Acabei agora de ver a primeira temporada desta série
espanhola, em exibição no Netflix.
A premissa da história é muito simples, pode ser
anunciada sem spoilers: um grupo de assaltantes planeja cuidadosamente durante
meses uma invasão à Casa da Moeda, em Madri, onde se imprime o dinheiro da
Espanha.
Seu objetivo não é roubar as notas que já estão
impressas. É trancar-se lá dentro em segurança, com reféns que lhes servem de
escudo, e imprimir a maior quantidade possível de euros antes de fugir.
O filme de assalto é um subgênero do filme policial onde
é possível mexer à vontade na receita. Pode haver aventura, ação, romance, violência,
comédia, tiroteio, o escambau. Um elemento no entanto é indispensável: o
planejamento.
Filmes de assalto (“heist
movies”) são sempre filmes enxadrísticos, onde tudo é planejado com
antecedência, executado com treinamento e frieza... mas na hora H aparece um
imprevisto e manda todo o planejamento pro espaço.
Os meus clássicos mais queridos são Gangsters de Casaca de Henri Verneuil (“Mélodie en sous-sol”,
França, 1963), Topkapi de Jules
Dassin (“Topkapi”, EUA, 1964), Sete Homens
de Ouro de Marco Vicario (“Sette uomini d’oro”, Itália, 1965), Como Roubar um Milhão de Dólares de
William Wyler (“How to Steal a Million”, EUA, 1966), O Golpe de John Anderson de Sidney Lumet (“The Anderson Tapes”,
EUA, 1971) e mais alguns.
Títulos mais recentes que gostei bastante são Onze Homens e um Segredo de Steven
Soderbergh (“Ocean’s Eleven”, EUA, 2001) e A
Cartada Final de Frank Oz (“The Score”, EUA, 2001).
A coisa mais fascinante desses filmes é o duelo de
inteligências entre as pessoas que conceberam o sistema de segurança (do Banco,
do castelo, da mansão, etc.) e os assaltantes. Uns têm a obrigação de prever
TUDO. Os outros, de imaginar algo que a segurança não previu.
É um xadrez minucioso... mas xadrez talvez não seja o
termo adequado. O xadrez é jogado com jogo aberto, no tabuleiro, com lances alternados, cada um vê exatamente o
que o outro está fazendo.
O filme de assalto exige: 1) uma imensa previsão de
ataques possíveis, feita pelo jogador “A”, a segurança do prédio; 2) uma
minuciosa pesquisa, e preparação do golpe, feita pelo jogador “B”, a quadrilha;
3) um contragolpe eficaz do jogador “A”, evitando o roubo durante o seu
transcurso ou perseguindo os ladrões quando estes conseguem se safar.
La Casa de Papel
tem uma premissa original e uma execução eficiente, porque trata-se de um roubo
que não pretende passar despercebido, pelo contrário – assim que a situação é
exposta, o país inteiro toma conhecimento (isso interessa aos assaltantes).
As cenas do assalto e do cerco subsequente pela polícia
são intercaladas com flash-backs da preparação da quadrilha, onde cada pessoa
tem um topônimo como codinome (“Tóquio”, “Oslo”, “Rio”, “Denver", “Nairobi”,
etc.). E o cabeça de todos, o “Professor”, que fica do lado de fora, em contato
permanente com o grupo e com a polícia, com a qual negocia.
É uma situação ideal para um roteirista que pode assim trabalhar
vários núcleos: diferentes ambientes dentro do prédio, envolvendo
sequestradores e reféns; o quartel-general da polícia, numa tenda diante do prédio;
a casa da delegada Raquel; o esconderijo do “Professor”; os flash-backs do
treinamento da quadrilha.
A série tem as tensões necessárias, conflitos internos da
gang, conflitos deles com os reféns, etc., mas aos poucos se desenha uma linha
básica: tudo que acontece havia sido
previsto pelo Professor, que planejou aquilo durante anos. E para cada
“imprevisto” ou cada cartada da polícia durante o cerco, ele tem um “plano B”
de sobreaviso.
Ou não.
Filmes de assalto tão minuciosos assim servem para nos
lembrar que “o diabo está nos detalhes”. O ônibus Challenger explodiu porque
uma juntura de peças tornou-se quebradiça quando subiu ao frio do espaço e
permitiu um vazamento. Em alguns filmes citados acima, tudo se perde porque um
passarinho entrou por uma janela deixada aberta, ou porque uma porta que era
para estar aberta permaneceu fechada.
La Casa de Papel
tem uma história bem urdida e personagens imprevisíveis o bastante para nos
surpreender. Tem também os clichês do gênero, e em muitos casos não sei se
chame isso se clichê ou de figura de linguagem.
É algo que o público já espera, e que os criadores se
sentem na obrigação de fornecer: o escape no último segundo, a coincidência
inesperada que precipita uma crise, a coincidência mais inesperada ainda que a
resolve, os riscos desnecessários que um personagem assume (mas se não o
fizesse, “nada acontecia”), e assim por diante.
Há uma confortável diferença visual entre os flash-backs
dos assaltantes ensaiando o roubo na mansão onde se ocultaram antes de tudo
(cores quentes, detalhes, figurinos, comportamento) e o ambiente asséptico do
interior da Casa da Moeda, corredores, metal, vidros, uniformes. Em termos de
ambientação, é um “respiro” sempre útil.
La Casa de Papel
é uma série cuja primeira temporada se encerra com uma crise de grandes
proporções. É uma série na qual sabemos que a situação central pode ser
prolongada por mais de uma temporada, mas necessariamente precisa de um final.
Como em Breaking Bad e outras séries
policiais, mostra uma situação que não pode durar para sempre.
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