O clichê é algo que surgiu como novidade, como informação original, apresentada de um jeito diferente do que se fazia. Funcionou. Funcionou tanto que passou a ser utilizado por outras pessoas. Depois, por muita gente, o tempo inteiro. Deixou de ser novidade e virou mera repetição. Deixou de ser informação nova e passou a ser a muleta da preguiça e da desatenção. Virou clichê.
Essa é uma visão defensável. Mas será o clichê um pecado
mortal, uma doença grave? Nem tanto. Ele tem sua função. Isaac Asimov, por
exemplo, num artigo discutindo a sério assuntos altamente abstratos, nos quais
o leitor comum pode se perder, sabia usar clichês de vez em quando. Idem na
ficção.
É bom dar ao leitor de vez em quando uma sensaçãozinha de
certeza absoluta. Isso o clichê lhe dá, como uma Coca-Cola lhe dá glicose. Nossos
clichês atuais de trama e de enredo foram concebidos do século 19 para o 20. Vêm
desde os romances de capa-e-espada europeus até as telenovelas sul-americanas
do horário nobre.
O clichê é indispensável para que o leitor não se perca?
Nem sempre. Porque nem sempre o clichê é usado tendo em mente um efeito no
leitor. Muitas vezes certos efeitos narrativos surgiram para facilitar o
trabalho dos autores ou tirá-los de enrascadas narrativas onde eles tinham se
metido sem saber onde iam acabar.
Um clichê é uma chave mestra, abre qualquer porta. Tem que
ser usado sem culpa, mas é bom poder usar também sem culpa certas
descontinuidades ou quebras narrativas. Se a história está com crédito junto ao
público, pode ousar. Quem pagou foi o clichê.
Eis alguns deles.
O CORPO
DESAPARECIDO
Uma pessoa numa novela sofre um acidente (afogamento, incêndio,
desmoronamento), os bombeiros e a polícia fazem busca, o corpo nunca é
encontrado. Alguma dúvida de que essa pessoa reaparecerá vivinha da silva assim
que o autor precisar dela?
O SONHO
INTERROMPIDO
A certa altura do filme, alguma coisa bem improvável
começa a acontecer. Pode ser algo fantasticamente sobrenatural. Pode ser um
acontecimento banal, mas que se for verdade vai alterar de maneira irremediável
o rumo da história. No momento culminante, há um corte brusco e vemos o
personagem, sobressaltado, sentando na cama de noite, estremunhado, abrindo os
olhos.
O ATO CLANDESTINO
Um casal que não pode se beijar se beija. A câmera
corrige, o foco corrige, e vemos que havia alguém espreitando os dois pela
fresta de uma porta, ou por trás de uma cortina, ou através de uma vidraça. Quem
está espreitando é a última pessoa que o casal gostaria que visse aquilo: uma
pessoa diretamente prejudicada, ou uma denunciadora interesseira.
Usa-se em geral para economizar tempo. Se num desses
melodramas ingleses vitorianos a baronesa casada vive aos beijos com o mordomo
pelos corredores do castelo, podem-se passar meses até que alguém descubra. Num
filme, tem que ser logo. Narrativa geralmente é uma compressão do tempo.
Em geral mostra-se uma “escapada por um triz”, algo que
deixe desconfianças e testas franzidas, e na vez seguinte, bingo! No melhor momento do amasso os dois são
vistos pela governanta fofoqueira ou pela despeitada Condessa de Eastminster.
A CONVERSA
ENTREOUVIDA
Uma variante clássica do Ato Clandestino, um Deus-Vindamáquina
predileto do romance policial. No momento crucial, surgem as portas
entreabertas, a pessoa que ao rodear a casa passa por baixo de uma janela e
entreouve o que se diz naquele quarto, ou alguém que ergue distraidamente a
extensão telefônica e se arrepende pelo resto da vida, ou está sentada no
reservado no restaurante e reconhece vozes no compartimento contíguo.
Alguém está sempre escutando. O Acaso diegético (que faz
parte da realidade do filme) é sempre um Determinismo dramatúrgico. É preciso
fazer com que “os acontecimentos se precipitem” logo. Além do mais, a maioria
das polícias do mundo depende mais disso do que de algum raciocínio sherlockiano
digno do Cavaleiro Dupin ou de Poirot.
O INQUILINO
DEVEDOR
Dificilmente veremos uma história em que o personagem
esteja em dificuldades financeiras, morando numa pensão ou prédio de
apartamentos, sem nos depararmos mais uma vez com a cena em que ele tenta sair
para a rua mas é forçado a se esconder do síndico, ou da concierge, ou do porteiro, ou de qualquer outra pessoa com
autoridade suficiente para cobrar-lhe os atrasados.
