quinta-feira, 29 de junho de 2017

4248) "O Horlá" de Maupassant (29.6.2017)




Devorei num dia o exemplar da mais recente tradução brasileira (São Paulo, Grua, série “A Arte da Novela”, 2017) de Le Horla (1887), o clássico da literatura fantástica de Guy de Maupassant. Meu colega Sérgio Flaksman, ao que eu saiba, foi o primeiro tradutor a cravar um acento agudo no título: O Horlá, conforme a pronúncia do original francês.

Eu passei a vida toda dizendo “o Órla”, até que um belo dia tomei conhecimento do projeto “Hors-Là” através do artista plástico Raul Córdula, um projeto de intercâmbio artístico entre a Paraíba e a França (isso mesmo; se a gente for esperar pelo Brasil não faz nada). O projeto trouxe muitos artistas franceses à PB, e levou para lá muitos conterrâneos, inclusive amigos meus como Luiz Barroso, Dyógenes Chaves e outros.

“Hors-là” (esclarece Sérgio numa nota final ao esguio volume) quer dizer algo como “lá fora, aí fora”, ou mesmo “aqui fora” como dizemos meio contraditoriamente quando estamos dentro de casa: “Vamos sentar aqui fora, está passando um ventinho bom” – o “aqui” refere-se não à parte interna, mas à casa em si.

Maupassant é um dos grandes contistas de todos os tempos. Suas histórias são lições leves e nítidas de como narrar. Era, imagino, um desses autores que parecem uma torneira, basta abrir e o texto brota, límpido, abundante, já num formato que parece inevitável e obtido sem muito esforço.

Seus contos fantásticos são geralmente associados ao fato de que morreu louco, de sífilis, e que o progresso gradual da doença contaminou sua percepção das coisas. Aconselho o livro A Viagem (Companhia das Letras, 2003) de Noemi Moritz Kon, que faz um percurso de idas e vindas entre psicanálise e literatura usando a obra de Maupassant como um dos canais (além de Stevenson, Poe e Machado de Assis). Não me lembro de nenhuma biografia dele traduzida no Brasil, mas há algum tempo comentei esta aqui, em inglês:


Incluí um conto de Maupassant numa das minhas antologias (“Uma aparição”, em Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007) e lamento não poder incluir um em cada outra que venha a organizar. “Quem sabe?” é uma dessas narrativas inesquecíveis: a história do homem que, voltando para casa à noite, vê toda a sua mobília fugindo de casa, poltronas, mesas, camas, tudo se arrastando sozinho pelo chão e indo embora, como num desenho animado.

Na sua veia fantástica, Maupassant era o rei do “relato alucinatório”, o conto onde alguém narra uma série de fatos bizarros e incompreensíveis, com ou sem elementos sobrenaturais, mas regido do começo ao fim pela voz do menos confiável dos narradores-não-confiáveis: um narrador louco. O tipo de história popularizado por Hoffmann e Poe, e ao qual ele deu colorações muito pessoais.

“O Horlá” é um desses relatos, em forma do diário de um homem que se crê assediado e vampirizado por um ser invisível. É também uma das aparições gloriosas do Brasil na literatura fantástica européia. O narrador, que vive à margem do rio Sena, conta logo no início:

Como estava linda a manhã!
Por volta das onze, um longo comboio de navios, puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca que grunhia de esforço vomitando uma fumaça espessa, desfilou diante de minhas grades.
Depois de duas escunas inglesas cujo pavilhão vermelho ondulava contra o céu, vinha um soberbo navio brasileiro de três mastros, todo branco, admiravelmente limpo e lustroso. Prestei-lhe uma continência, nem sei por quê, tamanho foi o prazer que me deu a visão desse barco. (pag. 14)

Há uma ironia trágica nesse gesto, porque lá pro final o narrador constata que nesse barco veio a criatura invisível que ingere líquido e também suga dele a força vital. Lá pelas tantas, o narrador cita o que leu na Revista do Mundo Científico:

Uma notícia muito curiosa nos chega do Rio de Janeiro. Uma loucura, uma epidemia de loucura, comparável às demências contagiosas que afligiram os povos da Europa na Idade Média, grassa neste momento na província de São Paulo. Os habitantes confusos deixam suas casas, abandonam suas aldeias, renunciam a seus campos, dizendo-se perseguidos, possuídos, governados como um animal de serviço humano por seres invisíveis embora tangíveis, espécies de vampiros que consomem suas vidas enquanto dormem, e que além disso bebem água e leite sem dar a impressão de tocar em qualquer outro alimento. (pag. 44)

O texto de Maupassant é classificado às vezes como ficção científica, porque o próprio narrador postula uma explicação evolucionista para este pesadelo, a substituição de uma espécie dominante (o Homem) por outra:

Pobre do homem! Ele chegou, o... o... como é mesmo que ele se chama... o... tenho a impressão de que ele me grita o seu nome, e não consigo ouvir... o... sim... ele grita o nome...  E eu escuto... não posso... repita... o... Horlá... Eu ouvi... o Horlá... é ele... o Horlá... ele chegou!...  (pag. 46)

O “hors-là” é algo que está “aqui fora”, próximo de nós mas ao mesmo tempo irredutivelmente “outro”, “estranho”, diferente de nós, alheio a nós, alienigenamente diverso da nossa essência.

Por mais que afete loucura, o narrador tenta explicar de forma científica a invisibilidade do Horlá, lembrando que nossos olhos percebem apenas uma gama muito limitada do espectro luminoso. Uma explicação que seria retomada em 1893 por Ambrose Bierce no seu conto clássico “The Damned Thing”, onde ele postula a existência de uma fera que tem a mesma existência física de qualquer outra, mas cujos pelos têm uma cor invisível ao olho humano.

A edição da Grua traz três textos: as duas versões de “O Horlá” que Maupassant publicou em 1886 e 1887 (esta última mais longa, e considerada a “versão oficial”), e a “Carta de um Louco” (1885) onde ele já desenvolvia alguns temas do conto.








segunda-feira, 26 de junho de 2017

4247) Escrever é cavar (26.6.2017)




(ilustração: Ariano Suassuna)

Nem todo mundo é assim, mas para algumas pessoas escrever é cavar.

Existe uma coisa que está sendo procurada, e é preciso um esforço de remoção de entulho até chegar a essa coisa. Digamos que estamos cavando um poço. O que procuramos é a água. O que temos de remover é a terra.

Cada dia é diferente. Tem dias em que a gente mete a pá na terra, e a água já brota. Tem dias em que a gente cava dois metros de fundura e só acha terra seca.

