Hoje se completam 51 anos da morte de João Guimarães Rosa, e acabei folheando um livro que li recentemente: Joãozito – Infância de Guimarães Rosa, de Vicente Guimarães (José Olympio/INL-MEC, 1972).
Vicente Guimarães está
meio esquecido agora, mas foi um célebre autor infantil quando eu era menino,
principalmente em textos veiculados na revista Sesinho, editada pelo SESI. Ele usava o pseudônimo “Vovô Felício”
para assinar seus contos curtos, muito divertidos, e suas obras paradidáticas. Seu
personagem mais original era João Bolinha, um boneco cujo corpo e membros eram
feitos de bolas articuladas umas às outras.
Lembro com clareza de dois
livros infanto-juvenis seus que li e reli quando garoto: Lenda da Palmeira (1944), sobre a fundação de Belo Horizonte, e a
biografia de Rui Barbosa, Rui (1949).
Vicente era o irmão mais
novo de “Chiquitinha”, D. Francisca Guimarães Rosa, mãe do escritor. Um tio
meio “primo”, porque era apenas dois anos mais velho do que o sobrinho, e os
dois compartilharam leituras, brincadeiras e aventuras. Uma amizade que durou
até a morte de Rosa em 1967.
Joãozito é
menos uma biografia do que uma rememoração nostálgica, com a previsível
exuberância de afetos e louvores. Um livro simpático, que vale menos pela
análise do que pela profusão de pequenos detalhes e episódios esclarecedores de
aspectos do escritor e da obra.
Torna-se meio datado e
cansativo pelo fato de Vicente tentar emular a linguagem do sobrinho, num jogo
meio brincalhão, meio hagiográfico: “E
como é gostoso, agradável, escrever assim, laborando as frases, enfeitando-as
com palavras vigorosas, lendo-as e relendo-as, riscando, corrigindo, transformando,
realizando hipérbatos e sínquises para mais vivazear o texto ou ao lugar-comum
fugir”.
Com a repetição de um
número limitado de truques, o estilo acaba lembrando mais o Yoda de Star Wars do que Rosa: “Tudo que você fez em literatura, Joãozito,
genial foi.”
No livro de “Vovô
Felício”, contudo, encontram-se fartas informações sobre a cidade de
Cordisburgo, seu ambiente social, sua história política; sobre a família
Guimarães; sobre os personagens pitorescos do lugar; sobre férias, fazendas,
gado, boiadas, brinquedos, leituras.
Vicente esclarece pequenos
detalhes da formação cultural do escritor:
Em março de 1917, chegou a Cordisburgo,
como coadjutor, o Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano, holandês. (...)
[Com ele, Joãozito] além de curiosidar o holandês, aperfeiçoou os estudos de
francês. Foi Frei Canísio o seu professor e não o Frei Estêvão, como noticiaram
em diversas biografias suas, publicadas em jornais e livros. Houve informação
errada. (p. 29-30)
A boa memória de Vicente o
faz evocar pequenas lembranças da meninice que depois Rosa iria reproduzir em
seus livros.
Como esta cantiga, usada
por ele em “A Hora e Vez de Augusto Matraga”:
Eu já vi um gato ler
e um grilo botar escola;
nas asas de uma ema
vi jogar jogo de bola.
Só me falta ver agora
cender vela sem pavio
sungar pra riba a água do rio,
dar louvores e macaco,
o Sol se tremer com frio
e a Lua tomar tabaco. (...)
(p.
78)
E este episódio de brabeza
cômica, usado em “Corpo Fechado”. Um valentão está na bodega quando chega
outro, olha-o de cima a baixo e diz ao caixeiro: “Você, rapaz, tem aí dessas facas que entram na barriga e murgueiam?”
O outro engrossa o cangote e pergunta também ao rapaz: “Ei, moço! Você tem aí dessas balas mauser que batem na testa e
chateiam?” (p. 80)
Aqui e acolá pequenas
pistas vocabulares, como a existência de um tal Alferes Felão, sujeito de maus
bofes lá de Cordisburgo, que acabou virando nome comum na prosa rosiana, no Grande Sertão: “Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas
filhas-de-deus – felão de mau”.
Um detalhe que sempre me
chama a atenção é o do gosto de Rosa pela literatura policial. Aqui e acolá em
suas conversas ele cita o Mistério
Magazine de Ellery Queen, uma leitura recorrente, que muito o elevou em meu
conceito.
