sábado, 2 de fevereiro de 2019

4430) João Furiba, XXXX-2019 (2.2.2019)




“Perde-se na noite dos tempos” a data precisa de nascimento do violeiro repentista João Furiba, falecido dias atrás na cidade de Triunfo (PE). Algumas versões atestam que ele tinha completado recentemente 100 anos de idade, outras dizem que não passou dos 89.

Me senti como quando fui escrever neste blog sobre a morte de Chuck Berry e, pesquisando na web, achei quatro datas de nascimento, bem afastadas umas das outras.

Furiba, cujo nome civil era João Batista Bernardo, foi um dos mais simpáticos e imprevisíveis cantadores de sua geração. Seus traços principais eram o humor, a imaginação e a mentira criativa, entendida aqui como o ato onde o sujeito inventa uma história claramente impossível, para deleite da platéia, e não para enganar alguém.

“Mentir, não para prejudicar outra pessoa, mas por amor à arte”, como aconselhava Ariano Suassuna.

Baixinho, magrelo, cheio de dentes de ouro, era um conquistador inveterado. Viajava o Brasil inteiro e diz-se dele que jogava no time de Garrincha – nunca se hospedava num hotel sem acabar fisgando alguma camareira compreensiva.

Conheci Furiba nos Congressos de Violeiros de Campina Grande, a partir de 1975; viajei com ele durante um mês inteiro na famosa Viagem dos Poetas ao Brasil, organizada por Giuseppe Baccaro em 1979, atravessando 13 Estados. 

Vi-o em dezenas de cantorias, em palco de teatro ou em pé-de-parede de botequim em bairro distante, e era sempre o mesmo. Metade dele era um velhinho bem humorado, metade era um garoto traquina.

Num dos Congressos de Violeiros de Campina Grande, ele cantava em dupla com Diniz Vitorino, quando Diniz se revoltou com uma decisão do júri, irritou-se e declarou que não cantava mais, saindo imediatamente do palco. Furiba ficou dividido entre a solidariedade ao parceiro e o compromisso profissional (sem falar na vontade de ganhar o festival). Fez um discurso que conquistou o público e ganhou a noite:

-- Meus amigos... eu me sinto como o soldado que em pleno campo de batalha fica separado de seu pelotão... Devo erguer minha arma e partir sozinho na direção da morte?

A casa veio abaixo de aplausos. Furiba não foi o campeão do Congresso (como a disputa era em duplas, ela teve que se retirar também) mas durante meses não se falou noutra coisa nos círculos cantadorísticos de Campina.

Em 1991, por iniciativa e esforço dos apologistas Urbano Vilar e Zelito Nunes, do Recife, foi publicado o livro de memórias Furiba – Falando a Verdade (Imprensa Universitária da Universidade Federal Rural de Pernambuco), onde a brincadeira já começa no título.



Segundo algumas más línguas, a mentira já começa na abertura do capítulo 1, pela data de nascimento, que alguns dizem ser falsa porque ele queria posar de “mais novinho”. Mas ele começa o livro assim:

Nasci no dia 4 de julho de 1931, no sítio Bomba d’Água, de Serra de Cachoeira, no município de Taquaritinga do Norte, no Agreste Pernambucano.

Minha mãe lavava roupas à margem do rio quando, num repente, eu vim ao mundo. Muito nova e inexperiente minha mãe correu assustada para casa.

– Mãe! – disse à minha avó. – Acho que abortei na beira dágua!

Minha avó correu para ver e encontrou-me, do tamanho de um preá, ainda envolto na placenta. Pegando-me com cuidado, levou-me para casa julgando que eu estivesse morto.

Quando fiz alguns movimentos, procuraram agasalhar-me melhor. Encubadeira não havia. Com os restos de algodão da roca, embrulharam-me e colocaram-me numa caixa de sapatos. (p. 5)

O livro, no modelo habitual de memórias de cantadores, resgata inúmeros trechos de cantorias em que o companheiro encerra uma estrofe largando uma rima qualquer que serve ao protagonista para improvisar um verso arrasador. Um exemplo:

Na estação do trem, antiga, de Campina (1976), Luiz Bonifácio também perguntou:

– Como vai teu armazém
  está grande o movimento?

Eu, Furiba, o grande, respondi:

– Está fraco o sortimento
  não sei se é má sorte minha;
  gastei duzentos milhões
  acabei tudo que tinha
  lá no armazém pode ter
  cem mil cuias de farinha.  (p. 68)

Gabar-se de riquezas fantásticas e de conquistas amorosas era a linha temática principal dos versos de Furiba, aquela que os admiradores iam sempre na expectativa de escutar. As brincadeiras eram ressaltadas pela vida modesta que levava, sua feiura simpática, seu comportamento modesto, afável.