Não depende da gente. A mente imaginativa da gente (estou falando de escritor, de quem trabalha com a mente imaginativa) produz muita terra seca, palavras que parecem dizer alguma coisa mas não dizem nada. Palavras opacas, sem brilho; palavras surdas, sem som; palavras inertes, sem vibração.

A gente vai cavando e esperando a água brotar. A água são aqueles filetes de palavras que trazem movimento, vibração de fluido, reflexos da luz em volta, murmurejamento de coisa viva. Uma frase que se a gente arrancar da página e jogar no chão ela sai andando sozinha.

Você está procurando por isso, aí escolhe um lugar onde cavar. “Vou dizer tal e tal coisa.”  Começa a cavar. Cava um metro, dois metros de fundura. Nada acontece. O que se deve fazer, então?  O que se “deve fazer” eu ainda não sei: sei o que se faz. Eu geralmente paro de cavar ali e vou cavar noutro canto.

A letra do samba empancou por falta de uma rima? Vou trabalhar meia hora naquele artigo sobre Stanley Kubrick. O artigo não está caminhando? Vou preparar as aulas daquela oficina de poesia.  A oficina não rende?  Meia hora de tradução de Chandler talvez salve esta manhã.  A tradução parou num “pig’s valise”? Talvez seja hora de voltar à letra da música. Milagre! Heureca! Achei a rima que faltava.

Eu tenho a superstição (cientificamente infundada) de que cavar um buraco ajuda a aumentar proporcionalmente os outros buracos em que estava cavando.  Acho, contra toda lógica, que trabalhar na escavação A me ajuda também a chegar mais perto da possível água contida em B, C e D.

Saber onde cavar é um dos maiores “talentos ocultos” da humanidade. Uso a palavra talento não no sentido de talento artístico, como é mais frequente no português, mas no sentido parapsicológico, sobrenatural, metapsíquico, com que a palavra “talent” é tão usada em inglês.

Talento é o que têm os rabdomantes para andar pelo sertão empunhando uma forquilhazinha de pau e em dado local parar e dizer: “Aqui tem água”. Ou, como diz o adivinhão-de-água de Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna, tem “uma cordilheira de água nativa”.

O talento que tinha o Ragle Gumm de Philip K. Dick (Time Out of Joint, 1959) para adivinhar o lugar onde o homenzinho verde ia aparecer no quebra-cabeças do jornal. Ou o talento que tinha a Cayce Pollard de William Gibson (Pattern Recognition, 2003) para olhar de supetão um logotipo e saber se ia ou não funcionar com o público. Ou o talento que possibilita ao Martin Carvajal de Robert Silverberg (The Stochastic Man, 1975) adivinhar o futuro para turbinar candidaturas presidenciais, e mergulhar na crise existencial dos que já sabem tudo, tudo, tudo o que vai acontecer.

O que chamam de talento literário não é propriamente isso mas é irmão disso, a capacidade de escolher, entre as centenas de milhares de palavras do idioma, aquelas palavras que, enfileiradas, vão resultar numa história capaz de fazer o leitor dizer: “uau”. 

Conta-se que o produtor hollywoodiano Irving Thalberg, numa reunião com roteiristas, minimizou o ofício: “Grande bobagem, ser escritor. É só botar uma palavra atrás da outra”. E uma roteirista, Lenore Coffee, respondeu: “Perdão, Mr. Thalberg: é botar uma palavra certa atrás da outra”.

Como diz Glauco Mattoso: todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estão no dicionário, só que estão fora de ordem. “Talento” é imaginar uma possível ordem para elas.

Vejam só, metalinguisticamente, o que é a escrita. Eu comecei com uma estética eliminacionista, comparando a literatura à escavação de um poço. Por essa metáfora, a literatura seria algo que já existe (a água, no lençol freático) e o trabalho do escritor seria remover alguma espécie de entulho (a terra) até descobrir uma obra preexistente.

A estética eliminacionista é a que levava Michelangelo a descrever assim suas esculturas: “Eu olho para o bloco de mármore, vejo o Moisés lá dentro, e aí basta remover tudo que não é o Moisés”.  Todos sabemos que o Moisés não está lá dentro, e que a remoção é feita por aproximações, agravadas pelo fato de não se poder errar. (Em escultura, o que é tirado não pode ser botado de novo.) Seria ótimo que o Moisés interior fosse de mármore e o resto do bloco fosse de açúcar cristalizado. Era só descascar! Mas não é assim.

Ora, está na cara que a literatura não é feita assim. O texto não “já existe” e está oculto. Muito mais útil é ver a escrita como essa busca das palavras, mas eu refinaria a definição de Mrs. Coffee dizendo que não se trata apenas de palavras.

A unidade básica da literatura não é a palavra, é a frase. Isto aqui, que aparece entre um ponto e outro. Cada vez que a gente digita “ponto, espaço” a gente volta à estaca zero: é preciso compor a próxima frase. Ela tem que se conectar à que veio antes, e à que virá depois. As frases se encadeiam como dominós. Esse conectar muitas vezes é uma questão de ruptura com o que foi dito antes, mas sempre uma ruptura que produza novo significado. Bigornas chovendo. É assim que as idéias nos tomam de assalto. Cada frase é uma bigorna que cai em nossa cabeça e precisa ser traduzida em palavras.









sexta-feira, 23 de junho de 2017

4246) A Barca e a Carroça (23.6.2017)




(foto: Marcelo Rodolfo)


Por causa do meu trabalho recente com teatro, tenho voltado a encontrar algumas dessas imagens que nunca nos largam. Imagens associadas a um gênero narrativo. Elas são como um pequeno objeto que a gente toma nas mãos, fica mudando de posição, e cada ângulo nos revela uma informação nova.

A imagem do momento é a da Barca, porque a companhia teatral com quem tenho trabalhado é a Barca dos Corações Partidos, do Rio.

Bastaria esse nome para ganhar meu voto, porque isso por um lado me lembrava o “Mote do Navio” de Pedro Osmar (“Lá vem a barca / trazendo o  povo, / pra liberdade / que se conquista”) e por outro evocava o Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta.

Por falar em Pimenta, o “Mote do Navio” de Pedro, uma música que é a cara do seu grupo em João Pessoa, o Jaguaribe Carne, foi gravado por Lenine no CD que fez em 1983 com Lula Queiroga, o Baque Solto (PolyGram).

“Lá Vem a Barca” era também o nome do show que eu, Fuba e Tadeu Mathias fazíamos à meia-noite no Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, em 1980. Uma temporada que me abriu os olhos musicalmente, levando-me a conhecer, na amizade com o pessoal do teatro (alô Gordo, Fernandão, Riba, Chico Pardal, Plínio, Inimá) a música do Rumo, de Itamar Assumpção, do Premê, de Arrigo Barnabé, do Língua de Trapo.

