(na foto: Ursula K. Le Guin)
A imprensa e as
redes sociais andaram nos avisando que era o primeiro aniversário da morte de
Ursula LeGuin. Um ano atrás, eu tinha finalmente encarado ler por inteiro a
trilogia original de “Terramar”, que a celebrizou como autora de fantasia. Mais
do que competente, foi inovadora em muitos aspectos.
Além da
imaginação narrativa, LeGuin tinha a vantagem adicional de ser uma autora de
formação clássica, numa família de professores, muito articulada, e que sabia
discutir assuntos literários com uma voz literária. Nesse ponto, vejam só, eu
diria que ela é parecidíssima com Harlan Ellison e com Raymond Chandler, por
exemplo. Todos têm textos críticos e literários de grande valor, e cada um
escreve como é, e teoriza como é, com tudo que sabe, com todos os seus recursos
de escrita. Nem adotam uma “persona” pomposa, nem se escondem atrás de cortinas
de miçangas factuais, nem botam pose de profetas. A voz interior do ensaio é a
mesma do conto.
Da série de
Terramar eu tinha lido apenas a coletânea Tales
of Earthsea (2001), que tem histórias muito perceptivas, descrições tersas
e precisas, e o fenômeno da magia-com-regras sendo explorado de vários ângulos.
LeGuin sabia
ilustrar bem os princípios narrativos que defendia, e o seu modo pessoal de ver
a fantasia. Há pelo menos duas coletâneas muito boas de seus artigos teóricos,
resenhas, pequenos ensaios, discursos: The
Language of the Night (1979) e Dancing
at the Edge of the World (1982). Vários desses textos são disponíveis
online (há links nos respectivos verbetes da Wikipedia).
Numa resenha
onde comenta as Fábulas Italianas de
Ítalo Calvino ela começa, como faz muitas vezes, comparando etimologias, para
ver as mutações de sentido e de origem daquela idéia, quanto mais se remonta
atrás no tempo.
Diz ela que a
palavra inglesa para fada, fairy, em
italiano se diz fata, que segundo ela
vem, tal como a palavra inglesa “fate”, destino, do termo em latim fari, falar. (Eu fico o tempo inteiro
com uma comichão de que fare também é
algo como “fazer”, conforme o italiano.)
O dicionário
online que sempre consulto (www.etymonline.com) sugere que a
cronologia reversa de fairy remonta
aos anos 1300 com a forma faerie e o
sentido de “a pátria ou o lar de criaturas lendárias; terra-das-fadas (fantasyland)”.
O antecessor
deste é o Francês Antigo faerie,
“terra das fadas, encontro entre fadas; encantamentos, magia, bruxaria,
feitiçaria”. E esse termo por sua vez descende de fay, do latim fae, e do
latim fata, as Fadas, forma plural de
fatum, “aquilo que já está escrito;
destino, fado (destiny, fate).
Isso nos
encaminha numa direção curiosa, porque a publicidade e a ilustração popular
insistem na fada como uma criaturinha angelical e sexy, uma espécie de Barbie
do além. Dentro de “Fadas” cabem, é bom lembrar, desde as rechonchudas e
boazinhas fadas-madrinha de tantos contos quanto a Fada Carabossa que gosta de
estragar a festa dos outros.
Há um provérbio
que diz: “Lá como cá, más fadas há”.
O mais
interessante deste passeio é o plural de Destino. As destinas. E tudo isso nos
prepara para a revelação final: toda essa árvore genealógica está pendurada de
cabeça para baixo numa raiz indo-européia, bha,
que entre outros sentidos traz “falar, dizer, contar”. O que é o Destino? É
algo que foi falado, dito, contado. E num certo sentido o que foi contado é
porque já está escrito. São coisas que já têm um formato para acontecer.
E as fadas são
o que? São subdivisões desas coisas feitas, são criadas por alguém, são também
criaturas. E chamam-se “fadas” justamente (é mais ou menos por esse caminho que
o nó chega ao nosso brasileiro de agora) porque foram feitas, foram
“fa(zi)das”. É a mesma compactação que nos fazer dizer em vez de “eles foram
pegados” “eles foram pêgos”. Elas foram fazidas, elas são fadas.
