A capa faz parte do livro? Sim, mas ela em geral é tratada, em relação ao texto literário, como uma ilustração. A capa está para o texto assim como o cartaz está para o filme e a peça de teatro. Serve de anúncio e de interpretação do que anuncia, mas é um objeto externo, existe noutro plano de realidade.
Será possível imaginar livros
cujas capas sejam parte do texto, sirvam de referência constante para o texto,
obedeçam às mesmas restrições estilísticas a que os textos estão sujeitos?
Veja-se
Necrológio, de Victor Giudice, uma coletânea de contos publicada em
1972. Na capa lê-se o nome do livro, o nome do autor, e este trecho: “No fim de um ano de trabalho, joão obteve
uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. João era moço. Aque---“.
O
texto se interrompe, mas prossegue intacto dentro do livro, na página 1 (não
numerada): “...le era seu primeiro
emprego.” Não me lembro de muitos livros cuja narrativa começa,
literalmente, na própria capa.
Existem
livros em que a capa fica, de maneira indireta, contaminada pelo próprio
conteúdo. É o que ocorre na edição original de La Disparition de Georges
Perec (1969) – o famoso “romance em francês que não usa a letra E” .
A
editora Gallimard tentou preservar ao máximo essa regra estabelecida pelo
autor. O título aparece não impresso, mas destacado em relevo, na capa branca.
O texto do livro é impresso em tinta preta, portanto na capa e contracapa tudo
que está em tinta preta obedece à regra do “romance sem E”.
Nos
trechos em que o E tem que aparecer (no nome do autor, por exemplo), é usada a
tinta vermelha, para indicar outro nível do texto.
Douglas
Hofstadter é um cientista de computação norte-americano que fez um dos livros
mais interessantes sobre tradução literária. Ele trabalha com assuntos mais
amplos: pesquisa de inteligência artificial, o uso de símbolos, a transmissão
de informação original sob outras formas, etc.
Ora, tudo isto tem a ver com a tradução literária, que ele examina de
diversos ângulos.
Clément
Marot, um poeta francês, escreveu certa vez um poemazinho de ocasião, “Ma
Mignonne”, para uma adolescente, sua amiga, que estava doente.
Hofstadter
ficou obcecado pela complexidade técnica do poema aparentemente simples, e
produziu um livro de 632 páginas, Le Ton Beau de Marot – In praise of the
music of language (1997) examinando dezenas e dezenas de traduções (a
maioria delas encomendadas por ele mesmo) de “Ma Mignonne”.
Ora,
o poema original aparece na íntegra na capa do livro, projetado de maneira
fúnebre na cruz de uma sepultura, mas acessível a qualquer instante para quem
quiser comparar qualquer uma das incontáveis versões internas com o original
francês.
Guimarães
Rosa tinha um cuidado maníaco com a produção de seus livros, e em Primeiras
Estórias (1962) ele incumbiu o ilustrador Luís Jardim de desenhar na capa e
contracapa uma série de elementos ilustrativos dos contos (personagens,
símbolos cabalísticos), que ele mesmo, Rosa, esboçava com a habilidade de bom
desenhista.
Além
disso, Primeiras Estórias, em sua edição original pela editora José
Olympio, traz nas orelhas da capa um índice ilustrado. Junto ao título de cada
conto vem uma “fita” de figurinhas que resumem visualmente a história do conto.
Se não é um caso único, o “índice ilustrado” de Primeiras Estórias é uma
raridade.
O
francês Raymond Roussel era um poeta excêntrico que explorou maneiras insólitas
de compor textos em poesia e prosa; ele conta essa experiência em Comment
j’ai écrit certains de mes livres (1935).
Seu
longo poema Novas impressões de África (1932) tem como peculiaridade o
uso abundante de parênteses dentro de parênteses, criando textos encapsulados
uns dentro dos outros, às vezes com cinco níveis de profundidade.
A
tradução em inglês desse livro reproduziu na capa essa estrutura peculiar. Nela
vemos o texto Raymond Roussel / New impressions of Africa / Translated and
introduced by Ian Monk / with fifty-nine illustrations by H.-A. Zo / Atlas
Press organizado como se se tratasse de parênteses, uns dentro dos outros.
Todos
estes livros, tão diferentes entre si, mostram uma disposição em tratar “a capa
como parte do livro”. Não importa se isso foi idéia do autor, ou se foi do
editor, ou do ilustrador: quem trabalha num livro com esse grau de imaginação,
de criatividade, está pensando no resultado final. Está tentando fazer a obra
literária se expandir por todo o suporte que a conduz.
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(Uma versão
ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Metáfora
Editora Segmento, SP, em fevereiro de 2013)
Bacana!
ResponderExcluirOi, Braulio, só vc pra garimpar singularidades! Gracias abrrr.
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