A canção de Pedro Osmar servia como anúncio de uma Nau Catarineta mística que nos traz a liberdade. Uma espécie de Sebastianismo marítimo, ao qual nem mesmo Bob Dylan ficou imune; basta lembrar “When the Ship Comes In” (1963).

Esse arquétipo da Barca significa algo que está vindo e que vai trazer para nós um mundo melhor. Ou, dependendo do poeta, nos levar para um mundo que seja melhor do que esta coisa-sem-jeito em que vivemos. Pode ser a Arca de Noé que nos salva de um cataclismo, e pode ser o navio que depois de longo sofrimento nos resgata na ilha deserta em que nos aguentamos.

A Barca, “enquanto” elemento mítico narrativo, pertence a uma extensa família de espaços fechados que conduzem no seu interior uma memória cultural inteira.

Roland Barthes, em Mitologias (1957), citava como exemplo o “Nautilus” de Julio Verne em Vinte Mil Léguas Submarinas (1870). Um submarino cheio de obras de arte, instrumentos científicos, biblioteca de milhares de livros, tudo isso num tubo de metal e vidro viajando pelo fundo do mar. Um conceito terminal de condomínio fechado. Com o agravante de ser também um vaso de guerra.

Foi nessa altura que me ocorreu que a Barca, transposta para a terra, vira a Carroça. Pode ser o carro-de-bois que geme com seus viajantes em qualquer livro regionalista, e pode ser a carroça de um circo ambulante.

Pode ser a carruagem que cruza com ousadia o território infestado de índios em No Tempo das Diligências de John Ford (1939) e pode ser a trupe ambulante da commedia dell’arte do filme As Aventuras do Capitão Tornado (1990) de Ettore Scola.

Tudo isto faz lembrar também a “Barraca” com que o poeta e dramaturgo Garcia Lorca percorria a Espanha montando autos em praça pública, e que tanto influenciou o jovem Ariano, Hermilo Borba Filho e seus companheiros no Teatro do Estudante de Pernambuco, nos anos 1940, quando ele escreveu Uma Mulher Vestida de Sol (1947).

Remete também à trupe teatral de Monsieur Binet em que André Luís Moreau descobre o teatro e se transforma em Scaramouche, no romance de Rafael Sabatini (1921). Remete ao Circo ambulante que Dom Pedro Dinis Quaderna planeja botar na estrada no final do Romance da Pedra do Reino.

A Barca, que é ao mesmo tempo uma Carroça, expressa para alguns a volúpia da vida nômade, da vida cigana. Bruce Chatwin tinha uma teoria de que o sedentarismo e a civilização tinham estragado a aventura humana, o “sonho de Adão” como disse Gilberto Gil. Nascemos para ser nômades, pastores, viajantes; nascemos para ser leves e aventureiros.

Como disse Deus a Tonheta em Brincante (1992): “Nessa carroça seguirás pelo mundo, depois de nela colocar tudo que tens; e durante o resto da tua vida não poderás possuir nada que nela não possa caber”.

É uma prescrição de desapego. De que adianta sair em aventura pelo mundo levando a banheira de água quente, a poltrona de leitura, dez baús de roupa, todos os automóveis da família? Não, amigo. Terás direito a uma carroça, não mais.

Quando um grupo de artistas (circo, música, etc.) sai de mundo afora numa carroça, mais do que o espaço físico importa a mescla social e psicológica de tantos tipos humanos em interação permanente ao longo da rotina da estrada. E das surpresas da estrada.

Nesse sentido, esses filmes de super-heróis coletivos, como X-Men, lembram os filmes sobre circo. Ali, cada personagem se distingue e se afirma pela façanha que é capaz de realizar, mas, tirando esse aspecto excepcional, são pessoas tão complicadas e tão pouco heróicas quanto qualquer um de nós.

Em todo coletivo humano, existe um fator de nivelamento (coisas que todos sabem fazer, com a mesma competência, ao mesmo tempo, solidariamente) e um fator de individuação (coisas que somente um sabe fazer de forma excepcional). As posições dos jogadores, no futebol, exprimem um pouco disso.

Dizem que a história folclórica da “Branca de Neve e os Sete Anões” referia-se aos anões sempre coletivamente: eles não tinham nome, nem perfil próprio. Foi Walt Disney (ou alguém a quem ele pagava um ótimo salário) quem teve a idéia de personalizar os anões, transformando-os em Mestre, Zangado, Feliz, Soneca, Atchim, Dengoso e Dunga.

Todo agrupamento que viaja numa Barca ou numa Carroça precisa disso. O coletivismo solidário e a individualidade marcante.

Esta é uma das coisas que precisamos não esquecer, nos tempos que virão.









terça-feira, 20 de junho de 2017

4245) Eu me lembro 11 (20.6.2017)



Eu me lembro da campanha eleitoral para a Prefeitura de Campina, entre Newton Rique e Severino Cabral, em que os partidários de Newton chamavam Cabral de “Pé de Chumbo”, porque ele era popular e grosseirão, e os cabralistas chamavam Newton de “Mão de Seda”, porque ele era rico e granfino. E o programa de rádio de Newton usava como característica a música “Pé de Anjo” de Sinhô (aquela que dizia: “Tens o pé tão grande, o pé tão grande, que és capaz de pisar nosso senhor”).

Eu me lembro (até porque nos arquivos da família ficou uma foto desse dia) de alguma comemoração ou festa que houve no campo do Paulistano (na av. Assis Chateaubriand, onde hoje se ergue um hipermercado ou coisa parecida) num dia de sol inclemente, e eu devia ter uns 8 anos e estava tomando guaraná, e meu pai tomava cerveja, e eu de brincadeira pedi para provar, ele me deixou tomar um gole, era uma coisa amarga que parecia remédio, e eu disse: “Que negócio ruim danado, nunca mais eu bebo isso”.

Eu me lembro que antes dos desfiles do 7 de setembro os colégios costumavam ensaiar, ou seja, num dia qualquer de agosto o Alfredo Dantas inteiro ia para o meio da rua, interrompia o trânsito, se organizava nuns 10 ou 12 pelotões, descia marchando, com banda e tudo, pela Praça da Bandeira, Irineu Joffily, dava a volta ao Açude Velho, subia pela Vila Nova da Rainha, pegava a Vidal de Negreiros e voltava; todo mundo gostava porque nesse dia só tinha a primeira aula, e depois do ensaio todo mundo era liberado para ir pra casa.