A FALA PRECIPITADA
Filme. Um personagem entra num ambiente, acompanhado pela
câmera, que mostra ele, não o ambiente. Crendo que quem o espera ali é a pessoa
“A”, começa a dirigir-se a ela em voz alta, antes mesmo de vê-la. Claro que
quem está ali não é A, e sim B ou C, a última pessoa a quem ele poderia dizer
aquilo.
Uma variante desta é “A Fala de Costas”. Dois personagens
estão conversando. Um deles dá as costas ao outro e se distrai fazendo algo,
enquanto continua falando com o interlocutor. A câmara permanece nele. Quando
ele se vira, vê que o interlocutor sumiu, ou foi substituído por uma Presença
Ameaçadora.
A APROXIMAÇÃO NA
TREVA
Um grupo de personagens está num recinto quando de
repente alguém entra, seja de maneira inesperada, seja depois de uma cultivada expectativa.
A iluminação está de tal modo que o recém-chegado está totalmente na sombra, e ao
se adiantar para a zona iluminada do aposento a luz alcança primeiro suas
pernas, a cintura, o tronco, e finalmente o rosto – revelando quem é.
A FALA PELAS
COSTAS
Um personagem sozinho num aposento, esperando alguém. É um visitante aguardando os donos da casa.
Ele se interessa por um quadro na parede, por exemplo. Aproxima-se, fica
olhando, tem algum tipo de reação (quando é num livro, temos acesso ao que pensa
sobre o quadro). De repente, ouve às suas costas um comentário sobre o quadro,
feito pelo anfitrião que acabou de chegar sem que ele visse. Vira-se, e os dois
se defrontam.
* * *
O que são essas coisas? Chamei de clichês mas talvez
devesse chamar de tropos, ou de
figuras da retórica narrativa. São como efeitos pré-gravados na música, ou “stock
photos”, coisas já prontas, que se usa como ilustração.
E são um idioma comum a duas ou três gerações de
realizadores e quatro ou cinco gerações superpostas de espectadores, que
constituem a platéia de cinema, em qualquer lugar do mundo.
Estou falando meio injustamente em termos de câmera, dá a
impressão de que a literatura é só criativa e o cinema só derivativo. Quem
criou grande parte desses efeitos, na verdade, foram gerações sucessivas de
narradores com relativamente pouco intercâmbio ou influência direta entre si:
os folhetinistas das capitais européias no século 19, os autores dos
incontáveis gêneros de pulp fiction
nos EUA no século 20, os telenovelistas latino-americanos e principalmente os
brasileiros. E os autores dos romances chamados de best-sellers.
O que os best-sellers (com as exceções de praxe) têm em
comum? Pode-se dizer que é o uso proposto e cumprido de usar algo que o leitor
já conhece e já pede. Seja o clichê displicente,
seja a reviravolta final longamente esperada, como no romance de detetive.
O autor best-seller pode ser descrito como “reader
friendly”, ou amigão do leitor. Ele diz ao leitor: “Ei, estou aqui falando o
mesmo idioma que você fala.” Pode até estar trazendo uma mensagem
originalíssima (se é que isso existe) junto com o resto, quem sabe? Mas o
principal é o fato de ele dizer, e o leitor confiar, que a expectativa será
satisfeita.
O clichê fica interessante quando é tirado dos produtos
de rotina e cai na mão dos desconstruidores. No tempo dos surrealistas, muita
gente repaginou o clichê, como Max Ernst em Une
Semaine de Bonté e outros, ou Buñuel em seus melodramas eróticos.
O clichê só mostra suas verdadeiras possibilidades quando
em vez de encontrá-lo nos sitcoms da TV, que alguns consideram o último elo da
cadeia alimentar da Narrativa, o encontramos no quarteirão vizinho: em André
Breton, em Raymond Queneau, em contextos fraturados ou absurdistas. Nos
surrealistas, nos caligarescos, nos artistas underground ou marginais das
metrópoles latinas.
O clichê é uma promessa, ao leitor, de tranquila certeza.
Usado por artistas mais irrequietos, pode ser uma armadilha com reações
imprevisíveis.
Encontramos os clichês, os tropos e os personagens-tipo em todo lugar, com maior ou menor efeito dramático.
ResponderExcluirRecomendo visitar o tvtropes.org, mas aviso que é difícil sair de lá menos de 8 horas depois.