Associação Judaica de Polícia (Companhia das Letras, tradução de Luiz A. de
Araújo, 2009; no original The Yiddish
Policemen’s Union, 2007), ótimo livro de Michael Chabon, é um romance
policial e é um romance de ficção científica (do subgênero “História
Alternativa”), em partes iguais. O tipo de livro que agrada a quem gosta dos
dois gêneros (como eu) e desagrada a quem gosta de apenas um e acha a presença
dos elementos do outro uma intrusão incômoda.
É um roman noir ambientado no
Alasca, e seu detetive é Meyer Landsmann, um policial de vida atribulada, convocado a esclarecer o assassinato de um desconhecido, num quarto do pulgueiro
onde ele mesmo reside depois que se separou da mulher.
É um daqueles policiais whodunit que na verdade começam como uma
espécie de whogotit: o primeiro trabalho
do detetive, antes mesmo de pensar em quem teria sido o assassino, é saber quem
foi a vítima. A descoberta dessa identidade começa a criar uma espiral cada vez
mais larga de envolvimentos, interesses, ocultações, pressões políticas e o
escambau.
É um roman noir meio chandleriano, pelo caráter meio cínico e meio
angustiado do detetive, cujos palpites toda vez o precipitam em graves
enrascadas.
Sem falar no talento de
Chabon pra produzir diálogo preciso e cortante, símiles memoráveis (uma
paisagem urbana decrépita é “tão bela quanto um ônibus visto por baixo”),
descrições vívidas de ambiente ou de situação com dois ou três traços. Sem
falar na presença do xadrez, muito mais decisiva aqui do que nos mistérios de
Philip Marlowe.
E a ficção científica? Ah,
esta é a parte mais divertida. O livro transcorre num presente alternativo cujo
ponto de inflexão é o ano de 1948, quando depois da II Guerra Mundial as
potências Aliadas tentaram criar, no território da Palestina, um Estado
independente para Israel. Palestinos e árabes em geral reagiram com violência,
política e militar. Judeus foram massacrados. Os Aliados recuaram. O Estado de Israel
não chegou a existir.
O que aconteceu, então? “Eles
continuam a fabricar judeus,” diz um personagem, “e ninguém fabrica um lugar
onde possa alojá-los.” O Governo norte-americano ofereceu aos milhões de judeus
que já estavam de malas prontas uma faixa de terra no Alaska, para que se
estabelecessem. Criou-se ali, portanto, o distrito de Sitka – uma espécie de
distrito federal para os judeus, administrado pelos americanos, com prazo de
reversão depois de 60 anos. Mais ou menos como aconteceu com Hong-Kong, na
China.
Este é o cenário do livro,
e é o grande trunfo de Chabon (pronuncia-se SHEY-bon):
o ambiente geográfico e humano, um estado israelense que em vez de deserto e
sol escaldante tem uma paisagem de gelo, neve, frio glacial, todo mundo com
capotes de pele e luvas. (Chabon afirma, numa nota, que a concessão desse terreno chegou a
ser proposta a Roosevelt quando este era presidente dos EUA, mas não passou no
Congresso.)
E os palestinos? Os
propriamente ditos vão bem, obrigado, mas os desalojados da vez, no Alaska, são
os índios Tinglit, que levaram um chega-pra-lá geopolítico para que Sitka
pudesse receber aquele novo êxodo de fugitivos do Holocausto.
Chabon diz que imaginou
essa sociedade ao folhear um livro intitulado Diga Isto em Iídiche, de Uriel e Beatrice Weinreich, um manual
prático deste idioma dos judeus exilados e que (segundo ele) foi esnobado aqui no
nosso mundo pelo Estado de Israel, o qual deu preferência ao hebraico. Diz
Chabon (as traduções neste artigo são minhas):
Em que momento da história do mundo existiu
um lugar com o que é sugerido no livro dos Weinreichs? Um lugar onde não apenas
os médicos e os garçons e os motorneiros falam iídiche, mas também os
balconistas de empresas aéreas, os agentes de viagem, os empregados de um
cassino? Um lugar onde era possível alugar a casa de verão de gente que fala
iídiche, assistir um filme em iídiche, ter sua ponte instalada por um dentista
que fala iídiche?
A suposição de um mundo
assim, que não existe, levou Chabon a imaginar sua Sitka cheia de condomínios
classe-média e favelas, ruas cobertas de gelo, ventos cortantes, uma sucessão
estranha de luz do dia e escuridão, e lugares como a rua Max Nordau, o Café
Einstein (onde se reúnem os enxadristas), o Hotel Zamenhof.
O uso do iídiche (principalmente
o vocabulário específico de Sitka) misturado ao inglês dá ao livro uma
aparência ligeiramente “laranja mecânica”. Há um glossário no final, mas em
geral pelo contexto ficamos sabendo que papiros
é cigarro, shoyfer é telefone
celular, noz é “tira”, shammes
é detetive (como o “shamus” do inglês), sholem
é pistola, e assim por diante.
The Yiddish Policemen’s Union ganhou o Prêmio Locus de ficção científica, pelo modo
como utiliza, com rigor e imaginação, os pressupostos do subgênero da História
Alternativa. É preciso imaginar um presente diferente do nosso, que começou a
diferir dele num ponto específico da História.
O livro de Chabon deixa o
leitor informado do essencial logo nos primeiros capítulos, para que não se
perca; mas à medida que o crime vai sendo solucionado pelas tentativas
canhestras mas idealistas de Meyer Landsmann, o lado policial vai se resolvendo
e a ficção científica avulta, porque aos poucos a história deixa de se focar no
cenário meio gótico e preto-e-branco de Sitka, e a revelar o que acontece (ou
está para acontecer) no resto do mundo.
Para quem pertence à
cultura judaica a história reserva certamente pequenos deleites que um estranho
não percebe. Em todo caso, mais que essas vinhetas específicas vale a prosa de
Chabon, e uma trama complexa onde se discute a condição judaica, os percalços
de um casamento, a vinda do Messias, as gangues e milícias dos bairros étnicos,
as relações hostis entre pai e filho, a impessoalidade da espionagem, os
problemas éticos do aborto, as metáforas existenciais do xadrez, a vontade de
Deus.
“Os milagres são um fardo
para um messias,” diz alguém, “não são uma prova de que ele o seja. Milagres
não provam coisíssima nenhuma, a não ser para aqueles cuja fé se compra
barato.” Não é o caso do cético e torturado detetive Landsmann, para quem “o
céu é um lugar kitsch, Deus é uma palavra, e a alma, na melhor das hipóteses, é
a carga da nossa bateria.”
Mass! Vou ler esse livro. Acho que você gostaria, se já não leu-conhece do livro de Michel Faber, Sob a pele, é um misto de ficção científica e sei-que-lá. Abraços.
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