Eu me lembro de uma vez em que meu pai me levou para ver um filme de aventuras no Cine Babilônia, entramos, assistimos os trailers, e na hora do filme começar as luzes se acenderam e veio um funcionário falar com meu pai, dizendo que como eu tinha menos de 10 anos não podia assistir o filme, que era proibido para menores dessa idade. Houve uma certa argumentação, mas acabamos saindo, subimos para o Capitólio e assistimos o filme de lá, que já tinha começado quando entramos. Não lembro mais quais eram os filmes.

Eu me lembro de uma vez em que, voltando do Colégio Estadual à noite, no ônibus da Prata, a gente fez tanta bagunça dentro do ônibus que em vez de rodear a Praça da Bandeira e parar no ponto final, junto ao Correio, o motorista, furioso, subiu a Floriano Peixoto inteira e largou a gente diante da Delegacia, que naquele tempo ficava em frente à Catedral.

Eu me lembro que uma vez, quando eu trabalhava no Diário da Borborema, foi uma senhora lá na redação. Ela precisava (para anexar a um processo trabalhista ou algo assim) de um exemplar do jornal, de 4 ou 5 anos atrás. Aí ela foi encomendar ao editor que se reimprimisse um exemplar inteiro do jornal, para ela. O editor mandou buscar um jornal no arquivo (jornais mais recentes tinham cópias erxcedentes guardadas, justamente para isso) e deu a ela. Aí virou para a gente e disse: “Vejam como é a idéia que o público tem do que é a impressão de um jornal”.

Eu me lembro que numa noite no final de 1968 eu fui à casa de Jakson e Marcos Agra para me encontrar com meus amigos Marcelo, Sérgio e Bolívar, da banda Os Sebomatos, que queriam conversar comigo. Eles me chamaram para tocar na banda, que entre outras coisas fazia cover dos Beatles. Eu falei que ia pensar, porque na época era presidente do Cineclube de Campina Grande e não sabia se dava para acumular as duas coisas. Voltei para casa, já tarde da noite, liguei o rádio e soube que acabava de ser promulgado o Ato Institucional no. 5. Eu pensei: “O Cineclube vai ser fechado. Eu vou é tocar na banda”. Dito e feito.









sábado, 17 de junho de 2017

4244) Os Romances Picarescos da História (17.6.2017)



Tem uma espécie de Herói que vem reaparecendo aqui e ali na literatura e no cinema. Eu os chamaria “os pícaros da História” embora essa definição não cubra tudo que eles representam. 

Chamo-os de pícaros porque são personagens menores, de baixa extração social, sem nenhum heroísmo, sem nenhuma grandiosidade. São apenas personagens espertos ou esforçados que vivem numa época (ou numa condição social) perigosa, mas que sobrevivem. Sujeitos comuns que estão “se virando” para escapar, numa época de grandes convulsões sociais.

Uma característica das histórias a respeito deles é o fato de que a narrativa conta a vida deles, e as “grandes convulsões sociais” ficam meio que em segundo plano. O mundo está a ponto de se acabar, mas tudo que a narrativa se preocupa é saber o que vai ser do Fulaninho que é o pícaro protagonista.

Vejam o caso de Forrest Gump, por exemplo. Ele passa incólume e meio abestado por dentro de conflagrações sociais como a Marcha Pelos Direitos Civis, a Guerra do Vietnam, etc.  Mal percebe o que está acontecendo. Nós nos comovemos com ele e com o seu abestalhamento – que é próximo o bastante do nosso para que possamos nos identificar, e distante o suficiente para que possamos ficar na confortável posição de “ter peninha do rapaz retardado”.

E os autores (o filme se baseia num romance, que não cheguei a ler) insistem o tempo inteiro em colocar Forrest na fímbria dos grandes acontecimentos, usando para isso de trucagens eletrônicas, etc., manipulando imagens para inseri-lo na História com H maiúsculo. O herói pícaro contracena digitalmente com Martin Luther King, Richard Nixon, John Lennon, etc.

Forrest Gump me lembrou muito, quando o vi, do filme Zelig de Woody Allen. Mais uma vez temos um protagonista que é o zé-ninguém, um zero-da-silva, sem a menor importância, mas que sempre dá um jeito de estar no lugar certo na hora certa, ou seja, de aparecer de algum modo na vitrine da História. 

E mais uma vez temos as trucagens visuais inserindo o personagens em cenas que são familiares a todo mundo. (Vale lembrar que Zelig é de 1983, e Forrest Gump veio depois, em 1994, baseado num livro de 1986).

Penso nesses dois heróis enquanto leio Baudolino (2000) de Umberto Eco, um romance ambientado no século 12. Baudolino é um herói picaresco típico, por sua origem (filho de camponeses ignorantes) mas que graças a algumas coincidências bem cordelescas acaba encontrando e caindo nas graças do Imperador Frederico Barbarossa, e se torna seu protegido.

Daí em diante Baudolino, feito um Zelig ou um Forrest Gump, começa a participar de todos os eventos históricos importantes do seu tempo (final do século 12).

Quando Umberto Eco publicou seu primeiro romance, O Nome da Rosa, alguém perguntou numa entrevista por que ele escolhera ambientar seu primeiro livro na Idade Média. Ele disse: “Porque conheço a Idade Média com mais detalhes e mais profundidade do que conheço a época contemporânea”.

Para Eco, a vantagem de livros assim é aquela em que a gente diz que “a pesquisa já foi feita”, ou seja: passei a vida inteira lendo a respeito disso, não preciso sentar para aprender somente porque vou usar num livro.

A espantosa quantidade de informações no romance Baudolino deve ter sido assimilada por Eco ao longo de muitas décadas de leitura, daí a facilidade com que ele sai costurando os episódios históricos da época com a linha ficcional das peregrinações de Baudolino.

Um dos episódios mais engraçados é o modo como a cidade de Alessandria (onde Eco nasceu) é fundada e acaba resistindo às tentativas do Imperador Frederico para destruí-la. Claro que no livro a cidade se salva graças a uma artimanha, uma lenda local, que no livro ele atribui a Baudolino.

A famosa carta do Prestes João, o mítico rei cristão de um reino perdido no Oriente, é também atribuída a Baudolino e seus amigos de farra, uma porção de “goliardos” (estudantes poetas cachaceiros) de Paris. (Um dos quais, aliás, na vida real, é um dos autores dos versos da “Carmina Burana”).

Há um episódio em que Baudolino se apaixona pela imperatriz e escreve para ela, sem assinar, uma porção de cartas românticas e eróticas; escreve também as respostas que ela “poderia” ter lhe dado. Ainda não localizei esse dado, mas imagino que seja algum conjunto de cartas medievais de autor não-sabido, e que Eco, obedecendo à lei estrutural do Romance Picaresco da História, atribui ao seu aventureiro.