Diz Vicente que um dia, os
dois já morando no Rio de Janeiro, Joãozito, que estudava para o exame no
Itamaraty, ligou para o tio-amigo. Estava com a cabeça agoniada, estudando há
mais de vinte horas seguidas, precisava conversar para não ficar doido. Vicente
correu ao Hotel Fluminense, onde Joãozito se hospedava.
Eu morava no Andaraí. O bonde que
passava por minha casa ia justo atravessar a Praça da República. Não me
demorei.
Ao chegar no quarto do hotel, bati na
porta. Escutei: “Entre”.
Encontrei meu sobrinho nu, deitado,
coberto por um lençol, comendo ostras e na mão tendo um livro policial.
Admirei-me: “Então você me chama porque
está cansado de estudar e eu o encontro lendo romance policial!”.
Explicou: “Só assim consegui desviar meu
pensamento. O romance policial me distraiu. Recurso lembrado só depois de meu
telefonema a você”.
Esse concurso para o
Itamaraty, em que Rosa foi aprovado em segundo lugar, deu-se em 1934. Nada me
impede de especular que ele poderia estar lendo algum volume da Coleção Amarela
(Editora Globo, Porto Alegre), como Na
Pista do Alfinete Novo de Edgar Wallace (um dos preferidos de Ariano
Suassuna), que saiu em 1933.
Joãozito é
assim, cheio de pistas para os futuros biógrafos, inclusive esta:
Estudioso, culto, competente, possuía
memória invejável. No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras,
almoçou, com sua mãe, em meu apartamento. Procurando obter minha opinião quanto
à tonalidade de voz que devia manter ao microfone, reproduziu de cor, quase
perfeita, a parte inicial de seu discurso, que gravamos, para que ele ouvisse e
julgasse. Temos a fita. Lembrança preciosa. (p. 98)
“Temos a fita”!
Rosa era
supersticiosíssimo, e sabe-se o quanto se cercava de rituais protetores. Temia
a idade de 58 anos, porque (segundo Vicente) “de seus sete tios amigos, quatro morreram quando viviam os cinquenta e
oito anos.” Rosa morreu com
cinquenta e nove.
Na parte final do livro
vêm transcritas as cartas de João, muitas delas fornecendo opinião, crítica e
conselho sobre os textos do tio. E ele nunca abre mão de seus princípios
estéticos:
Nisso, aliás, como em tudo o mais, o que
se passa aqui é mero reflexo do que vai pelos países cultos. A palavra de ordem
é: construção, aprofundamento, elaboração cuidada e dolorosa da “matéria-prima”
que a inspiração fornece, artesanato. (carta
de 1947, p. 132)
É de se lamentar um pouco
a diplomacia de Vicente Guimarães, omitindo, em sua transcrição das cartas, os
nomes dos escritores contemporâneos que Rosa critica, confidencialmente:
Outros, são universalmente considerados
como cretinos. Um exemplo: o nosso conterrâneo [.....], se bem que entendido um
pouco de gramática e tendo jeito para folclorista, faz de palhaço, quando se
mete a proferir sentenças sobre arte. (...) Exemplo: o meu amigo [.....], se
bem que tendo, realmente, o “Fogo sagrado” e muita seiva rica, tomou um bonde
errado; construiu sua obra baseando-a no tosco e no instintivo, e agora... (p.
138-139)
Em outra carta transcrita
no livro, para sua prima Lenice, do Curvelo, ele declara em 1966:
Posso dizer sinceramente que, de tudo o
que escrevi, gosto mais é da estória do Miguilim (o título é “Campo Geral”), do
livro Corpo de Baile. Por que? Porque ele é mais forte que o autor,
sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas
tipográficas. Mas, o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mistérios do
mundo afetivo. (p. 173)
Joãozito é
um livro precioso; puxando com pente-fino as adiposidades, os pastiches de
estilo, as repetições, as compreensíveis hipérboles afetivas de quem rememora
uma pessoa querida e importante, resta muita, muita coisa sobre o ambiente que
formou a cabeça-miguilim do autor de “Campo Geral”.
Para quem quer ter uma
idéia do ambiente histórico, social e familiar do autor, é leitura
indispensável.
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