Evoluir é deixar de ser. Numa transformação ganhamos algumas coisas, que naquele momento nos parecem o grande salto transcendental, e vamos perdendo outras cuja ausência a princípio não faz falta, mas que aos poucos vão mostrando o quanto eram silenciosamente importantes.
H. G. Wells tem uma explicação bastante pragmática para
isto no capítulo 4 de A Máquina do Tempo
(1895), quando o Viajante do Tempo contempla do alto as verdes colinas do
futuro. Ele foi parar num mundo que parece a imagem de desktop do Windows XP,
habitado por uma espécie de hippies louros, infantis e puros, os Elois.
O Viajante raciocina que grande parte do esforço
científico humano é para diminuir as asperezas e os riscos da vida, torná-la
segura, tranquila, agradável. Ao fim dos confrontos com as dificuldades do
mundo, cada geração que surge está menos equipada para enfrentar problemas.
Porque foi para poupá-los de enfrentar dificuldades que os pais aceitaram
enfrentar tantas. Não teria sido preciso.
Os Elois do livro acabam se revelando ainda mais ingênuos
do que ele imaginava então, mas o Viajante tem um bom argumento histórico nesse
exemplo. É uma linha entrópica que lembra uma pouco aquela frase tradicional
sobre tantas famílias ilustres: “Pai rico, filho nobre, neto pobre”.
A primeira geração é a dos que saem da favela e constroem
um império do nada. A segunda, filha destes, é a que terá o projeto e o desafio
de manter o império. Quando isso não é
muito a sua praia, é possível que a terceira geração não cresça no interior de
um império, mas de uma derrocada.
Nem precisamos chegar ao ano 802.701 para ver eses sintomas (e Wellls decerto teria
exemplos ou paralelos londrinos na ponta da língua, se a gente lhe
perguntasse). Os psicólogos recentes têm usado a expressão Geração Floco de
Neve para designar um conjunto de jovens atuais excessivamente sensíveis, meticulosos,
capazes de se magoar ou se revoltar por muito pouco.
Dizem eles que há três variantes dessa fragilidade: 1)
Superproteção; crianças que foram excessivamente cuidadas e não puderam
desenvolver algumas qualidades de autonomia. 2) O senso do Eu: um
individualismo muito grande, dificuldade em entender o ponto de vista de outras
pessoas. 3) Impressão de catástrofe: pessoas que acham o tempo inteiro que algo
terrível vai acontecer e destruir seu mundo.
São jovens de hoje, criados em suas bolhas sociais e
cibernéticas. Os games são um sucedâneo importante para essa escassez de oferta
de aventuras em carne e osso. Os games, contudo, só levam até um certo ponto, e
dali não passam. São iguais aos livros, que também só nos levam até um certo
ponto, e dali não passam.
Esse “ponto” que se deve ultrapassar é o ponto da vida,
de um conjunto de situações que (ao contrário do game ou do livro) não está sob
nosso controle e pode nos afetar de forma grave.
Os Eloi de 2018 são chamados “Flocos de Neve” pela sua
fragilidade, por serem algo que está a um risco de desfazer-se. E isso me
trouxe à lembrança um livro que eu tinha interrompido há anos e agora li até o
fim: Where Late the Sweet Birds Sang
(1976), da recentemente falecida Kate Wilhelm.
Esse livro ganhou prêmios importantes como o Hugo e o Locus. É a história pós-apocalíptica sobre uma família rica no vale
de Shenandoah, na Virginia, que consegue sobreviver a um conflito nuclear isolando-se
nas montanhas onde tem suas terras e reproduzindo-se por clonagem.
O livro tem vários enredos sucessivos, mas na parte 3,
“At the Still Point”, brota uma crise entre os clones. Os clones de Kate
Wilhelm são meio que ligados numa corrente telepática, são uma psi-colmeia (uma
hive-mind). Clonados de um “Harry” ou
de uma “Susan” original, p.ex., são chamados “os harrys” e “as susans”: uma
meia dúzia de rapazes idênticos ou de moças iguaizinhas que só andam juntos,
que falam entre si o tempo inteiro, que não têm segredos, que não podem ser
separados desse grupo sem passar por uma crise psíquica que pode ser fatal.
A primeira expedição que deixa a fazenda após o
Armageddon (é a Parte 2 do livro, “Shenandoah”) começa a ter problemas mentais
à medida que os membros se afastam de seu grupo de origem. Alguns, no retorno,
ficaram insanos. Outros, como Molly, adquirem uma personalidade própria; aos
vinte anos de idade surge nela uma personalidade que é só dela, não é
compartilhada com suas gêmeas telepatas. Ela se torna uma outsider.
