A Editora Todavia acaba de lançar o livro de Michael Benson 2001, Uma Odisséia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de Uma Obra-Prima, um calhamaço de quase 500 páginas contando como foi a concepção, preparação, filmagem e lançamento do filme, que está completando 50 anos. (O lançamento oficial foi em abril de 1968.)
Sem
ter lido os muitos outros livros que há sobre o tema, posso dizer que o de
Benson tira inúmeras dúvidas que eu ainda tinha sobre aspectos técnicos ou
narrativos do filme. 2001 é cercado
de lendas, boatos, especulações. Benson se baseia largamente em depoimentos das
pessoas que trabalharam no filme e que eram próximas de Kubrick e Clarke.
2001 é um desses
filmes-problema para sempre. Rejeitadíssimo pelos executivos da MGM (como Benson
narra nos capítulos finais), acabou se tornando um sucesso e se firmando aos
poucos em nossa memória cultural.
O
problema é que quem o detestou de início não foram só os “executivos do estúdio”,
os quais, por tradição, só conseguem entender uma coisa depois de ouvi-la um
milhão de vezes ou depois que ela lhes rende um milhão de dólares – o que
acontecer primeiro.
Muita
gente do mundo da FC (escritores, críticos) detestou o filme, por motivos
óbvios. Era longo, era lento, era sem interação humana, era sem aventura, era
sem diálogos, era sem pessoas. (Algumas centenas de resenhas coincidiram no
clichê de que “o personagem mais humano do filme é o computador”, o que é plausível.)
Sim,
é o filme mais gélido de Kubrick, um dos mais frios diretores da História;
ganha de todos. Dr. Fantástico foi
considerado um “filme sem sentimentos” porque mangava do holocausto nuclear.
Mas era um filme picaresco, movimentado, escrachado, biruta, cheio de humor
negro e de sarcasmo. Era um filme vibrante de calor humano, comparado com a
glacialidade impassível de 2001.
Laranja Mecânica é um filme
corroído pelo sadismo (há um viés sádico na pessoa de Kubrick, seu
autoritarismo em voz baixa, sua implacabilidade, seu
não-aceitar-um-não-como-resposta). Mas a gente se comove com o destino das
vítimas espancadas, e em grande medida também com o destino do espancador,
quando cai nas mãos dos Cidadãos de Bem.
E
assim por diante. 2001 nos promete
uma aventura, e em vez disso nos entrega uma visita guiada a uma instalação
industrial. Kubrick parece nos provar que quanto mais queremos abarcar com a
mente a perspectiva do Universo, mais insignificantes são as formigas humanas
que o habitam.
Nos
seus cenários gigantescos caminham personagens tão gelados e vazios como
icebergs sem a parte submersa. Heywood Floyd, Bowman, Poole, todos parecem
consistir apenas na sua parte visível. Não têm subtexto, não têm história
prévia. São personagens de papelão, iguais às suas próprias imagens
reproduzidas nos displays do saguão do cinema.
Para
recriar aquele mundo, dezenas de jovens técnicos consumiram três ou quatro anos
de sua mocidades trabalhando em turnos de até dezesseis horas por dia, para
satisfazer o perfeccionismo do diretor, para acompanhar suas hesitações e
mudanças de rota. E lhe são eternamente gratos por isso; o livro mostra;). 2001 é provavelmente o filme mais nerd de todos os tempos, feito por nerds e para nerds.
Ele
parece sugerir que uma pessoa vista através da lente de uma câmera torna-se tão
pouco humana quanto uma que é vista através da mira telescópica de um sniper.
Kubrick
é um diretor fascinante porque tinha o misterioso carisma dos insensíveis, capaz
de exigir dos outros sacrifícios espantosos para resolver um problema e no fim
dizer apenas: “Obrigado, valeu.” Não era o carisma caloroso e exuberante de um
Fellini ou de um Spielberg. Ele parecia mais com Jean-Luc Godard, uma silhueta
imóvel no set, óculos escuros, braços cruzados, tirando o cigarro da boca e
dizendo apenas: “Não ficou bom. Vamos fazer outro take.”
Um
tema muito fecundo para um ensaio seria comparar os dois filmes mais gélidos da
história da FC: 2001 de Kubrick e Alphaville de Godard. Diferentíssimos e
parecidíssimos.