Mesmo que alguém não esteja disposto a encarar o romance (estou lendo na edição da BestBolso, que tem 600 páginas), vale a pena ler o capítulo 1, “Baudolino começa a escrever”. O texto reproduz as primeiras tentativas do herói de contar sua própria história, numa algaravia que mistura latim e outras línguas, cheia de erros cômicos de ortografia, palavrões, etc.  Algo certamente difícil e divertido de traduzir (a tradução é de Marco Lucchesi).

Nesse capítulo alfabetizatório, Baudolino afirma estar usando um palimpsesto, ou seja, uma superfície onde já havia algo escrito e que o usuário raspa, deixando novamente em branco, para escrever em cima. A raspagem de Baudolino é deficiente, de modo que algumas frases em latim do texto antigo sobrevivem no meio das coisas que ele está escrevendo.

É o mesmo efeito que os diretores de Forrest Gump e Zelig obtêm misturando suas imagens ficcionais a imagens de telejornais da época – uma maneira direta de misturar o Romance Picaresco com os fatos da História.

E que Ariano Suassuna usou fartamente no seu ciclo de romances da Pedra do Reino, inserindo o impagável Dom Pedro Dinis Quaderna e sua família em episódios políticos e literários da história do Brasil e da Paraíba.











segunda-feira, 12 de junho de 2017

4243) Ariano Suassuna e a estética do Não Foi Bem Assim (12.6.2017)



(foto: Gustavo Moura)

Um homem apunhala outro na barriga e o deixa morto numa poça de sangue. Não, não foi bem assim: era uma bexiga cheia de sangue falso, um ardil premoldado pela dupla. Um gato descome dinheiro, sim, todo mundo viu por onde saiu, eu vi também, mas não foi bem assim. Foi armado de outro jeito, e você não viu.

Essas coisas são inventadas por heróis picarescos, gente que para fugir da fome tem que remar o dia todo, a vida inteira. Tudo na vida delas, tudo que a move é se afastar da fome indo em todas as direções possíveis ao mesmo tempo. Muitos acabam ricos, milionários, mas essa vertigem centrífuga para longe da fome é o que define suas vidas. Se achar que além de matar a fome existe a possibilidade de guardar um dinheirinho extra (e se for dinheiro desonesto eles acham mais gostoso ainda), esse pessoal é capaz de acreditar até mesmo em testamento de cachorro e descomimento de gato.

Muitas histórias de Ariano Suassuna giram em torno da cobiça pelo dinheiro, tema que pode se referir, com certa largueza de conceito, a qualquer época humana. Seu personagem mais famoso, João Grilo, é “doidim” por dinheiro, só não tem é o dom de atraí-lo, como algumas cavalgaduras batizadas de hoje em dia parecem ter.

Essas histórias têm um pé na literatura oral, então mesmo escritas existe nela uma Fala, um enunciado de fatos e opiniões e comentários. Tal como um dinheiro que se desvaloriza ao ser fabricado em grandes quantidades, a palavra vai se relativizando à medida que se multiplica. Os fatos? Ora, sente aí e preste atenção. Existem 147 versões diferentes para esses fatos. Você tem a sua? Pois fique sabendo que Não Foi Bem Assim.

Essas obras picarescas na literatura e no teatro estão o tempo todo mostrando e escondendo verdades, construindo e desconstruindo fatos, jurando verdades sagradas e logo depois confessando mentiras catastróficas. Há uma puxada de tapete contínuo embaixo dos pés do leitor, e aparentemente o leitor gosta, o espectador gosta.

Formas popularescas e simpáticas da literatura oral e semi-oral, como o cordel, o romance picaresco, o melodrama de palco, o folhetim de rodapé, são clientes assíduos, fregueses de carteirinha na Loja do Não Foi Bem Assim.

Existe uma tradição inteira de enredos baseados em pequenas façanhas de fingimento, de puxada-de-tapete, de mentira planejada, do choque de versões conflitantes para os mesmos fatos. Isso é a substância de Cancão de Fogo e Pedro Malasartes. E também está na raiz dos argumentos muitas vezes ingênuos dos folhetins de todas as épocas, das chanchadas cinematográficas, do teatro de vaudeville. O teatro de circo e os entremezes populares compartilhavam essa estética do “Eita, Era Tudo Mentira”.

Era um tema caro aos artistas barrocos, que Ariano tanto admirava. Ele dizia que o Barroco é bom porque contém todos os pares de opostos possíveis, ambos em alto grau. Daí que a poesia barroca seja uma espécie de mundo de Calderón de La Barca recitando à frente, e dezenas de Lazarillos de Tormes passando ao fundo. Os dois extremos, e sem conhecer um deles é praticamente impossível entender o outro.

O Barroco era toda uma estética da imperfeição, do desmedido, até do Feio – o que a ser verdade não o deixaria muito distante de pelo menos dois que ele admirava, Augusto dos Anjos e Hermilo Borba Filho, cada qual no seu modo.

No caso particular dos enganamentos da farsa teatral, muitos desses recursos usados em palco talvez fossem vistos, por platéias mais finas, como recursos vulgares e plebeus. Como jogar um balde água nos espectadores ou exibir trucagens escatológicas ou de mau gosto. Era barroca também a tendência à proliferação. Bastava um comediante inventar um truque cômico de sucesso para em questão de meses cada um dos seus concorrentes já ter uma versão própria do sucesso do outro. Tem talvez algo de Barroco nesse “Pode tudo!” que às vezes parece reinar na cultura oral.

O Não Foi Bem Assim pode ser a história de um engano pessoal, como o do cigano que leva uma mulher à beira do rio pensando que fosse donzela, porém já tinha marido. Pode ser o crime misterioso depois de encarado de outra forma por Miss Marple ou pelo Padre Brown. Pode ser também a estética do desmentido, do Rashomon, das versões conflitantes e incomprováveis de um mesmo fato. Cada um contando a mesma história de uma maneira diferente. A cada relato, alguém ergue o dedo no ar e diz a fórmula mágica: “Êpa, peraí, não foi bem assim”.

Dá para pensar também que a ilusão do Dom Quixote, outro de DNA barroco-popular, é toda baseada numa formula de “Não É Bem Assim, Meu Amo”, não é bem um gigante, meu amo, é um moinho. Mas a todo instante é preciso estar desmentindo. Disseram algo a Dom Quixote através dos livros, e ele acreditou, porque estava nos livros, naquele tempo não era um zé-vintém qualquer que pudesse ter um quarto cheio de livros. Só que agora é preciso desmentir os livros em cada curva da estrada.

