(The Ape, 1940)
Quando Ariano Suassuna era menino, morou durante alguns
meses em Campina Grande. A mãe dele, viúva, teve que passar um tempo lá para
ajudar uma prima que estava doente, algo desse tipo. E lá vai Ariano, um dos
filhos mais novos, morar com ela, e estudar no Colégio Alfredo Dantas, que era
do Tenente Alfredo, um parente deles pelo lado materno.
(antiga fachada do
Colégio Alfredo Dantas)
Isso foi logo após a inauguração do Cine Capitólio, que
se deu em 1934, com o filme Cavadoras de
Ouro (“The Gold Diggers”), um dos
títulos de uma série de musicais da década de 1930. Acho que era esse o filme
que Ariano comentava ter visto:
– Era um filme besta danado, uma porção de mulheres
abrindo caixas de chapéus e experimentando os chapéus, ô negócio mais sem
graça!
(Cavadoras de Ouro)
A história mais interessante, porém, era a que ele
contava de quando uma das suas tias de Campina o levou para ver um filme de
terror, que eu depois identifiquei como sendo The Ape (1940), com Boris Karloff. Segundo Ariano, era a história
de um cientista louco que se vestia numa pele de gorila e saía de noite pela
cidade, cometendo crimes.
Acontece que a tia de Ariano era uma senhora pouco
acostumada ao cinema e ia só para fazer gosto ao sobrinho-visitante. Ela tinha
um raciocínio – digamos – um pouco lento para acompanhar a história, e de vez
em quando fazia comentários ou perguntas que provocavam o riso nas pessoas das
cadeiras próximas, e Ariano, menino, morria de vergonha, ficando
com vontade de se enfiar embaixo dos assentos.
(The Ape, 1940)
Perto do fim do filme, o cientista, disfarçado de gorila,
teve a luta final contra a polícia, ou algo assim, foi alvejado e caiu morto. E
nesse momento acontece a clássica cena da re-transformação (comum em filmes de
lobisomens e em histórias como “O homem invisível”, “O médico e o monstro”,
etc.), quando após a morte o monstro revela sua identidade humana.
Os policiais examinaram o gorila caído e, rasgando a
roupa de pele, viram Boris Karloff lá dentro. Um silêncio enorme pairou no Cine
Capitólio e no meio do silêncio a voz excitada da tia de Ariano, que enfim
entendera a história:
– Eita, Ariano!
Entendi! O urso tinha comido o
doutor!
O cinema veio abaixo e Ariano quis desaparecer.
(Vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Ferdinand Zecca, 1905)
Essa história me lembra outra, que se contava lá em casa.
Antigamente, durante a Semana Santa era costume dos cinemas exibir uma versão
bem antiga do filme A Paixão de Cristo:
um filme mudo, sempre em cópia bem estragada, com aquele movimento
aceleradozinho. E o pessoal católico ia assistir todos os anos o mesmíssimo
filme.
(Que ainda não sei se era o filme de Ferdinand Zecca de
1905 ou o de Cecil B. De Mille de 1927).
Aí... Hollywood produz O Rei dos Reis (1961), um filme em Technicolor, de Nicholas Ray,
com Jeffrey Hunter – lourinho, bonitinho, de olhos azuis – no papel de Cristo.
Uma beata que morava nas redondezas foi ao cinema, como
ia todos os anos, e voltou para casa pegando ar.
– Isso é um desaforo!
A gente vai no cinema pra ver a paixão de Nosso Senhor e eles botam um
filme colorido com um artista americano!!!
– Mas tia, e que filme a senhora queria ver?
– Eu queria aquele outro que tem todo ano, o antigo, o
que foi feito com Jesus Cristo de verdade!
Ela pensava que A
Paixão de Cristo era um documentário filmado no ano 33 da Era Cristã.
Essas histórias são engraçadas por que mostram o caráter
alucinatório que o cinema sempre teve para as populações mais simples,
principalmente em suas primeiras décadas de existência. Os espectadores estavam
diante de várias coisas ao mesmo tempo: uma cerimônia coletiva (centenas de
pessoas) numa sala escura, contemplando uma coisa luminosa, impressionante e
gigantesca – e que não entendiam por completo.
E mais do que isso: sendo forçadas a fazer sentido de uma
sucessão de imagens cuja gramática e sintaxe elas levavam talvez anos para
aprender.
Me lembro de ter lido um comentário de um jornalista, nas
primeiras décadas do século 20, dizendo mais ou menos assim: “O filme é
incompreensível. Vemos um casal sentado a uma mesa, conversando, de repente
aparece a cabeça de um gigante, e em seguida vemos o casal de novo, bem
tranquilo, aparentemente sem perceber nada.”
O gigante era o rosto do ator em close-up.
Isso era ainda mais notável quando sabemos que a imagem
cinematográfica, em suas primeiras décadas, era muito mais sujeita do que hoje a
desfoques, trepidações, manchas, má projeção, películas arranhadas ou mofadas, telas
de má qualidade.
Focalizar aquelas imagens, identificá-las, fazer a conexão
entre elas... isso era um trabalho insano, para mentes de garotos ou mesmo de
adultos cujos cérebros jamais tinham sido submetidos a uma tal montanha-russa
imagética. (Comparados ao cinema, o teatro e a ópera eram um oásis de
continuidade e foco.)
Em As Palavras (“Les
Mots”, 1963), Jean-Paul Sartre lembra com carinho essa fase psicodélica,
alucinógena de sua infância nos cinemas parisienses repletos (tradução de J.
Guinsburg):
Eu raspava minhas costas em joelhos, sentava-me num assento rangente,
minha mãe introduzia uma coberta dobrada sob minhas nádegas a fim de me alçar;
por fim eu olhava a tela, descobria um giz fluorescente, paisagens
pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo
nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma
baronesa sem que ela parecesse espantada. Eu amava esta chuva, esta inquietação
sem repouso que trabalhava a muralha. (...) Eu, por meu lado, queria ver o
filme o mais de perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro,
aprendera que a nova arte pertencia a mim, como a todos. Éramos da mesma idade
mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze, e não sabia falar.
Sartre usa aí de uma certa licença poética, porque o
cinema era na verdade dez anos mais velho do que ele.