De vez em quando um leitor deste blog se
queixa de que eu costumo comentar “livros obscuros, não traduzidos no Brasil, de
autores que ninguém nunca ouviu falar”. Verdade. Para os livros de autores
famosos e recém-traduzidos aqui, o leitor tem as páginas dos jornais. Minha
missão aqui é ampliar o cardápio dos curiosos, e felizmente, de vez em quando,
coincidências acontecem, e se não são coincidências são aquele fenômeno de
variação aleatória num processo costumeiramente repetitivo, aquilo que o cavanhaquíssimo
Georges Perec chamava de clinâmen,
fenômeno que podemos comparar ao de duas gotas de chuva que se chocam uma com a
outra durante a trajetória de queda, dando origem, não a uma terceira gota-síntese,
como a lógica formal esperaria, mas a um chuveirinho de gotículas menores,
produto da convergência do momentum
(massa x velocidade) das duas gotas originais.
O parágrafo acima é o contrário do que praticava
Félix Fénéon (Notícias em três linhas,
Rocco, 2018), ao registrar fatos do noticiário urbano e policial da França no Le Matin (1906).
Os dois parágrafos acima mostram que um
escritor não precisa necessariamente “ter uma maneira de escrever”: pode usar várias,
conforme sua conveniência ou as circunstâncias do ofício.
Félix Fénéon (1861-1944) era um sujeito
discreto, que deixou pouca coisa escrita. Destacou-se como editor: editou Les Illuminations de Rimbaud (atribui-se
a ele a ordem final das secções do livro), e a primeira publicação dos Chants de Maldoror de Lautréamont, além
da primeira tradução francesa de James Joyce, Dèdale.
Envolveu-se com o movimento anarquista francês
e em 1894 foi julgado (e absolvido) por um atentado a bomba, do qual talvez não
fosse de todo inocente.
Em 1906 trabalhou no Le Matin produzindo essas notinhas em 3 linhas sobre o noticiário
policial, às quais imprimiu um tom pessoal. Ninguém lhes deu muita importância
na época; sua amante Camille Plateel recortou e colou tudo num álbum, que foi
encontrado pelo crítico Jean Paulhan após a morte do casal.
O Grão-Duque Alexis, agora em Paris, esteve
ontem em Nancy. Como há russos morando ali, a polícia o seguiu por toda parte.
Já ocorreram oito suicídios em
Montpont-en-Bresse no espaço de poucos meses. Desta vez, Lacroix, 70 anos,
enforcou-se.
Em Clichy, um elegante rapaz jogou-se sob as
rodas de borracha de um coche, escapou ileso, e jogou-se depois sob um caminhão
que o reduziu a pó.
Fénéon não “faz literatura”, não enfeita, não
romantiza, até porque havia uma restrição editorial (de extensão) a esses
fragmentos. Não podia ser maior do que é. O redator tem que (como se diz no
futebol) dar um drible num espaço do tamanho de um lenço.
O Globo de hoje (terça, 23) traz no “Segundo Caderno”
matérias de Bolívar Torres e Victor da Rosa saudando a primeira publicação
brasileira das Notícias em três linhas (Rocco),
com tradução de Marcos Siscar e Adriano Lacerda.
A página reproduz também o
único retrato pintado (por Paul Signac) do também cavanhaquíssimo Fénéon (que
foi amigo de artistas como Seurat, Pissarro, Toulouse-Lautrec, Bonnard e
outros).
Em Bécu, 28 anos, que chegou ao hospital de
Beaujon ferido a bala, foram contadas 27 cicatrizes. Seu apelido no submundo: O
Alvo.
Uma dama de Nogent-sur-Seine desapareceu nos
Pireneus em 1905. Foi encontrada numa ravina perto de Luchon, e identificada
pelo anel que trazia no dedo.
Poupon, Gaudin, Jiffray, Ordronneau e Granic
negaram todos ter assassinado Mme. Louet. O juiz de Ramouillet mandou prender
todos eles mesmo assim
O Globo lembra que a cobertura de Fénéon tem tudo a
ver com o Twitter: são menores que um tweet de 280 caracteres. Eram um formato editorial
da época, talvez entregue ao “estagiário” de plantão. Um sujeito com pendor
literário e um tanto ocioso poderia perfeitamente se dedicar a dar polimento a
um formatinho tão desafiador.
Na igreja de Chavannes, na Savoia, um raio
derreteu os sinos e deixou paralítico um paroquiano. Um aguaceiro devastou a
vila.
O sr. Jules Kerzerho era presidente de um
clube de ginástica, e ainda assim foi atropelado ao tentar saltar para dentro
de um bonde em Rueil.
Casado há três meses, um Audouys de Nantes
cometeu suicídio, usando láudano, arsênico e um revólver.
Uma mulher estava sentada no chão em
Choisy-le-Roi. A única palavra de identificação que a amnésia lhe permitia era “modelo”.
O título desses fragmentozinhos de Fénéon (Nouvelles en trois lignes, o mesmo usado
para intitular a secção do jornal) é curioso, porque “nouvelles” tanto pode
significar “notícias” quanto “novelas”. Tanto é assim que a tradução em inglês
(New York Review Books, 2007, com tradução e uma introdução por Luc Sante) chama-se Novels in three lines (e não “News in
three lines”).
São pequenas novelas, encapsuladas num resumo que
é possível ter como ponto de partida para, se não um romance inteiro, pelo
menos um conto de certa extensão. Quanto mais excêntrico o personagem, quanto
mais inusitado ou tocante o fato, maior a voltagem literária que se pode
extrair dele.
No prefácio à edição em inglês, Luc Sante diz:
As pequenas novelas de Fénéon, se consideradas
como uma obra única, representam um marco crucial e até agora menosprezado na
história do modernismo. Mesmo sendo cada item obsessivamente trabalhado, esse
trabalho é num certo sentido o primeiro ready-made. Ele anuncia a era
das comunicações de massa, através de uma sensibilidade formada pelas cadências
e simetria da prosa clássica; preconiza o século da estatística, ao mesmo tempo
em que dá destaque aos detalhes individuais e cotidianos; estimula a velocidade
do consumo ao mesmo tempo em que deixa manifesto o longo tempo dedicado a sua
elaboração.
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