As fazidas são
criaturas que já aconteceram. A história delas, como a da mulher fatal de La Invención de Morel (1940) de Bioy
Casares, tem que reacontecer sempre da mesma maneira. São fadas por isso, foram
feitas para encarnar a condição de quem está presa no cristal de um encantamento
qualquer.
Se usarmos a
forma masculina o raciocínio é parecido. Quem gosta de música sempre considera
a palavra fado como uma forma de
canção que a musicalidade de Portugal transformou em portuguesa, caso de fato
tenha tido outra origem. Mas na ala da literatura encontramos a palavra fado em sua medula original, seu sentido
primal de destino, de fatalidade, de enredo inescapável como um Maelstrom. O fado
é algo maktub, está escrito nas estrelas, está dito. E feito.
As fadas e os
fados. As fazidas e os fazidos. São seres que vêm interagir com os indefesos
humanos, com os ainda não-feitos, ainda não-prontos, ainda na
versão-beta-em-preparo, ainda sujeitos ao acaso, à sorte, ao azar, ao milagre
aleatório, ao susto randômico. Comparado às fadas e aos fados, o ser humano
(diria Darcy Ribeiro) está ainda em pleno fazimento.
As criaturas da
Faerie, termo que continua a circular
com vigor, vivem como que por trás de um vidro invisível e intransponível que
nos separa de seu universo. É como se fossem criaturas dotadas de uma vaga
memória, uma vaga noção de que estão há milênios revivendo aquilo, como um
gramofone casualmente religado recomeçaria a tocar vezes sem conta o mesmo
disco fonográfico que ali restara.
Quando dizemos
que alguma coisa parece um conto de fadas estamos num terreno meio
escorregadio. O conto de fadas para mim não é um conto cheio de deslumbramento,
de beleza, de maravilhamento, de sense-of-wonder,
nem é simplesmente uma história das dificuldades pré-casamento entre um rapaz e
uma moça.
Do ponto de
vista de quem escreve, o contato entre o “mundo real” e a “faerie” é o contato
entre mundos contíguos, muito semelhantes, com pessoas de verdade com muita
coisa em comum com os humanos, mas obedecendo a leis diferente de espaço, de
tempo, de personalidade, etc. Assim como
nós humanos não podemos, por exemplo, cancelar a morte, ou ficar livres da
força da gravidade, as fadas e os fados não podem evitar a própria ruína ou
tragédia, quando é o caso. Estava escrito. O oráculo, anos atrás, explicou que
isso ia acontecer.
Explorar um
repertório inesgotável (e sempre novo) de “confronto de proibições” pode ser
uma boa diversão para quem escreve sobre fadas. Sempre é possível imaginar uma
“lei” ou “maldição” diferente sobre elas, e que produza bons resultados na
trama.
Bráulio, costumo acompanha-lo por aqui sempre com muito prazer. Tens uma escrita de boa conversa que me faz sentir,lendo,estar te ouvindo falar numa roda de amigos. Uma qualidade rara. E este então me encantou, com sua etimologia fazendo a palavra delirar... me lembrou a "Legenda Áurea", do Jacopo Varazze,uma coleção de "vida dos santos" católicos medieval,onde o autor começa sempre a biografia do santo pelo significado do nome dele, uma etimologia que se empenha em reduzir o real humano num "exemplum" ideal de fé e vida cristãs,querendo reduzir o "que se estar fazendo"- o humano - em "coisa feita" - o santo - ou fazida,como você bem diz em relação às fadas, é bem verdade que por outras razões,catequéticas neste caso.Um texto estimulante. Muito bom!. Um abraço.
ResponderExcluirObrigado, Paulo. Eu gosto de investigar meio amadoristicamente essas etimologias. Às vezes faço uns exercícios de especulação ficcional -- suposições que sei não serem verdadeiras, mas que fornecem interessantes associações de idéias. O leitor deve se acautelar! Um abraço.
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