As brincadeiras infantis, ou de meninada em geral
(futebol de pelada, p. ex.) sempre produzem um vocabulário muito rico. Aqui vão
alguns verbetes comentados, com exemplos.
BALEEIRA
O mesmo que “baladeira, baleadeira, bodoque, estilingue”. Não tem relação com “navio baleeiro”, dedicado à pesca da baleia. Também se grafa “balieira”.
Eu, à medida que me punha taludo e me iniciava com as cabras de minha Tia – de um modo que contarei melhor, depois – começava a deixar de lado as caçadas de balieira e badoque, e a me chegar mais, de noite, para a roda das mocinhas e meninas, antes desprezadas como indignas do interesse de um homem.
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 50)
FRECHEIRO
Mergulho na direção da água; salto com os braços estendidos para a frente. “Eu gosto é de tomar banho de açude, passar o dia dando frecheiro dentro dágua”. Também se usa a forma verbal: “Quando ele foi chegando foi logo tirando a roupa e frecheirando dentro do rio”. Téo Azevedo e Assis Ângelo registram “flexeiro”.
PAPANGU
Mascarados que saem no carnaval; usam macacão folgado, de pano fino, estampado, que cobre o corpo inteiro; usam luvas, e um capuz com buracos para olhos, nariz e boca. Frequentemente não se consegue distinguir se se trata de um homem ou uma mulher, a não ser que falem – quando, em geral, disfarçam a voz. Saem na rua, sozinhos ou em bando, tirando brincadeiras com todo mundo. Assemelham-se aos "clóvis" do Rio de Janeiro, menos no detalhe das bexigas cheias de ar com que os clóvis saem batendo.
Também se usa o termo como um pejorativo vago, sem referencia específica a esses palhaços: "Tu viu o namorado novo dela? Muito melhor do que aquele papangu que ela namorava no ano passado."
Contam dele que no carnaval de 1911 brincou tanto de entrudo e bebeu tanto que esquecera de ter terminado o carnaval, e na quarta-feira de cinzas, sem máscara, com voz de papangu, na porta de seu estabelecimento perguntava a quem chegava: "Você me conhece?"
(Cristino Pimentel, Abrindo o Livro do Passado, vol. 1)
ACADEMIA
Ou “cademia” (forma que ouvi com mais frequência, na
infância): é a brincadeira de crianças conhecida como “jogo da
amarelinha”.
“Que as pedras, as pedras mesmo, que o senhor ensinou a
identificar em mica e cristais de rocha e basalto e etc., sabe o que a gente
fazia? Jogava era na academia, segundo a
língua de minha vó; que ela nunca chamou aquilo de simples amarelinha. Minha vó chama de academia e a gente pulava,
atirando a pedra no corpo desenhado a giz no chão, no puro chão, único lugar
onde o giz cabia, a gente pulava por um fio, equilibristas, as pernas abertas
pra não pisar nas linhas do corpo e ser o otário número 1, de marca maior,
tendo apenas o direito a um minuto, no descanso, e então prosseguindo até
atingir o céu.”
(Marilene Felinto, O Lago Encantado de Grongonzo),
O nome “amarelinha” tem ligações com
outra denominação, “jogo da maré”, nome certamente vindo do francês “marelle”.
Alguns minutos depois, ouviu-se o barulho das meninas jogando maré
e cantando:
Três passos no éter
E volte à Terra
Jogue a vértebra
E a negra álgebra
O chocalho passeia
A estupidez humana.
(Stefan Wul, A Cadeia das 7, tradução de David Jardim
Júnior)
Ao que parece, o mesmo jogo em Portugal
chama-se “macaca”, como se vê na tradução portuguesa do mesmo livro, mesmo
trecho:
Alguns minutos depois, ouviram as gémeas jogar à macaca. Cantavam:
Três passos no Aither
E regresso à Terra
Atira a vértebra
E a negra álgebra
O guiso propala
A estupidez humana.
(Stefan Wul, O Império dos Mutantes, tradução de Amadeu
Lopes Sabino)
Em
inglês é “hopscotch” e em espanhol
“rayuela” (que serviu como título para o famoso romance de Julio Cortázar).
POR CIMA
No futebol de pelada, na ausência de
traves, é comum que as duas barras, ou gols, sejam feitas com duas pedras, dois
montes de roupas, etc. Dessa forma, um
gol só se distingue claramente de uma bola-fora quando o chute é rasteiro. Nas
bolas altas ou a meia-altura, é o consenso (e o “bocão”) que define. A bola
“por cima” é a que passa por cima de uma das pedras que marcam a meta --
equivaleria portanto a uma bola na trave.
Quando ao limite superior da barra, é determinado pela altura do
goleiro: o chute parte, o goleiro salta e tenta alcançar. Se pelo menos toca nela, considera-se que a
bola não foi “alta”, e vale o gol.
Muitos goleiros acabam pulando menos do que poderiam, para não correr
esse risco; mas, como acontece com tudo nos jogos de pelada, onde não há juiz,
quem determina se foi gol, se foi “por cima” ou se foi “alta” é o bate-boca que
se segue imediatamente após o lance.
ALAÚÇA
Corruptela de "La Ursa". Folguedo de
carnaval que consiste num homem fantasiado de urso, com roupa feita de estopas
velhas, puxado por uma corrente presa ao pescoço, e que percorre as ruas
seguido por um grupo musical com sanfona, zabumba, pandeiro, etc. Saem com latas na mão, pedindo dinheiro de
porta em porta e dançando no terraço de cada casa, seguidos por uma multidão de
moleques. Originalmente devia-se dizer: “Olha,
lá vem La Ursa!”, que deve ter mudado para “Lá vem a ‘La Ursa’!” e finalmente “Lá vem o Alaúça!”. Um corinho frequente gritado por todos diz:
“Alaúça quer dinheiro! Quem não der é pirangueiro!”. (Pirangueiro é vagabundo,
malandro, etc.)
Vamos embora, segue o
itinerário
por ali passamos, por aqui passou
um alaúça de fita amarela
abrindo janelas para o nosso amor.
(Alceu Valença, Marim dos Caetés)
AMORCEGAR
Pegar carona num caminhão ou outro veículo,
pendurando-se na parte traseira. Prática
comum entre garotos de bairro. Também
usa-se dizer: "Pegar morcego".
"Quando a mãe de Fulano está em casa ele passa o dia quieto, não
sai nem no terraço, mas quando ela vai na rua ele corre pra pista e fica amorcegando
os ônibus".
A origem da expressão é a posição em que o garoto
fica, como um morcego pendurado no teto da caverna. O "pegar morcego" pode ter função
prática (ir daqui até ali sem pagar passagem de ônibus) ou ser uma simples
brincadeira perigosa e excitante. Não se aplica quando
a pessoa está numa bicicleta e agarra o veículo para poupar esforço.
E o menino
amorcegando caminhão
foi apanhado numa rede de cordão
sem entender o triste significado
da palavra educação.
(Ivan Santos, Ilha do Bispo)
Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado. Assim, só quase uma hora depois que passou a
Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o pé na Estrada, mas, agora, já está
tudo quanto é de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora! Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que
me deixou no Cosme Pinto!
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino)
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