O bom de certos trabalhos que a gente pega é que tudo é pretexto pra fazer pesquisa, que é um dos lazeres mais produtivos que a nossa espécie já inventou.
Fui checar algum detalhe de ficha técnica e
achei no YouTube uma versão restaurada de Mandacaru
Vermelho (1961), um longa de Nelson Pereira dos Santos que eu não lembrava
de ter visto por inteiro. Não tinha, então vi agora. É considerado por meio
mundo como um ensaio para Vidas Secas.
Nelson levou a equipe para Juazeiro da
Bahia para filmar seu roteiro baseado em Graciliano, mas tinha chovido, o
sertão estava verde, e mesmo o filme sendo em preto e branco o ambiente que ele
precisava não estava existindo. Ele aproveitou e filmou essa espécie de
faroeste caboclo.
Chamaram esse tipo de filme de
“nordestern”, em alguma época, e o filme de Nelson, mesmo sem cangaceiros, tem
uma linha direta com o cangaço, conforme tornado famoso pelo filme do paulista
Lima Barreto, O Cangaceiro (1953).
Sem falar que essa geração de Nelson, dos que estavam ma primeira década do
ofício, tinham os faroestes P&B de John Ford como uma referência de
respeito.
Tendo que improvisar um argumento novo em
cima da perna, Nelson Pereira, na época com seus 33 anos, recorreu a um
arquétipo antigo do cordel e do filme de cowboy, o Vaqueiro Que Róba A Filha Do
Fazendeiro. É diferente de montecchios-e-capuletos. É o plebeu que invade com
seus cromossomos bastardos um sangue-azul qualquer.
Com isso ele armou um desses tantos épicos
de famílias-em-feudo, famílias donas de terras e sempre em guerra para
defendê-las; histórias de que todo sertanejo sabe carradas de exemplos.
Quem lidera a caça ao casal fujão é uma
matriarca seca, ríspida, engasturada, de revólver em punho. Ela é o fator de
arrasto da narrativa, mais até do que o casal de apaixonados em fuga. Digamos
que o casal de noivos puxa a
narrativa; a matriarca a empurra, com
vigor. Ao longo da caçada humana, há vários entreveros de soco, de tiros, de
facão, há perseguições e emboscadas, há armadilhas (mas que qualquer um já
prevê) e surpresas (que hoje não surpreendem mais).
Dizem que Nelson não gostava do filme,
talvez por modéstia, porque pegou para si o papel do romeu. Algumas violências
são um pouco chocantes hoje: algumas das mortes a sangue frio, por exemplo. No
filme, são cenas brutais, mas vistas com certa indiferença pelo narrador. São
partes de uma cena. É pêi, e bufo. Hoje, seriam exploradas ate o último pixel e
o derradeiro segundo.
Há uma luta final de facão que resulta bem
coreografada, um dever-de-casa que foi feito. Porque o cinema a essa altura tinha
uma coreografia já catalogada de ataques, bloqueios de lâmina, jogos de pernas,
ameaços e negaceios, estocadas fatais. Já em 1961 existia um acervo
reconhecível de “passos” que qualquer comedor-de-castanha-confeitada de olhos
grudados na tela já sabia reconhecer.
Um dos objetivos do clichê cinematográfico
é dizer a uma faixa do público: fique à vontade, é aquilo que você já viu, você
já sabe.
O faroeste americano criou toda essa
coreografia de rifles por entre rochedos, ricochetes, infiltração por entre
lajedos e caatinga, atiradores buscando uns aos outros, o retinir das balas na
pedra. Lembro de Kazuo Ishiguro, comentando a diferença de enfoque da luta de
espadachins:
Quando cheguei à Grã-Bretanha aos cinco anos uma das
coisas que me chocavam na cultura ocidental eram as cenas de lutas de espadas
em filmes como Zorro. O que eu conhecia era a tradição dos samurais, onde
toda habilidade e experiência converge para um único instante que separa ao
vencedor e o perdedor, a vida e a morte. Toda a tradição samurai é a respeito
disso: desde os mangá até filmes de arte como os de Kurosawa. É parte da magia
e da tensão de uma luta, no que me diz respeito. Mas então eu via pessoas como
Basil Rathbone como o xerife de Nottingham e Errol Flynn como Robin Hood e eles
tinham longas conversas enquanto batiam com as espadas uma na outra, e a mão
que não estava segurando a espada fazia uma espécie de gestos vagos no ar, e a
idéia parecia ser a de conduzir o adversário até a beira de um precipício
enquanto o distraía com um longo diálogo expositivo a respeito do enredo do
filme. (...) Nos filmes de samurai, os dois oponentes se encaram durante um
longo tempo, então acontece uma violência com a rapidez do relâmpago, e
acabou.”
Como é a luta final de facões em Mandacaru Vermelho? É de um laconismo
oriental, pouquíssimas falas, uma exclamação qualquer e só. Nada daquelas
teatralidades, tipo “pois é, Augusto, você não sabia o que estava fazendo ao
praticar uma infâmia como a sua contra uma família como a nossa. Prepare sua
alma, cabra da peste!”
Ou coisa parecida. Não, o filme é econômico
em diálogos, e isso é bom, porque eles vêm com peso. É uma luta em silêncio, a
gente não sabe o que o personagem está pensando.
Ao longo da narrativa, há reviravoltas na
atitude e nos julgamentos dos personagens. É uma história de remorsos,
ressentimentos, vinganças, traições, deslealdades. E tudo isso deflagrado pelo
Vaqueiro.
Roubar a filha do fazendeiro é um pouco
como “raptar uma condessa filha de um conde orgulhoso”. É o objetivo de todos
os aventureiros do cordel e dos romances de capa e espada. Li em algum lugar
que Nelson estava lendo várias coisas de Jorge Amado, durante essa estada na
Bahia, então alguma coisa disso tudo deve vir refratada em alguma história do
baiano.
O diálogo é enxuto, me parece verossímil
nas possibilidades de um filme de então, sem aqueles nordestinismos obrigatórios,
“oxente bichim”. Várias falas irônicas bem colocadas. Uma personagem como a
matriarca da família ofendida (Jurema Penna) é das que só dizem uma coisa uma
vez. É como uma Maria Moura, de Rachel de Queiroz, só que envelhecida no crime,
ressecada de agonia e rancor. Não há muita oratória, há frases como facão
afiado que passa e já tora.
Uma coisa que não encaixou muito, pelo meu
gosto atual, foi a música de Remo Usai, o maestro que fez um milhão de trilhas
para o cinema desse momento. Tem uma pegada nordestina, conforme a encomenda;
mas é uma música executada por orquestra, e nem mesmo um triângulo a deixa
menos radiofônica. Não parece uma música dali.
Vai ver que Glauber Rocha viu o filme de
Nelson e talvez tenha anotado mentalmente: Nada de trilha sonora com orquestra
carioca, tem que ser uma voz áspera e uma viola cortante, e veio Sérgio
Ricardo. A música de Usai é uma bela ilustração pregada numa paisagem; a de
Sérgio Ricardo parece que é aquela paisagem que está cantando. Um recado do
morro. Qualquer morro.
Acho que quem escrever alguma história do
nosso “nordestern” tem que dedicar um capítulo às cenas de lajedos, que estão
para o gênero assim como os desfiladeiros estão para John Ford. O lajedo é
ponto de encontro para grupos, de peroração para os beatos, de enfrentamento
para duelistas. Seria interessante comparar as cenas-de-lajedo deste filme de
Nelson com as de Deus e o Diabo na Terra
do Sol, que foi feito logo depois.
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