quarta-feira, 27 de setembro de 2017

4272) Guido Araújo 1933-2017 (27.9.2017)



Tive muitos “pais adotivos” ao longo da juventude; em geral eram professores que me botavam embaixo da asa com o nobre propósito de incutir um pouco de juízo na eterna bagunça que era a minha cabeça. Um deles foi Guido Araújo, o criador da Jornada de Curta-Metragem da Bahia.

Acho que conheci Guido em 1973, quando fui participar da Jornada em Salvador. Era a “II Jornada Nordestina de Curta-Metragem”, e eu fui com José Umbelino Brasil e Romero Azevedo, representando a Federação Nordeste de Cineclubes, que naquela época estava sob a nossa responsabilíssima gestão.

Viramos a noite no ônibus da São Geraldo, amanhecemos indo direto para o Corredor da Vitória, onde ficava a sede da Jornada: o ICBA, ou Instituto Goethe. Fomos direto fazer o credenciamento. Guido nos recebeu, passou as informações básicas e anotou um endereço no papel:

-- Vocês vão ficar hospedados neste endereço, nos Barris. É a pensão da mãe de Glauber Rocha.

(ÁUDIO: três cineclubistas desmaiando.)

Ficamos voltando à Jornada todos os anos, e em 1977 eu resolvi me mudar com armas e bagagens para Salvador; era no tempo que eu estava casado com Lili (Arly Arnaud) e ela ia estudar teatro na UFBA. Guido prometeu emprego, e o saudoso Luís Orlando fez a costura para nossa ida.

Guido ensinava cinema na UFBA e era presidente vitalício do Clube de Cinema da Bahia, a entidade que organizava a Jornada. O Clube de Cinema funcionava em salas cedidas pelo ICBA e tinha verbas para pagar dois ou três funcionários (eu fiquei sendo o “ou três”).

Quem não viveu aquela época não pode imaginar o que era; dias atrás estive comentando com Bené Fonteles o que foi o ICBA durante a ditadura. Por ser um instituto cultural alemão, até mesmo a censura da ditadura ficava a uma prudente distância do torvelinho de festivais, shows, recitais, lançamentos, cursos, assembléias e manifestações artísticas e políticas que rolava lá dentro.

O diretor do ICBA era Roland Schaffner; ele e Guido tinham em comum a preocupação obsessiva com detalhes, e a neurose de fazer com que todas as coisas dessem certo. E funcionavam bem em conjunto. Se tenho alguma fé na humanidade, deve-se em grande parte ao fato de ter trabalhado quatro anos num instituto de alemães e baianos, dois povos tão alienígenas entre si, e ver os dois convivendo em harmonia e trabalhando com eficiência.

Guido fez da Jornada um canal de defesa do cinema brasileiro tanto no lado estético quanto no lado administrativo: se não me engano, a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) foi criada lá, nas reuniões paralelas da Jornada.

Ano passado, Jorge Alfredo estava filmando uma série de TV sobre ele, “O Senhor das Jornadas”, e me chamou para participar de uma rodada de conversas que iam promover com Guido na Bahia. Não pude ir; tinha compromisso que não podia remarcar.

O perfil de Guido como cineasta era de documentarista ao estilo do Cinema Novo, e muitas vezes o vi impaciente ou incomodado com o que ele chamava “as maluquices dessa rapaziada do super-8”; mas a Jornada sempre esteve aberta para a rapaziada e alguns dos clássicos mais irreverentes desse formato foram exibidos lá.

Na Jornada eram freqüentes os arranca-rabo entre Guido e os cineastas que iam para lá na expectativa de mais um festival com boca-livre e uísque de graça no frigobar. Guido cortava tudo: era café da manhã, ticket de refeição, e mais nada. Os cineastas se desesperavam: “É o stalinismo!”. Ele dizia: “Isso aqui é um evento de trabalho. Todo mundo pode beber, mas cada um pague o seu.”









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