quarta-feira, 17 de maio de 2017

4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)



Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por dia daquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.