Ariano Suassuna era muito escrupuloso em suas declarações,
por mais mirabolantes que fossem. E tinha com a mentira uma relação muito
curiosa. Dizia: “É um erro muito grave mentir para prejudicar outras pessoas ou
para ganhar benefícios para si mesmo. A gente só deve mentir por amor à arte”.
Ele gostava de contar uma recordação de seu tempo de
menino, em Taperoá. Estava ele andando por um descampado quando ouviu um tropel
de cavalos se aproximando. Quando o grupo de cavaleiros chegou, levantando
poeira, e entrou na rua principal, ele não acreditou no que estava vendo.
Era um bando de cavaleiros cossacos, vestindo aquelas
roupas tradicionais dos cossacos russos. Ele pensou a princípio que fossem
atores fantasiados. Os cavaleiros pararam, e foram cercados pela população. Ele
correu pra perto pra ver o que era.
Eram russos de verdade!
Falavam uma mistura de russo e português, e Ariano ficou sabendo que era
um grupo chamado “Os Cossacos de Kúban”, ex-soldados russos fugidos da Guerra
Civil que varreu o país depois da Revolução Soviética. (Não dou muito tempo
para que apareça na Internet alguma versão de que Ariano dizia ter conhecido
“cossacos cubanos” em Taperoá.)
Tendo fugido pela Europa e depois pelo mundo, acabaram chegando
ao Brasil. Apresentavam-se fazendo aqueles números de acrobacias equestres em
que os cavaleiros, em pleno galope, saltam da sela sem largar as rédeas, batem
com os pés no chão, pulam de volta para a sela, depois pulam para o lado oposto
e assim por diante.
Ariano lembra que o chefe do grupo chamava-se General
Ormanov e mancava de uma perna, porque na Guerra Civil fora ferido numa batalha
do Exército Branco (contra-revolucionário) contra o Exército Vermelho,
comandado por Leon Trotsky.
Esse encontro marcou Ariano para sempre, e é um exemplo
daqueles casos em que a realidade é mais estranha do que a ficção, porque a
ficção tem uma certa obrigação de ser plausível, e a realidade não, a realidade
apenas acontece.
Se alguém escrevesse um romance regional paraibano
dizendo que encontrou na rua um grupo de cossacos russos, seria acusado de “falta
de autenticidade”. Como o encontro aconteceu de fato, Ariano anos depois o usou
para evocar a Estranha Cavalgada do Rapaz do Cavalo Branco, o episódio de
abertura da primeira parte do Romance da
Pedra do Reino.
Eu passei muitos anos tendo conhecimento dessa história,
e não tenho motivos para pensar que fosse invenção dele. Recentemente,
encontrei por vias indiretas uma confirmação.
O livro Em Memória
de João Guimarães Rosa (Rio: José Olympio, 1968, 256 págs.) é uma publicação
organizada logo após a morte do escritor mineiro. Contém seu discurso de posse
na Academia Brasileira de Letras, uma porção de depoimentos e textos em sua
homenagem (Graciliano Ramos, Carlos Drummond, Gulherme de Almeida, etc.) e os
discursos da “Sessão da Saudade” com que a ABL o homenageou em 23 de novembro
de 1967, poucos dias após seu falecimento.
É um livro precioso, com muitas fotos, fac-símiles de
textos e manuscritos, ilustrações de Poty e Aldemir Martins. A Academia bem poderia promover uma reedição.
Nele, Renard Perez contribui com um “Perfil” do autor
mineiro, reconstituindo em traços gerais sua biografia.
Em 1934, Rosa presta concurso para a Força Pública, e fica
estacionado em Barbacena (MG), como oficial médico do 9º. Batalhão de Infantaria.
Pratica a medicina, e lê muito. E ali se dedica a aprender idiomas
estrangeiros, um dos seus estudos preferidos.
Diz Renard Perez:
E através de um russo branco que se encontrava meio perdido por aquelas
bandas, como soldado da polícia militar de Minas, pôde confrontar pela primeira
vez a sua pronúncia. Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do
exército czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos
Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. (pág. 29)
Ora, em 1934 Ariano tinha 7 anos de idade, e sua família
tinha se fixado em Taperoá em 1933. Foi justamente essa a época em que teria
acontecido seu encontro em Taperoá com o grupo de Cossacos, que viajava pelo
país como uma “trupe andarilha”.
De “Juban” para “Kuban” a diferença reside apenas num
detalhe de alfabeto e pronúncia. O Coro dos Cossacos de Kuban foi criado em
1811, e sobre o povo propriamente dito (uma das etnias absorvidas pelo Império
Russo e depois pela URSS) há esse descritivo verbete da Wikipedia:
E aqui uma apresentação contemporânea do Coro:
São muitos os laços pessoais e literários entre Ariano
Suassuna e Guimarães Rosa, e este episódio ensolarado e cavalariano não é o
menor deles.
Quando nós estivermos na guerra
voarei ao encontro das balas no meu cavalo preto;
mas aparentemente a morte não é para mim,
e de novo o meu cavalo preto me traz de volta do fogo.
(Coro dos Cossacos de Kuban)
(Os Cossacos de Kuban, em foto de 1937)
Acabei de descobrir onde foi que o paraibano GENIVAL CASSIANO encontrou um título para seu álbum KUBAN SOUL - 18 quilates. Certamente deve ter ouvido o pai falar dos cossacos de Juban (ou Kuban) como queiram.
ResponderExcluirJornais do Rio de Janeiro, como o ,"Correio da Manhã", de 12 de outubro de 1933, anunciaram a chegada e a estreia do espetáculo dos cossacos do Don e de Kuban, incluindo nomes de integrantes da "trouxe".
ResponderExcluirTroupe...
ResponderExcluirhttp://obscurofichario.com.br/lugar/cossacos-de-kuban/ mMis informações e breve os dois espaços do Don e do Kuban viajando pelo Brasil nos anos 1930.
ResponderExcluirBráulio escrevendo sobre Ariano é como achar um capitulo sobre Diadorim no meio de Don Quixote. Dois dos meus preferidos se esbarrando.
ResponderExcluirCoisas preciosas
ResponderExcluirQue beleza!!!!! Deve vir desses cossacos ciganeando pelo sertão o mote do xote sutilmente pornô do rei Luís Gonzaga
ResponderExcluir