O que é o colossal diálogo de Quaderna com o juiz Corregedor, no Romance da Pedra do Reino, senão um imenso “Não Foi Bem Assim, Meritíssimo Senhor Juiz Corregedor!”?   Quaderna começa a recontar uma história e daí a pouco a gente percebe que ele está mentindo para o juiz, depois percebe que capítulos antes ele tinha mentido para a gente, e daí a pouco ele só pode estar mentindo para si mesmo, porque ele acredita em coisas que não podem ser verdade. O mundo não é bem assim.











quinta-feira, 8 de junho de 2017

4242) Um soneto improvisado (8.6.2017)




("Sonnet en X", Mallarmé)


Eu estava numa mesa com alguns amigos que curtem repente. Alguém recitou uma décima de martelo improvisada por um cantador, todo mundo elogiou, e então alguém disse:

– Improvisar nessa estrofe tradicional todo mundo já se acostumou. Eu queria ver era Fulano de Tal (o repentista em questão) improvisar em forma de soneto.

Eu retruquei que, para quem sabe improvisar, o formato da estrofe é o de menos, tem apenas que não se atrapalhar, mas o método de improviso é o mesmo. Houve discordância, e eu me propus a improvisar um soneto em voz alta, ali mesmo. Casou-se dinheiro em aposta (entre eles – eu não tenho esses vícios).

Enchi o copo, fiz um drama de franzir a testa e comecei.

Vou fazer um soneto de improviso
nesta mesa, diante de vocês.
Vejam só, já estou na linha três
e a quatro é somente o que preciso.

Tomei um gole e corri o rabo do olho pela mesa. Eles estavam na expectativa, mas era ainda uma expectativa de quem diz, “vá, pode começar”. Senti que estava devendo.

Engatei marcha e fui em frente:

O meu verso é tirado do juízo
não foi outra pessoa quem o fez,
porém quando a questão é rapidez
o que for necessário eu realizo.

Essa aí produziu mais efeito, porque um deles deu uma risada, e falou:

– Eita, o caba é corajoso. Medo de dizer besteira é uma coisa que ele não tem.

Ignorei-o majestosamente, e prossegui:

Só quem sabe entender o que é poesia
dá valor ao repente que se cria
na medida correta, e bem rimado.

Hora de mais um gole para lubrificar o desfecho. E assim foi:

O formato é que pode ser soneto,
sem ter tinta ou papel, branco nem preto,
mas que seja martelo agalopado.

Tudo isto me exigiu, o quê? Dois, três minutos. Uma eternidade de lazer, se você comparar com o tempo dos versos improvisados por profissionais, ao som da viola.

O cara que apostou em mim acabou ganhando por consenso da mesa, porque bem ou mal esse trambolho em itálico aí em cima é juridicamente um soneto: tem 14 versos, 2 quartetos, 2 tercetos, o esquema de rimas é um dos vários universalmente aceitos. Tampa da caçuleta.

Transcrevo a façanha, não para me gabar (se fosse o caso teria inventado alguma coisa melhorzinha e também plausível), mas para discutir um tema que nem sempre se questiona a respeito do improviso.

Lembro a lição do mestre Zé de Cazuza, que numa conversa me disse certa vez:

– Todo verso, mesmo verso escrito, é meio improvisado, né? O verso brota na mente. A diferença é que no verso escrito o camarada pode ficar horas e horas ajeitando aquilo que improvisou, e na viola não, do jeito que ele improvisa na cabeça ele tem que cantar, não dá tempo de ficar ajeitando.

A “contrainte” embutida nessas formas fixas (martelo, soneto, etc.) obriga o poeta a se concentrar na obediência obrigatória à rima e à métrica. A grande maioria dos versos improvisados “não tem poesia”, é apenas uma espécie de prosa cuja preocupação é manter-se fiel a uma cadência, e terminar cada frase com um som obrigatório.

Todo improvisador tem truques para cumprir essas obrigações. O truque a que recorri na primeira quadra é um dos mais antigos de quem escreve soneto: fazer o comentário metalínguístico sobre cada linha que vai compondo. Já li dezenas de sonetos que não dizem outra coisa senão comentar: “Tou fazendo a linha 1... a linha 2... a linha 3... a linha 4...”.

Outra coisa: repertório de rimas. Eu sei que para compor os 2 quartetos preciso de 4 palavras com uma rima e 4 palavras com outra. Escolhi duas que acho facílimas: ISO e ÊS. É nessa primeira escolha que muitos candidatos dançam, porque, preocupados com o conteúdo, eles fazem duas frases iniciais bem elegantes e depois percebem que vão ter alguns segundos apenas para catar na memória alguma palavra que rime com aquilo.

Não, amigo. Pense na rima primeiro, e na palavra só depois. “Run for cover”, como dizia Alfred Hitchcock: corra para o terreno onde você tem cobertura. Deixe as rimas difíceis para o momento do caderno, da caneta e da poltrona. Para improvisar de verdade, pegue rimas que têm vasto vocabulário. Improviso, por exemplo, eu só tendo a rimar com juízo, com algo que vai ser preciso... Clichê, mas quando a gente corre contra o relógio não pode ficar escolhendo.

Outra coisa: prepare um final. Eu decidi, durante o gole de cerveja, que terminaria dizendo algo sobre martelo agalopado, então já estava tranquilo: se esta seria a rima da linha 14, não me daria trabalho achar algo que rimasse para fechar a linha 11 (no caso, foi “rimado”).

Se eu estivesse escrevendo, não rimaria improviso, com meus clichês habituais. Procuraria algo mais afastado – faria uma comparação qualquer com Narciso, ou diria que como cascavel-do-repente eu balanço o meu guizo, ou que meu verso vem do Paraíso, ou que sou um poeta liso...

Rimas, existem muitas. Quanto mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de pescar uma rima que suba o nível poético da frase. São as palavras que rimam quem vão nos trazer – pela mão dessa concidência arbitrária e obrigatória – o assunto das próximas linhas, as imagens, as associações de idéias.

Gosto deste comentário do poeta Tom Lehrer (no livro Le Ton Beau de Marot, de Douglas Hofstadter):

Parece aos outros uma grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões inesperadas do espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias possíveis) por causa da rima, que é uma restrição auto-imposta. (O poeta) acaba pensando em imagens que jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de rimar as linhas umas com as outras. 

Quanto mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de achar uma rima que, além de arrastar a frase para uma direção nova, inesperada, dê a impressão de que se encaixa tão bem no assunto que está ali pelo seu conteúdo (e não pela rima).

Um último comentário, sobre a dúvida que deu origem a tudo isto. Improvisar um martelo e improvisar um soneto não são coisas muito diferentes. É um poema de 10 linhas contra um poema de 14, apenas. Um esquema de rimas ABBAACCDDC e um esquema ABBA-ABBA-CCD-EED (o soneto admite vários; o que usei foi este).