Molly vem a ter às escondidas um filho, Mark (numa época
de esterilidade galopante, daí os clones) que ao crescer se torna, na Parte 3,
o condutor da ação. Mark cresce como um marginal, uma espécie de Mogli ou
Tarzan, esperto, safo, capaz de sobreviver sozinho no mato fechado ou num
pântano radioativo. Os clones da sua idade são incapazes de penetrar cem metros
no mato sem perder a direção.
Sua ascendência sobre os clones em geral é porque ele é
capaz de ser original, diferente, imprevisível. Os clones, porém, executam com
primor o que aprendem a fazer, mas são incapazes de ter uma iniciativa. Num momento
de emergência, não sabem inventar uma solução, não entendem uma instrução que
nunca receberam.
E são todos iguaizinhos. E não conseguem pensar por si.
Mark garoto constrói um boneco de neve e alguns dos meninos não conseguem, nem
a pau, enxergar ali um boneco antropomorfo. Veem apenas um monte de neve com
alguns objetos cravados.
E Barry, um dos cientistas responáveis pelo processo da
clonagem, reflete:
A neve foi soprada para longe, e ele ficou matutando na individualidade
de cada floco de neve. Como milhões de outros antes dele, pensou, boquiabertos
ante a complexidade da natureza. Pensou de repente se Andrew, a pessoa que ele
tinha sido aos trinta anos, já teria se sentido de boca aberta diante das
complexidades da natureza. Pensou se
cada uma daquelas tantas crianças que tinham ali sabia que cada floco de neve
era diferente de todos os outros. Se alguém dissesse a eles que era assim, e
recebessem a ordem de examinar flocos de neve como parte do projeto, eles
chegariam a perceber a diferença? Achariam aquilo a coisa mais maravilhosa do
mundo? Ou o aceitariam como se fosse um lição a mais das muitas que eles tinham
de aprender, e nesse caso eles a estudariam conscienciosamente, mas sem extrair
daquilo nenhum tipo de prazer ou satisfação na aquisição de um conhecimento
novo?
Esses clones futuristas do vale de Shenandoah me
lembraram um conto de Greg Egan em que uma nave tripulada tenta sair do Sistema
Solar mas a certa altura seus tripulantes começam a cair em coma súbito, um
depois do outro. No final, descobrem que uma mente humana qualquer é apenas uma
gota de um oceano mental, e que da órbita de Júpiter (por exemplo) em diante
essa ligação se rompe... e a pessoa cai, como se alguém tivesse puxado uma
tomada.
Greg Egan projeta para a humanidade inteira essa
consciência telepática do seu conto; Kate Wilhelm a projeta de forma
concentrada em suas gêmeas-clones, que compartilham quase uma “phone-call
telepathy”.
Mark leva os amigos (sob supervisão) para a floresta na
montanha, e larga-os ali. Indefesos, porque vivem mais absorvidos na bandalarga
telepática de que desfrutam 24 horas por dia do que em registrar marcas em
troncos de árvores ou pedras deslocadas para indicar por onde o grupo passou.
Os clones correm para a zona de conforto que são seus gêmeos, suas gêmeas.
Quando Mark os deixa por si sós, todos endoidecem, não
conseguem achar o caminho de volta nem as árvores que vieram obedientemente
marcando durante a subida. Os clones de Kate Wilhelm acabam lembrando menos os
telepatas malignos de A Aldeia dos
Amaldiçoados (“The Midwich Cuckoos”, 1957), o livro de John Wyndham que já
rendeu pelo menos dois filmes, do que os Elois árcades e ripongos do filme de
George Pal, The Time Machine (1960).
O livro de Wilhelm mostra a relativa frieza dos clones ao
tomar decisões de vida ou morte, e ao mesmo tempo a dependência quase insetóide
que eles têm de um grupo. Como um graveto, que cai pra longe da fogueira e se
apaga porque ficou sozinho. O livro mostra a contraposição entre o modo de
pensar e de agir dos clones e o das pessoas “assimétricas”, por assim dizer, as
de comportamento menos previsível.
É uma boa discussão sobre as camadas mentais superpostas
que mantêm uma pessoa funcionando. Em certos momentos da Parte 2 do livro,
“Shenandoah”, é possível perceber a noção de um Eu, de uma personalidade única,
surgindo em Molly, a jovem desenhista da expedição.
Como se um “Eu” fosse uma excrescência, algo em princípio
desnecessário à vida, e que só é preciso desenvolver dentro de nós mesmos
quando estamos jogados no tropel do mundo, sem wifi para nossa telepatia
genética, e alguma coisa precisa ser feita.
Os flocos de neve são tão únicos quanto uma mandala de
Maldelbrot, mas se derretem com facilidade. Há uma boa expressão em inglês para
dizer que o cara está mal: é dizer que ele tem as mesmas chances de
sobrevivência de uma bola de neve no inferno. Que são as mesmas chances de uma
obra de arte ou um simples boneco de neve não serem enxergados, mesmo sendo
vistos – porque aquelas pessoas não foram formalmente ensinadas a enxergar
assim.
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