Canções podem ser parecidíssimas umas com as outras sem
que isso configure plágio. Pode ser coincidência, pode ser homenagem, pode ser
citação, pode ser paródia, pode ser parentesco estético.
Plágio (na minha definição) é quando existe, da parte do
autor da obra “B”, o propósito deliberado de imitar a obra “A”, com a intenção
de que ninguém perceba que isto aconteceu, para que ele seja considerado autor
da idéia original.
Em termos de canção popular, melodia e letra são os dois
critérios mais visíveis para que a gente perceba que uma música é parecida com
outra. Mas às vezes uma canção usa, tintim por tintim, a sequência harmônica de
outra (a sequência dos acordes, o famoso “acompanhamento” que se faz ao
violão), mas com outra melodia e outra letra, e pouca gente percebe. É plágio?
Eu acho que não.
Uma sequência de acordes, por mais rara e peculiar que
seja, não é a música por inteiro; e se alguém consegue colocar uma melodia nova
ali, que não lembre em nada a melodia original, isto pode ser considerado até
uma pequena façanha de talento.
Eu estava uma vez numa festa, um CD tocando no aparelho e
a caixa de som com a voz estava virada noutra direção, de modo que eu ouvia o
acompanhamento bem alto, e a voz baixinha. Era uma canção de Dominguinhos, e
usava praticamente a mesma sucessão de acordes de “Veja Margarida” de Vital
Farias.
A melodia era diferentíssima, a letra nem se fala. Mas
quem arranha um violão vai reconhecendo os acordes, aquela sucessão de “posições”
no braço do violão, sonoridades que vão “virando a esquina” sempre no mesmo
ponto, rumo ao novo acorde.
Vi recentemente na web uma discussão sobre a famosa
canção dos Eagles “Hotel California”, lançada como disco single em fevereiro de
1977. E sobre a qual já escrevi, aqui:
É uma dessas canções de música hipnótica e letra
misteriosa. Lembra aquelas letras narrativas de Bob Dylan ou Leonard Cohen,
onde o enredo acaba estilhaçado e adivinhado pelo contexto, porque a letra
consiste em comentários a uma ação que não vemos, ou visualização de detalhes,
ou registro de uma frase, um gesto...
Aqui vai uma boa versão de “Hotel California” pelos
Eagles, com a letra original e a tradução em português:
A letra tem aquele surrealismo de clássicos do rock como
“A Whiter Shade of Pale” do Procol Harum. Glenn Frey, um dos autores da letra (com
o baterista e vocalista Don Henley; a melodia é de Don Felder), disse numa
entrevista a Cameron Crowe que sua intenção era fazer da canção algo parecido
com um episódio de Twilight Zone.
Mas a canção lembra também incontáveis canções meio
absurdistas de Bob Dylan; letras como “Black Diamond Bay”, “Lily, Rosemary and
the Jack of Hearts”, “Romance in Durango” e outras. Todas do álbum Desire (1976).
No que diz respeito à música, há uma discussão pegando
fogo há anos entre os ouvintes, sobre a possibilidade de “Hotel California” ser
um plágio de uma canção antiga do Jethro Tull, “We used to know” (do álbum Stand Up, 1969). Aqui uma versão
bastante audível desta:
Parece? Eu acho igualzinha, diferindo apenas na conclusão
da estrofe, a melodia correspondente ao quarto verso.
Aqui tem esse cara, do saite TotallyGuitars, mostrando os
acordes do violão de maneira bem acessível, nem é preciso saber inglês:
Ian Anderson, o líder do Jethro Tull, tem esta entrevista
onde ele minimiza a semelhança. Diz que o tom é diferente, o que pra mim é
besteira – a essência de uma progressão de acordes se mantém a mesma em
qualquer tom que seja executada, tal como uma melodia continua a mesma ao mudar
de tom.
Além do mais, o próprio Glen Frey, um dos autores de
“Hotel California”, já afirmou que a música foi originalmente composta em Mi
menor, o mesmo tom original de “We Used To Know”. Depois, no entanto, teve que ser transposta
para Si menor, para se adequar à voz de Don Henley.
Enfim – essa briga toda aí em cima já rola nos fanzocas
de língua inglesa há séculos, e é problema deles. Mas quando eu ouvi “Hotel
California” pela primeira vez, sem conhecer a canção do Jethro Tull, achei
parecidíssima com esta aqui, de Bob Dylan, lançada em janeiro de 1976 no álbum Desire:
“One More Cup of Coffee” não tem a mesma progressão de
acordes de “Hotel California”. Tem até uma sequência bem banalzinha (La menor,
Sol maior, Fa maior, Mi maior) mas, lançada um ano antes, num dos discos mais “best-sellers”
da carreira de Dylan, é pouco provável que os Eagles não a tivessem escutado.
É uma música em que alguns críticos veem uma influência
mexicana/espanhola (já presente em outras faixas do disco, como “Romance in
Durango” que recebeu uma versão de Fausto Nilo, gravada por Fagner). Outros
veem nas frases extensas, de voz tremulante, alguma coisa de canções judaicas.
Em todo caso, uma música marcante e que pode ter ajudado a
sugerir aquilo que a gente chama “um clima”, uma levada rítmica de canção em
torno de um número limitado de acordes, partindo de um tom menor, que é mais
indutivo a produzir na imaginação um certo mistério, uma certa indefinição.
É difícil explicar a diferença entre tom menor e tom
maior a quem não conhece música, de modo que me resta apenas um símile meio
desajeitado: tom menor é uma espécie de preto e branco, tom maior é uma espécie
de colorido.
Minha tese (que qualquer pessoa poderá desmontar em cinco
minutos, concordo) é de que quando Dylan explodiu nas paradas de 1976 com o
álbum Desire os Eagles ouviram-no
muitas vezes de fio a pavio (todos os roqueiros dos EUA fizeram isto, pode
apostar) e surgiu neles a idéia de fazer uma canção com uma levada daquele
tipo, nostálgica, misteriosa, numa canção cadenciada, com estrofes de tamanho
regular onde coubesse muita coisa.
Essa ”muita coisa”, segundo Frey, ia desde referências à
banda Steely Dan até o romance The Magus
de John Fowles, onde, diz ele com
propriedade, “cada vez que o cara passa por uma porta está numa realidade
diferente”.
E no processo de fundir todas essas informações eles
evocaram por um lado a progressão de acordes de “We Used To Know” do Jethro
Tull com a estrutura mais complexa (principalmente por ter um refrão) de “One
More Cup of Coffee” de Dylan, e mergulharam numa letra que está ao nível da
indeterminação surreal e riqueza poética das que Dylan (e seu parceiro musical
na época, Jacques Levy) tinham mostrado em Desire.
Eu resto meu caso, como diria aquele dublador
terceirizado. “Tragam seus álibis”.
Cheguei para ler sobre uma música dos Eagles,sai compelido, praticamente obrigado, a ouvir um álbum de Dylan(Desire).
ResponderExcluirPara escrever o Quixote é preciso ser Cervantes ...
ResponderExcluirO final de hotel Califórnia parece o final de ovelha negra?!
ResponderExcluirO que dizer então da introdução de Angie, dos Rolling Stones? A primeira vez que ouvi eu podia jurar que seria o começo de uma outra versão de Hotel California. ;)
ResponderExcluirNão domino conhecimentos técnicos sobre música. Dito isto, pode parecer absurdo mas, sem saber explicar porquê, encontro uma semelhança muito grande entre "Hotel California" e "Corrientes 348 (A media luz)". Porque será?
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