quinta-feira, 12 de outubro de 2017

4277) Por que nunca li Kazuo Ishiguro (12.10.2017)



Coitado de Kazuo Ishiguro: entrou neste título como Pilatos no Credo. Podia ter sido Haruki Murakami, ou Yasunari Kawabata, ou Yukio Mishima, para ficar somente em alguns dos seus conterrâneos nobelizáveis.

A lista dos autores que nunca li daria alguns terabytes de arquivo “.rtf” e serviria como um excelente guia de estudos para a juventude dos próximos séculos.

Alguém me diz:

– BT, o que você acha da obra de Gilles Deleuze?

– Nunca li – respondo.

– Por quê?

E aí a conversa trava, porque não sei o que responder. Já quis ler. Já devia ter lido. Preciso ler! Seguramente lerei, daqui para o ano 2095.

Eu não tenho a menor idéia de por que não li esses caras, porque em tese todos me interessam, eu não tenho nada contra nenhum deles, não acho que sejam chatos, que sejam reacionários, que sejam incompreensíveis, que sejam entediantes.

Às vezes pego finalmente o livro para ler e não gosto, porque descubro que têm um desses defeitos, ou algum outro. Mas isso nunca me ocorre antes da leitura.

Ouço falar em “Peter Ackroyd”, em “Elisa Lispector”, em “Jane Austen”, em “Mário Palmério”, em “Harold Bloom”, em “Dyonélio Machado”, nesse pessoal que todo mundo lê e elogia, e sempre me dá uma vontade danada de conhecer a obra deles.

E não se fale na inacessibilidade dos livros, porque muitas vezes já tenho alguns na estante.

Acontece que “ler um livro de alguém” é um ato voluntário, uma decisão. “Não ler um livro de alguém” não o é. Cada livro pegado pra ler tem no outro lado da balança 100 livros que não tiveram essa sorte (ou azar). Ler um é cancelar a possibilidade de estar lendo os outros. E nem sempre estamos lendo “A” porque achamos que ele é superior ao restante do alfabeto. As razões para ler são milhões, e as razões para não ler, quase nenhuma.

Existem pessoas metódicas, que leem metodicamente, fazem listas de leitura e as cumprem fielmente. É uma questão de profissionalismo, que admiro.

O respeitável S. T. Joshi afirma que para escrever seu clássico ensaio The Weird Tale (1990) programou-se para ler tudo que foi escrito pelos seus autores estudados (Arthur Machen, Lord Dunsany, Algernon Blackwood, M. R. James, Ambrose Bierce e H. P. Lovecraft). O grau de detalhe com que ele aborda essas obras (às vezes várias dezenas de livros, no caso de alguns deles) dá a entender que leu mesmo tudo.

E existem leitores que só fazem isso quando estão trabalhando a sério sobre algum assunto, mas são totalmente caóticos nas leituras complementares. Eu, por exemplo, não tenho a menor idéia do que estarei lendo daqui a dois meses, quando terminar os livros que leio no momento. E conheço gente que tem os próximos 10 meses de leitura já escalonados: tantas semanas para o livro A, tantos dias para o livro B...

Em geral eu estou lendo um livro policial e vejo uma menção a um livro de história da II Guerra; encontro no sebo e leio no mês seguinte. Nele alguém fala da importância de um filme da época, e lá vou eu ler a biografia do obscuro diretor. O diretor discute uns assuntos interessantes que me levam a um livro de filosofia, e este a uma antologia de poetas gregos. Lendo os poetas gregos me lembro de um poeta uruguaio. E por aí vai.

Muita gente lê assim: lê por associação de idéias, às vezes por um tema, às vezes porque tem curiosidade por um país ou uma época e quer ler algo que tenha a ver com aquilo. Outras vezes lê por uma recomendação, ou por ser amigo do autor. Todo livro fervilha de razões para ser lido.

Essas pessoas leem com uma curiosidade inesgotável pelo mundo, sem plano de estudo, sem outra utilidade a não ser a de ficar sabendo, entendendo melhor certas coisas, vendo o muito com mais nitidez, ou com mais colorido, ou com mais nuances.

Leem como se fossem Correspondentes Estrangeiros vindos de outro planeta, e soubessem que a hora da volta se aproxima; e que nada poderão levar consigo a não ser o que está de fato consigo, o que se imprimiu na memória do seu corpo.








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