Basta ver uma coisa: nesse livro que estou citando, ele além de fazer uma antologia dos seus próprios versos inclui uma enormidade de versos de Severino Pinto, o rei dos cantadores, seu grande parceiro. Mesmo na hora de puxar os refletores para sua pessoa, ele dá um jeito de puxar Pinto para perto de si, celebrar os grandes versos do amigo.

Na década de 1980 eu já estava morando no Rio e colaborei em alguns roteiros de shows de Elba Ramalho, que estreavam no Canecão. Num deles, Coração Brasileiro (1983), para falar dos nordestinos que vinham morar no Rio de Janeiro e tinham experiências diferentes, umas boas, outras ruins, fiz Elba recontar esse episódio de uma cantoria entre Furiba e Pinto do Monteiro:

No SESI de Caruaru, numa cantoria organizada pelo major Sinval (1964), eu, chegado há pouco do Rio de Janeiro, fiz esta sextilha:

O que se vê no Nordeste
é caminhão pau-de-arara,
o povo passando fome
que o suor desce na cara,
a diferença é enorme
do povo da Guanabara.

Pinto faz, então, uma das suas mais conhecidas estrofes:

O que vi na Guanabara
foi nego descendo morro
desastre no meio da rua
gente no Pronto Socorro
ladrão batendo carteira
mulher puxando cachorro. (p. 38-39)

Este episódio, que sempre arrancava uma gargalhada geral, servia como introdução para Elba cantar a música Nordeste Independente, parceria minha com Ivanildo Vila Nova.

Num depoimento ao final do livro de Furiba, o apologista Antonio de Catarina, de São José do Egito, faz essa descrição verdadeira e divertida:

Por este motivo, vou falar sobre o João Furiba, de pequena estatura, que tem o costume de cumprimentar os amigos encostando a cabeça no nosso peito. Talvez seja para nos auscultar o coração, e com ele entrar em ressonância. Diz compadre Gregório que é pra sentir o volume da carteira e calcular a “facada”. (p. 81)

Cantando com Pinto, Furiba viu o amigo terminar a sextilha dizendo:

Não sei que tem vaca magra
come tanto e não engorda.

E Furiba respondeu:

É porque feijão de corda
já está custando cem;
farinha por cento e dez
e milho caro também;
se Deus não pisar no freio
não vai escapar ninguém. (p. 10-11)

O livro de Furiba é cheio dessas tiradas, e de episódios que sendo Furiba eu penso logo que é mentira, mas sendo num livro impresso em papel, com capa e tudo, penso que pode ser verdade. Como quando ele lembra o tempo em que foi comissário de bordo da antiga Panair, e quando o general Castelo Branco fechou a empresa ele viu-se ilhado na Itália, vagueou por Milão, Napoles e Roma até encontrar num aeroporto um piloto da Varig que era seu amigo e o contrabandeou de volta para o Brasil.

Furiba assevera que em 1961 sofreu um acidente num voo com um DC-7 da TAP, que vinha de Portugal, fazendo a rota Lisboa-Rio-Lisboa.

Ele caiu na Fazenda Modelo, perto do Recife. Eu estava nele como segundo comissário. Dessa vez vi morrerem 18 pessoas queimadas. Fui pouco atingido mas em 1964 comecei a sentir dores na espinha.

A opção pela viola lhe trouxe amigos, viagens seguras por chão de terra, namoros sem conta, e a modesta fama de quem brilha no céu da poesia improvisada.

Seria possível montar um belo livro sobre os versos e as aventuras de João Furiba, o Bem Amado. Com mentiras e tudo, para ser um livro mais fiel à verdade da vida.

Vi-o pela última vez uns três anos atrás, em São José do Egito, durante a “Festa de Louro”. Eu estava bebendo nas barracas quando vieram dizer que Furiba tinha chegado. Fui até lá. Ele estava numa cadeira de rodas, cercado de fãs. Se já era magro quando no auge, agora depois dos 90 estava parecendo uma espinha de peixe.

Cheguei perto, passei o braço nos seus ombros, ele me olhou com olhos meio desfocados e um sorriso firme. Eu disse:

– Fala, Furiba. Tá me conhecendo? É Braulio, lá de Campina Grande.

Ele sorriu e respondeu:

– Braulio? E cadê o cabelão? – E fez o gesto, descrevendo a cabeleira de dois-palmos que eu usava na época.

Dias atrás, quando circulou a notícia de sua última decolagem, começaram a pipocar no Facebook dezenas de postagens cheias de saudade e homenagens ao grande repentista.

Zelito Nunes postou um texto de despedida, e o mote: “Depois de Pinto, o maior, / Furiba nos deixa agora.”

Deixei lá esta glosa de lembrança, e um abraço ao poeta que se foi:

Magro, pequeno, mirrado,
cheio de dentes de ouro,
tinha no peito um tesouro:
um coração bem amado.
Foi querido e respeitado
por este Brasil afora,
e hoje não mais namora,
nem é mais dono da Ford...
depois de Pinto, o maior,
Furiba nos deixa agora.




(Zelito Nunes e João Furiba)









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