A dificuldade é grande, talvez, para aqueles violeiros que são acostumados ao martelo e mas não têm muita familiaridade com o soneto. A velocidade da mente já se formatou com um esquema, e, quando forçada a trabalhar em outro, dá um branco.

Já vi cantadores desafiando uns aos outros a improvisar uma estrofe de martelo totalmente sem rima, livre – e alguns não conseguiam, se atrapalhavam e acabavam rimando.

Adquirir técnica é adquirir uma forma diferente de liberdade; ficar preso a ela é sempre perder a liberdade.

Trocar de formatos e de fórmulas de vez em quando ajuda a manter vibrando o diapasão da criatividade.









segunda-feira, 5 de junho de 2017

4241) Bob Dylan: a aula do Nobel (5.6.2017)



Conferência Nobel sobre Literatura 2016
Bob Dylan
Gravada em 4 de junho de 2017 - Los Angeles, CA
Tradução: Braulio Tavares


Assim que recebi este Prêmio Nobel de Literatura, comecei a imaginar de que maneira precisa minhas canções se relacionam com a literatura.

Eu queria refletir sobre isto e ver onde era a conexão. E vou tentar articular essas reflexões para vocês.

Provavelmente vou fazer isso usando muitos rodeios, mas espero que o que eu vou dizer valha a pena, e explique minhas intenções.

Se eu me reportar ao início de tudo, acho que tenho de começar com Buddy Holly.

Buddy morreu quando eu tinha por volta de 18 anos, e ele tinha 22. No momento em que o ouvi cantar pela primeira vez, senti que tínhamos afinidade.

Senti que havia uma relação, como se ele fosse um irmão mais velho. Cheguei até a achar que eu me parecia com ele.

Buddy tocava a música que eu amava – a música que eu cresci escutando: country western, rock’n’roll e rhythm and blues.

Três correntes musicais diferentes que ele misturava e destilava num único gênero. Uma marca.

E Buddy escrevia canções – canções que tinham belas melodias e versos cheios de imaginação. E ele cantava muito bem – cantava em muitas e diferentes vozes.

Ele era o arquétipo. Tudo que eu não era e que queria ser. Eu o vi somente uma vez, e isto foi poucos dias antes da sua morte.

Tive que viajar 100 milhas para vê-lo tocar, e não me decepcionei.

Ela tinha força, era eletrizante, tinha uma presença dominadora. Eu estava a apenas dois metros de distância. Ele era hipnótico.

Eu olhava o rosto dele, as mãos, o modo como ele marcava o ritmo com o pé, seus grandes óculos de armação preta,

Os olhos por trás dos óculos, o modo como segurava a guitarra, a postura de pé, o terno caprichado.

Olhei tudo nele. Ele parecia ter mais do que 22 anos.

Algo nele parecia ser permanente, e ele me transmitia uma enorme convicção.

Então, de repente, a coisa mais estranha aconteceu. Ele me olhou direto, no fundo dos olhos, e me transmitiu alguma coisa.

Algo que eu não sabia o que era. E aquilo me arrepiou por inteiro.

Acho que foi apenas um ou dois dias depois disto que o avião dele caiu.

E alguém, alguém que eu nunca vira antes, me deu um álbum de Leadbelly, o disco que tinha a canção “Cottonfields”.

Aquele disco mudou minha vida, naquele local e naquele momento. Me transportou para um mundo que eu jamais teria conhecido.

Era como se tivesse havido uma explosão. Como se eu estivesse andando na escuridão e de repente tudo ao meu redor se iluminasse.

Era como se alguém tivesse imposto as mãos sobre mim. Eu devo ter tocado aquele disco umas cem vezes.

O disco era de um selo de que eu nunca tinha ouvido falar, e dentro havia um folheto com anúncios de outros artistas daquele selo:

Sonny Terry e Brownie McGhee, os New Lost City Ramblers, Jean Ritchie, grupos de cordas.

Eu nunca tinha ouvido falar em nenhum deles. Mas deduzi que se pertenciam ao mesmo selo de Leadbelly eles tinham que ser bons, então eu precisava ouvi-los.

Eu queria saber tudo a respeito deles e tocar aquele tipo de música. Eu ainda amava a música que crescera ouvindo, mas, naquele momento, eu a esqueci.

Nem pensava mais nela. Naquele momento, ela tinha ficado lá para trás.

Eu ainda não tinha ido embora de casa, mas estava impaciente. Queria aprender aquela música, e conhecer as pessoas que a tocavam.

Finalmente saí de casa, e comecei a aprender a tocar aquelas músicas. Eram diferentes das canções de rádio que eu vinha escutando até então.

Eram mais vibrantes, mais cheias de vida. Nas canções do rádio, um artista podia emplacar um sucesso como quem joga dados ou cartas, mas no mundo folk isso não tinha importância.

Tudo ali fazia sucesso. Tudo que era preciso ali era ser bom de verso e saber tocar a melodia. Algumas daquelas canções eram fáceis, outras não.

Eu tinha um jeito natural para as antigas baladas e os country blues, mas todo o resto eu tive que aprender do zero.

Eu tocava para públicos pequenos, às vezes não mais do que quatro ou cinco pessoas numa sala ou numa esquina.

Era preciso ter um repertório amplo, e era preciso saber o quê tocar, e em que momento.

Algumas canções eram intimistas, outras você tinha que gritar para poder ser ouvido.

Ouvindo os antigos artistas folk e cantando suas canções, você aprendia o vernáculo deles. E o internalizava.

E você canta os ragtime blues, as canções de trabalho, os cânticos marítimos da Georgia, as baladas dos montes Apalaches e as canções de vaqueiro.

Você escuta os aspectos mais sutis, e aprende cada detalhe.

Você aprende como são as coisas. Puxar a pistola e guardá-la de novo no bolso.

Abrir caminho no meio do trânsito, falar no escuro. Você aprende que Stagger Lee era um sujeito mau e que Frankie era uma boa menina.

Você aprende que Washington era uma cidade burguesa, e você escuta a voz grave e profunda do profeta João em Patmos e você vê o Titanic afundar num riacho lamacento.

Você fica amigo do rebelde andarilho irlandês e do rebelde rapaz da colônia. Você escuta os tambores surdos e os pífanos que tocam devagar.

Você vê o lúbrico Lord Donald enfiar a faca na esposa, e vê que os corpos de tantos camaradas seus estão envoltos em linho branco.

Eu já estava de posse do vernáculo. Eu sabia a retórica.

Nada daquilo se perdeu: os recursos, as técnicas, os segredos, os mistérios, e eu conhecia também todas as estradas desertas por onde aquela música viajou.

