segunda-feira, 20 de agosto de 2018

4378) Alice e Emília (20.8.2018)




Vejo por aí muitas discussões literárias sobre a questão de “personagens femininas típicas”, sobre a necessidade de uma literatura que reproduza a psicologia, o comportamento, os valores etc. de mulheres verossímeis.

Essa crítica não cessa de mostrar muitas personagens que ou são inverossimilmente abobalhadas ou inverossimilmente heróicas.

(Eu diria que o mesmo se aplica a personagens masculinos – mas essa é outra questão.)

Anos atrás traduzi um livro fascinante de Isaac Asimov que conta um breve espaço de tempo na vida de Hari Seldon: Prelúdio à Fundação. Seldon, um dos melhores personagens de Asimov, é o cientista que criou a Psico-História, a ciência de calcular probabilisticamente e psicologicamente a dinâmica das sociedades humanas a ponto de predizer certos fatos com séculos de antecedência.

Nesse livro, ele é auxiliado por uma cientista chamada Dors Venabili. O livro foi escrito numa época em que as reivindicações feministas pipocavam por todo lado nas revistas literárias. Talvez por isso o romance (que aliás é bom) tem uma dupla de protagonistas que, se o livro fosse adaptado para o cinema, poderia ser interpretada por Woody Allen (Hari Seldon) e Sigourney Weaver (Dors Venabili). Porque ele, apesar de cientista genial, é do ponto de vista prático um sujeito meio abestado, e é ela quem o protege, assessora, aconselha, inclusive quem o defende na hora da briga física.



Ou seja: substitui-se o clichê da mocinha indefesa pelo clichê da mocinha que é uma versão mulher de um macho típico. Isso é personagem feminino?

Alguém pode objetar que há inúmeras situações, na vida real, em que uma pessoa (homem ou mulher) meio abestalhada e indefesa é protegida por outra pessoa (homem ou mulher) experiente e capaz de encarar brigas violentas.

Não discuto esse aspecto de verossimilhança, apenas observo que toda a literatura popular tipo pulp fiction procede como se esta fosse a situação mais frequente na vida humana.

Perguntaram certa vez a Salman Rushdie “qual o primeiro livro por que ele se apaixonou”. A resposta dele foi:

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Não apenas pelas razões óbvias (a toca do coelho; o “me coma / me beba”; um sorriso sem um gato; o Chapeleiro Louco, a Lebre de Março, o Arganaz; “não há lugar, não há lugar”; “sopa da noite, linda sopa”); mas porque eu me apaixonei pela autoconfiança de Alice. Ali está ela, perdida no País das Maravilhas, mudando de tamanho o tempo inteiro, sem saber nada do ambiente que a cerca, e mesmo assim ela é tão irresistivelmente cheia de opiniões a respeito de tudo, sempre contradizendo as pessoas e estalando os dedos diante dos poderosos e dizendo: “Vocês não passam de cartas de um baralho!”. Meu tipo de garota.

Diante dessa descrição, não há como não lembrar de uma personagem feminina parecida, a Emília, de Monteiro Lobato, no ciclo do “Sítio do Picapau Amarelo”. Sei que hoje em dia a maioria das pessoas lembra do seriado da TV Globo, mas é da Emília dos livros que estou falando, e à qual poderia se aplicar totalmente a descrição de Rushdie faz da personagem de Carroll.

Que aliás deve ter ajudado a inspirar o escritor paulista – como se sabe, na coleção de livros infantis de Lobato aparecem traduções/adaptações de clássicos infantis, com o “Alice” entre eles. De modo que alguma transfusão de sangue literário deve ter passado da personagem de Carroll, bem anterior, para a boneca de olhos de retrós.

São personagens que, talvez até por serem garotas em livros destinados a outras garotas, o autor não procurou “tornar femininas”, o que em mãos de autor homem geralmente implica em tornar abestada ou tornar sexy.

Alice e Emília são meninas espertas, meio avoadas, meio corajosas, meio trapalhonas, cheias de recursos e ao mesmo tempo descobrindo coisas novas o tempo inteiro. Podem ser implicantes, irreverentes, negociadoras, mal-educadas, prudentes, cabeças-de-vento, interesseiras. São meninas reais – nesse sentido vejam o quanto Emília, a boneca, é mais real e mais interessante do que Narizinho, que apesar de ter seu charme tem uma certa aura politicamente correta.

O que acontece com alguns autores homens é que eles têm uma dificuldade cultural em se colocar no lugar de uma mulher. Receiam abrir mão de seu raciocínio de homem, sua intuição de homem, sua capacidade avaliadora de homem. Ou seja, de um conjunto lentamente conquistado de “olhares masculinos” sobre tudo.

Não sabem como é uma mulher por dentro (não me refiro a todos, claro). Mesmo quando precisam se colocar no ponto de vista delas, são sempre umas “elas” desenhadas pelo olhar masculino.

Em revistas literárias têm aparecido com certa frequência trechos satíricos em que escritoras parodiam o jeito masculino de descrever personagens femininas. Elas descrevem os homens do jeito que os escritores homens descrevem as mulheres em seus livros. O resultado é geralmente hilariante e plausível.

Coisas tipo:

“Sir Stanley Nottingham vinha descendo lentamente a escadaria de sua mansão. Dentro da camisa engomada de linho, seu peito musculoso e peludo erguia-se compassadamente. Sua mão morena deslizava ao longo da balaustrada, enquanto ele sentia a cada passo a compressão do seu sexo volumoso no interior da cueca;  uma aura de masculinidade exsudava de seu vulto atlético enquanto ele descia os degraus seguido pelos olhos fascinados de Lady Winterbottom.”

Os homens descrevem mulheres nesse estilo, há séculos, e vêm se safando.












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