capote. Surge o diálogo:
-- Aí vem a opa do Elisiário.
-- Entre a opa só.
-- Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas
primeiro há de glosar um mote. Quem dá o
mote?
Ninguém dava o mote.
(...)
-- Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e
recitou:
Podia
embrulhar o mundo
a opa do Elisiário.
Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns
instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em
forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha idéia do
que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha.
Machado tirou o corpo de banda e não glosou o mote
que ele mesmo havia proposto. Decidi preencher essa lacuna imperdoável na
literatura brasileira, e produzi estas três, comentando o episódio:
Musa, permite que eu cante
o porte de um brasileiro
boêmio cum cavalheiro
maltrapilho e elegante!
Ei-lo que chega, galante,
com traje extraordinário:
opa de milionário
e terno de vagabundo.
Podia
embrulhar o mundo
a
opa do Elisiário.
É um poeta erradio
que faz sonetos à Lua,
quando pára em cada rua
dos velhos bairros do Rio.
Sua opa (eu desconfio)
recobre todo o cenário:
prédio, igreja, campanário,
terra vasta e mar profundo...
Podia
embrulhar o mundo
a
opa do Elisiário.
Fiquei, confesso, assustado,
quando ouvi falar em opa...
Será um chapéu sem copa,
um capote avantajado?
Despistei, e disfarçado
olhei no dicionário;
e a peça do vestuário
confirmei em um segundo...
Podia
embrulhar o mundo
a
opa do Elisiário.
Podemos dizer que historicamente o hábito da glosa vem
de longe, vem dos ibéricos, e durou até a chegada triunfal do soneto, na segunda
metade do século 19.
Gregório de Matos, no século 17, foi o nosso
primeiro glosador a adquirir renome, e certamente um dos melhores até hoje. Glosava
(ao que se diz) por escrito, refletidamente, e também no calor do improviso e
ao som da viola.
No tempo de Machado, conforme os exemplos citados,
vê-se que a glosa era uma distração culta nos saraus pós-ceia das famílias de
classe média, tal como o hábito de botar as mocinhas para tocar piano ou os
rapazes para recitar sonetos. E era uma diversão descontraída de estudantes, de
jornalistas, de jovens em geral que tinham alguma veleidade literária, algum
estudo.
Surgia algum fato pitoresco? Alguém propunha um
mote, e alguém glosava de improviso.
E nem sempre é de improviso. Nem precisa ser.
Um aspecto que a gente não deve esquecer na arte da
glosa é a existência dos “motes engenhosos”, que a turma de hoje poderia chamar
“mote cabeça”. Porque exige muito pensamento e muita elucubração.
Não são motes para a gente glosar de improviso, em
cima da bucha. São motes para ouvir, copiar num papelucho, guardar no bolso, ficar
matutando, depois pegar um caderno, uma caneta, anotar algumas rimas, fazer as
primeiras tentativas, e depois sair dali com uma glosa que seja uma “resposta”
adequada para o mote.
Um bom exemplo de mote-cabeça é um mote famoso
glosado por Lourival Batista, o “Louro do Pajeú”. É um desses motes abstratos,
que podem significar qualquer coisa, desde que a gente saiba encaixá-los num
contexto compreensível. Deram para Louro:
A
parte que iluminou.
Que parte? Do quê? Iluminou quem, e como? Não se
sabe. É o poeta que vai ter de inventar um contexto onde essa frase se encaixe
de maneira lógica. E Louro glosou assim:
Do gosto para o desgosto
o quadro é bem diferente:
ser moço é ser sol nascente,
ser velho é ser um sol-posto.
Pelas rugas do meu rosto
o que eu fui, hoje não sou,
ontem estive, hoje não estou,
que o sol ao nascer fulgura,
mas ao se pôr deixa escura
a parte que iluminou.
Vê-se que toda a estrofe foi “deduzida” a partir da
imagem visual sugerida pelo mote, imagem de algo parcialmente iluminado. Podia
ser um cachorro, uma cadeira, uma ponte; Louro imaginou a Terra, parcialmente
iluminada pelo sol, e daí desenvolveu a idéia de comparar a mocidade com a luz
e a velhice com a escuridão.
Esse verso foi improvisado, no ímpeto de um baião de
viola em pé de parede? Pode até ter sido, mas eu o vejo mais como aqueles motes
“de algibeira” que a gente dá para um amigo e fala: “Tu não diz que é bom? Leva
esse aí pra casa”. E o cara fica na obrigação moral de trazer pelo menos uma
glosa no dia seguinte.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBraulio, tem uma história de um mote, embora infelizmente não me lembre de uma única glosa, em que Ivanildo Vila Nova e outro poeta, deram um verdadeiro show. O caso ocorreu em um sábado à toa, lá nos idos de 1977, no colégio EPUC aqui em Campina. Seu amigo (e meu irmão) Marcos Agra convidou os poetas para uma apresentação. O momento em que vivíamos era tenso e General Geysel, cuja marca do governo era "O Brasil é Feito por Nós" acabara de editar o Pacote de Abril, que entre outros males, fechou o Congresso, criou o senador biônico, prolongou o mandato do próximo general presidente. Pois bem cantoria vai, cantoria vem, e de repente entra uma moça no auditório com uma camiseta com o slogan de Geysel: O Brasil é Feito por Nós. Ivanildo pediu um mote e Marcos Agra, num insight próprio dos poetas, arrematou: "Se o Brasil é feito por nós então vamos desatá-los". Bicho, Ivanildo e o outro poeta soltaram seus improvisos criticando fortemente a ditadura. Alguém do palco pediu pra gravar a peleja, mas acho que por interveniência da dona do colégio, com os olhos saltando da cara, não permitiu. Até hoje lamento por que aquele espetáculo não foi gravado
ResponderExcluire não sei como Marcos, Ivanildo e o outro poeta não saíram presos de lá.