Numa cena deste filme, Manuela (Liv Ullmann) está em crise emocional após o suicídio do marido, e vai procurar um padre católico (James Whitmore) para se aconselhar. O padre está atrasado para um compromisso e, de início, a repele e a trata com alguma rudeza. Depois se arrepende. Pede a ela que se ajoelhe no chão, junto com ele. E diz:
– Nós vivemos tão longe de Deus que ele não ouve as
nossas preces. Por isso, temos que pedir uns aos outros o perdão que esse Deus
distante não pode nos conceder. – Ele pousa a mão na cabeça dela. – Eu perdoo
qualquer culpa que você possa ter tido na morte de seu marido. – E depois de
uma pausa: – E lhe peço perdão pela minha apatia, minha indiferença diante do
seu problema. Você me perdoa?
Ela põe a mão sobre a cabeça dele e diz:
– Sim, eu o perdoo.
Ele fica de pé às pressas e diz:
– Agora vamos, estou atrasado, e meu superior vai me
repreender se eu me atrasar ainda mais.
E os dois saem da sacristia, quase correndo.
No cinema de Ingmar Bergman, tão imbuído daquela
religiosidade angustiada e indagativa, essa cena tem mais força ainda porque O Ovo da Serpente (1977) é ambientado na
Berlim de 1923, com a espantosa crise econômica, o miserê social, e o terror
que era a vida das pessoas comuns na Alemanha estraçalhada pela I Guerra Mundial
e vampirizada pelo Pacto de Versalhes.
É uma das produções mais caras e mais internacionais da
obra de Ingmar Bergman, e (dizem) um dos seus piores filmes. São os dois
aspectos menos relevantes a se discutir sobre ele.
Berlim, 1923. Abel Rosenberg (David Carradine) mora com o
irmão (os dois são acrobatas de circo) numa pensão barata. Chega em casa uma
noite e vê que o irmão se suicidou. Acaba indo morar com a viúva dele, Manuela,
e tendo um caso com ela. Os dois conhecem um médico alemão meio rico, Vergerus,
meio metido a dono do mundo, que simpatiza com Abel e tem um trelelê
clandestino com a moça.
Vergerus consegue para Abel um emprego burocrático onde
ele começa a ter acesso a informações sobre experiências científicas secretas
que usam seres humanos como cobaias. Arranja também um lugar para o casal morar,
mas daí em diante eles brigam o tempo todo, no prédio há um motor que zune dia
e noite, e Abel, que já é meio alcoólico, começa a ter acessos de fúria, que
contagiam Manuela.
O filme é uma mistura de “Big Brother” com Auschwitz. É o
filme mais dark de Bergman, onde a
angústia existencial é substituída pela brutalidade nazista e pela fome pura e
simples. Na Alemanha de 1923, as pessoas vivem bêbadas, porque a bebida é
barata e a comida não existe. Há uma
cena em que pessoas carneiam um cavalo morto em plena rua, no centro da cidade.
Outra influência do filme é o Cabaret de Bob Fosse, ambientado no mesmo espaço e tempo: Bergman
mostra nos cabarés pobretões cenas que lembram o de Fosse: um
mestre-de-cerimônias que parece calcado no de Joel Grey, números de ménage à trois grotesco com travestis.
No fim, os nazistas invadem o cabaré, espancam o dono e ateiam fogo a tudo.
Abel descobre que há câmeras ocultas no apartamento, e ele
e Manuela estavam sendo filmados por ordens de Vergerus. Estavam também aspirando
um gás que os fazia brigar o tempo todo. Uma espécie de Big Brother à revelia
dos participantes. Um prelúdio das experiências que alguns anos depois
cientistas nazistas como Mengele se sentiriam à vontade para realizar nos
campos de extermínio.
As experiências do filme envolvem centenas de cobaias
humanas, em recintos fechados e monitorados. São uma gota no oceano. Quase um
século depois, elas podem ser realizadas numa escala inimaginavelmente maior,
com centenas de milhões de cobaias. Ao invés de um gás desorientador dos
sentidos, algoritmos e memes cuidadosamente concebidos e viralizados.
Um mero fato (um acidente, um crime, uma crise política,
uma frase de celebridade) pode ser manipulado memeticamente e se espalhar como uma febre instantânea, produzindo
milhões de respostas em ondas sucessivas que se espalham por um país inteiro ao
longo de poucos dias.
Essas respostas são monitoradas, tabuladas, reforçadas
aqui, neutralizadas acolá, numa experimentação em que milhares de monitores
humanos e de controles robóticos filtram e classificam as reações das cobaias,
indicando cada elemento capaz de extrair respostas mais rápidas, ou mais
intensas, ou mais duradouras. Assim se produz o ódio, a confusão conceitual, a
paixão-ou-repulsa via reflexo condicionado.
Não é necessário para isto que as cobaias estejam
trancadas em kafkeanos labirintos subterrâneos. O experimento é um processo
cotidiano, sem começo nem fim, um bombardeio eletrônico permanente,
permanentemente aferido e recebendo correções de rumo. Permitindo prever como
reagirão dezenas de milhões de pessoas quando receberem os tipos de estímulo a
que foram acostumadas.
Através da membrana translúcida e delicada, pulsa o corpo
da serpente por nascer.
A Arte põe em evidência a precariedade de nossa consciência, de nossa liberdade, invisivelmente administrada!
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