domingo, 11 de novembro de 2018

4403) Mandacaru Vermelho (11.11.2018)




O bom de certos trabalhos que a gente pega é que tudo é pretexto pra fazer pesquisa, que é um dos lazeres mais produtivos que a nossa espécie já inventou.

Fui checar algum detalhe de ficha técnica e achei no YouTube uma versão restaurada de Mandacaru Vermelho (1961), um longa de Nelson Pereira dos Santos que eu não lembrava de ter visto por inteiro. Não tinha, então vi agora. É considerado por meio mundo como um ensaio para Vidas Secas.

Nelson levou a equipe para Juazeiro da Bahia para filmar seu roteiro baseado em Graciliano, mas tinha chovido, o sertão estava verde, e mesmo o filme sendo em preto e branco o ambiente que ele precisava não estava existindo. Ele aproveitou e filmou essa espécie de faroeste caboclo.

Chamaram esse tipo de filme de “nordestern”, em alguma época, e o filme de Nelson, mesmo sem cangaceiros, tem uma linha direta com o cangaço, conforme tornado famoso pelo filme do paulista Lima Barreto, O Cangaceiro (1953). Sem falar que essa geração de Nelson, dos que estavam ma primeira década do ofício, tinham os faroestes P&B de John Ford como uma referência de respeito.

Tendo que improvisar um argumento novo em cima da perna, Nelson Pereira, na época com seus 33 anos, recorreu a um arquétipo antigo do cordel e do filme de cowboy, o Vaqueiro Que Róba A Filha Do Fazendeiro. É diferente de montecchios-e-capuletos. É o plebeu que invade com seus cromossomos bastardos um sangue-azul qualquer.

Com isso ele armou um desses tantos épicos de famílias-em-feudo, famílias donas de terras e sempre em guerra para defendê-las; histórias de que todo sertanejo sabe carradas de exemplos.

Quem lidera a caça ao casal fujão é uma matriarca seca, ríspida, engasturada, de revólver em punho. Ela é o fator de arrasto da narrativa, mais até do que o casal de apaixonados em fuga. Digamos que o casal de noivos puxa a narrativa; a matriarca a empurra, com vigor. Ao longo da caçada humana, há vários entreveros de soco, de tiros, de facão, há perseguições e emboscadas, há armadilhas (mas que qualquer um já prevê) e surpresas (que hoje não surpreendem mais).

Dizem que Nelson não gostava do filme, talvez por modéstia, porque pegou para si o papel do romeu. Algumas violências são um pouco chocantes hoje: algumas das mortes a sangue frio, por exemplo. No filme, são cenas brutais, mas vistas com certa indiferença pelo narrador. São partes de uma cena. É pêi, e bufo. Hoje, seriam exploradas ate o último pixel e o derradeiro segundo.

Há uma luta final de facão que resulta bem coreografada, um dever-de-casa que foi feito. Porque o cinema a essa altura tinha uma coreografia já catalogada de ataques, bloqueios de lâmina, jogos de pernas, ameaços e negaceios, estocadas fatais. Já em 1961 existia um acervo reconhecível de “passos” que qualquer comedor-de-castanha-confeitada de olhos grudados na tela já sabia reconhecer.

Um dos objetivos do clichê cinematográfico é dizer a uma faixa do público: fique à vontade, é aquilo que você já viu, você já sabe.

O faroeste americano criou toda essa coreografia de rifles por entre rochedos, ricochetes, infiltração por entre lajedos e caatinga, atiradores buscando uns aos outros, o retinir das balas na pedra. Lembro de Kazuo Ishiguro, comentando a diferença de enfoque da luta de espadachins:

Quando cheguei à Grã-Bretanha aos cinco anos uma das coisas que me chocavam na cultura ocidental eram as cenas de lutas de espadas em filmes como Zorro. O que eu conhecia era a tradição dos samurais, onde toda habilidade e experiência converge para um único instante que separa ao vencedor e o perdedor, a vida e a morte. Toda a tradição samurai é a respeito disso: desde os mangá até filmes de arte como os de Kurosawa. É parte da magia e da tensão de uma luta, no que me diz respeito. Mas então eu via pessoas como Basil Rathbone como o xerife de Nottingham e Errol Flynn como Robin Hood e eles tinham longas conversas enquanto batiam com as espadas uma na outra, e a mão que não estava segurando a espada fazia uma espécie de gestos vagos no ar, e a idéia parecia ser a de conduzir o adversário até a beira de um precipício enquanto o distraía com um longo diálogo expositivo a respeito do enredo do filme. (...) Nos filmes de samurai, os dois oponentes se encaram durante um longo tempo, então acontece uma violência com a rapidez do relâmpago, e acabou.”

Como é a luta final de facões em Mandacaru Vermelho? É de um laconismo oriental, pouquíssimas falas, uma exclamação qualquer e só. Nada daquelas teatralidades, tipo “pois é, Augusto, você não sabia o que estava fazendo ao praticar uma infâmia como a sua contra uma família como a nossa. Prepare sua alma, cabra da peste!”

Ou coisa parecida. Não, o filme é econômico em diálogos, e isso é bom, porque eles vêm com peso. É uma luta em silêncio, a gente não sabe o que o personagem está pensando.

Ao longo da narrativa, há reviravoltas na atitude e nos julgamentos dos personagens. É uma história de remorsos, ressentimentos, vinganças, traições, deslealdades. E tudo isso deflagrado pelo Vaqueiro.

Roubar a filha do fazendeiro é um pouco como “raptar uma condessa filha de um conde orgulhoso”. É o objetivo de todos os aventureiros do cordel e dos romances de capa e espada. Li em algum lugar que Nelson estava lendo várias coisas de Jorge Amado, durante essa estada na Bahia, então alguma coisa disso tudo deve vir refratada em alguma história do baiano.

O diálogo é enxuto, me parece verossímil nas possibilidades de um filme de então, sem aqueles nordestinismos obrigatórios, “oxente bichim”. Várias falas irônicas bem colocadas. Uma personagem como a matriarca da família ofendida (Jurema Penna) é das que só dizem uma coisa uma vez. É como uma Maria Moura, de Rachel de Queiroz, só que envelhecida no crime, ressecada de agonia e rancor. Não há muita oratória, há frases como facão afiado que passa e já tora.

Uma coisa que não encaixou muito, pelo meu gosto atual, foi a música de Remo Usai, o maestro que fez um milhão de trilhas para o cinema desse momento. Tem uma pegada nordestina, conforme a encomenda; mas é uma música executada por orquestra, e nem mesmo um triângulo a deixa menos radiofônica. Não parece uma música dali.

Vai ver que Glauber Rocha viu o filme de Nelson e talvez tenha anotado mentalmente: Nada de trilha sonora com orquestra carioca, tem que ser uma voz áspera e uma viola cortante, e veio Sérgio Ricardo. A música de Usai é uma bela ilustração pregada numa paisagem; a de Sérgio Ricardo parece que é aquela paisagem que está cantando. Um recado do morro. Qualquer morro.

Acho que quem escrever alguma história do nosso “nordestern” tem que dedicar um capítulo às cenas de lajedos, que estão para o gênero assim como os desfiladeiros estão para John Ford. O lajedo é ponto de encontro para grupos, de peroração para os beatos, de enfrentamento para duelistas. Seria interessante comparar as cenas-de-lajedo deste filme de Nelson com as de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que foi feito logo depois.
  



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