A
obsessão monolítica do diretor em busca da qualidade o fez recriar a indústria
cinematográfica dentro de sua filmografia. Cada filme dele se encerrava com uma
meia dúzia de invenções técnicas notáveis, feitas no calor da produção para
resolver os problemas que ele se propunha. (Vamos relevar o fato de que às
vezes um técnico inventava uma coisa e ele registrava a invenção para si, com a
proteção da lei.)
Michael Benson entrevistou (ou teve acesso a entrevistas prévias de) praticamente todo
mundo que trabalhou no filme. Alguns traços da personalidade de Kubrick emergem
reiteradamente. Sua capacidade de apostar em assistentes jovens e
entusiasmados, dando-lhes missões de responsabilidade enorme. Sua curiosidade
infinita, insaciável, que fazia dele o ouvinte ideal para quem tivesse uma
idéia mirabolante para um gadget. Seu
ciúme profissional (“você está trabalhando só para mim, não pode trabalhar com
ninguém mais”).
E
também sua capacidade de aceitar idéias. Como quando o ator Gary Lockwood lhe
sugere (num impasse de roteiro) a cena em que os dois astronautas se trancam
numa cápsula e tramam o desligamento do computador, mas mesmo assim este fica
sabendo de tudo. (O detalhe da leitura labial foi sugerido depois por Victor
Lyndon, produtor associado, ao entrar por acaso numa reunião onde todos
tentavam resolver esse detalhe.)
Arthur
C. Clarke teve a relação mais profunda, constante e tumultuosa de todas. Vendo
o relato de tudo que Kubrick aprontou com ele (inclusive negando-lhe qualquer
percentagem na bilheteria do filme), a gente fica pensando que Sir Arthur
deveria ser canonizado pelo Vaticano. Ele passou anos trabalhando numa narração
em off, e Kubrick o iludiu até a
noite da estréia, quando ele viu o filme pela primeira vez e constatou que dois
anos de trabalho insano tinham ido para a cesta de papéis.
E
aqui pra nós – Kubrick estava certo. O filme ficou muito melhor assim, sem
explicações tipo (texto de Clarke, pág. 407):
Eles
eram filhos da floresta – coletores de sementes, frutos e bagas. Mas a floresta
estava morrendo, derrotada por século de seca, e eles estavam morrendo com ela.
Nesse novo mundo de planícies abertas e arbustos atrofiados, a busca por
alimento era uma batalha infinita, sem possibilidades de vitória.
Ou
seja, Clarke estava fazendo o que eu mesmo talvez fizesse: tentando explicar o
filme de dentro do próprio filme, como se fosse um documentário da BBC.
Kubrick,
na primeira cena do filme, levou o público para a planície dos homens-macacos e
o largou ali, durante 25 minutos que parecem séculos, sem dizer uma palavra.
Do
ponto de vista da literatura de FC, 2001
não inventou nada, não avançou nada. O livro é ótimo, mas explora territórios
já conquistados antes, inclusive pelo próprio Clarke. A linha evolutiva
macaco-homem-superhomem, espinha dorsal do enredo, foi vista com nariz torcido
pelos escritores da New Wave norte-americana e britânica, que já estava
plantando em 1968 as raízes do movimento cyberpunk.
Clarke
é um apolíneo, um crente devoto nas vantagens intrínsecas da ciência, no
potencial criativo do ser humano, na grandiosidade metafísica do Universo.
Beleza. Mas 2001 surgiu numa época em
que o sexo-drogas-rock-and-roll estava tomando conta da FC. Era um pouco como
trazer um afresco de Michelangelo para uma exposição de pintores dadaístas e
cubistas.
O
filme se impôs pela esmagadora perfeição técnica, ainda não superada. Pela
audácia metafísica num gênero de cinema que era (e hoje ainda é, mais do que
nunca) um território de fantasias adolescentes.
O
livro se impôs por ser capaz de preencher com significado uma estrutura
audiovisual tão impactante. E porque Clarke sempre foi um dos personagens mais
queridos pela comunidade da FC literária.
Eu
diria que 2001 tem uma importância
muito maior na história do cinema (como indústria, mercado, linguagem, cultura)
do que na história da ficção científica.
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