Eu podia fazer aquilo tudo se conectar e se mover com a correnteza dos meus dias.

Quando comecei a escrever minhas próprias canções, o linguajar folk era o único vocabulário que eu conhecia, e foi o que usei.

Mas eu tinha outra coisa. Eu tinha mestres, e sensibilidade, e uma visão do mundo bem informada. Já tinha isso há algum tempo. Aprendi isso na escola fundamental.

Dom Quixote, Ivanhoé, Robinson Crusoe, Uma História de Duas Cidades e todo o resto – as leituras típicas do ensino fundamental, que nos forneciam um modo de encarar a vida,

um entendimento da natureza humana, e um padrão com que comparar as outras coisas.

Eu trazia isso tudo comigo quando comecei a escrever minhas letras. E os temas daqueles livros acabaram desaguando em muitas das minhas canções, conscientemente ou sem intenção.

Eu queria escrever canções diferentes de tudo que já houvesse sido escutado, e esses temas eram fundamentais.

Há livros específicos que permaneceram comigo desde que eu os li na escola, quando garoto, e gostaria falar a respeito de três deles.

Eles são Moby Dick, Nada de Novo na Frente Ocidental e A Odisséia.

Moby Dick é um livro fascinante, um livro cheio de cenas de alta dramaticidade e de diálogo dramático. É um livro que impõe exigências ao leitor.

O enredo é linear.

O misterioso Capitão Ahab, o capitão de um navio chamado Pequod, é um egomaníaco com uma perna de pau, perseguindo sua nêmese, a grande baleia branca Moby Dick, que arrancou sua perna.

E ele a persegue por todo o Atlântico, rodeando a extremidade da África e indo até o Oceano Índico.

Ele persegue a baleia em ambas as faces da Terra. É um objetivo abstrato, nada que seja concreto ou definido.

Ele chama Moby Dick “o Imperador”, e a vê como a encarnação do mal. Ahab tem esposa e filho lá em Nantucket, e fala de vez em quando sobre eles.

A gente pode antever o que vai acabar acontecendo.

A tripulação do navio é formada por homens de diferentes raças, e aquele que primeiro avistar a baleia receberá uma moeda de ouro.

Há uma porção de símbolos do Zodíaco, alegorias religiosas, estereótipos. Ahab encontra outros navios baleeiros, e pressiona os capitães pedindo informação sobre Moby.

“Vocês a viram?”  Há um profeta maluco, Gabriel, em um dos navios, e ele prediz a desgraça final de Ahab.

Ele diz que Moby é a encarnação do deus dos Shakers, e que mexer com ela conduz ao desastre. Diz isso ao capitão Ahab.

Outro capitão de navio, o capitão Boomer, perdeu um braço lutando com Moby Dick. Mas ele suporta isto, e está feliz por ter sobrevivido.

Ele não consegue aceitar a sede de vingança de Ahab.

Esse livro mostra como homens diferentes reagem de maneiras diferentes à mesma experiência.

Há muita coisa do Velho Testamento, de alegorias bíblicas: Gabriel, Raquel, Jeroboão, Bilda, Elias,

Nomes pagãos também: Tashtego, Flask, Daggoo, Fleece, Starbuck, Stubb, Martha’s Vineyard. Os pagãos são adoradores de ídolos.

Alguns adoram pequenas imagens de cera, outros adoram imagens de madeira. Alguns adoram o fogo. Pequod é o nome de uma tribo indígena.

Moby Dick é uma história de aventura marítima. Um dos homens, o narrador, diz: “Chamai-me Ismael”.

Alguém lhe pergunta de onde ele é, e ele diz: “Não está em nenhum mapa. Os lugares de verdade nunca estão”.

Stubb não atribui significado a nada, diz que tudo está predestinado. Ismael tem vivido em navios a vida inteira.

Ele chama os navios de sua Harvard e Yale. Ele se mantém distanciado das pessoas.

Um tufão atinge o Pequod. O capitão Ahab acha que aquilo é um bom agouro. Starbuck pensa que é um mau agouro e pensa em matar Ahab.

Assim que a tempestade passa, um tripulante cai do mastro e se afoga, dando um prenúncio do que está para acontecer.

Um pastor Quaker, um pacifista que é na verdade um voraz homem de negócios, diz a Flask,

“Alguns homens que recebem ferimentos são conduzidos para Deus, outros são conduzidos para a amargura.”

Tudo se mistura ali. Todos os mitos: a Bíblia judaico-cristã, os mitos hindus, as lendas britânicas, São Jorge, Perseu, Hércules – todos são caçadores de baleias.

Mitologia grega, a atividade arrepiante de retalhar uma baleia.

Muitos fatos deste livro, conhecimentos geográficos, sobre óleo de baleia (bom para a coroação dos reis), as famílias nobres da indústria da baleia.

O óleo da baleia é usado para ungir os reis.

A história da baleia, a frenologia, a filosofia clássica, as teorias pseudo-científicas, as justificativas para a discriminação—

Tudo é jogado ali dentro, e nada é sequer um pouco racional.

Gente culta, gente inculta, a busca de ilusões, a busca da morte, a grande baleia branca. Branca como um urso polar, branca como o homem branco, o imperador, a nêmese, a encarnação do mal.

O capitão insano que perdeu a perna anos atrás tentando atacar Moby com uma faca.

Vemos apenas a superfície das coisas. Podemos interpretar o que jaz por baixo dela da maneira que quisermos.

Tripulantes andam pelo convés escutando sereias, e tubarões e abutres seguem o navio. Lendo caveiras e rostos como quem lê um livro.

Aqui está um rosto. Vou pô-lo à sua frente. Leia se puder.

Tashtego diz que morreu e nasceu de novo. Seus dias extra são um dom.

Mas ele não foi salvo por Cristo, ele diz que foi salvo por outro homem, e um não-cristão ainda por cima. Ele parodia a ressurreição.

Quando Starbuck diz a Ahab que ele devia deixar para trás o que aconteceu, o capitão, zangado, retruca: “Não venha me falar de blasfêmia, homem, eu atacaria o sol se ele me insultasse”.

Ahab, também, é um poeta eloquente. Ele diz: “O caminho da minha idéia fixa está provido de trilhos do tamanho da bitola da minha alma”.

Ou esta frase: “Todos os objetos visíveis são máscaras de papel machê”. Frases poéticas boas de citar, insuperáveis.

Finalmente Ahab avista Moby, e os arpões são preparados. Os barcos descem para a água. O arpão de Ahab foi batizado com sangue. Moby ataca o barco de Ahab e o destrói.

No dia seguinte, ele avista Moby de novo. Os barcos descem novamente. Moby ataca o barco de Ahab novamente.

No terceiro dia, mais um barco. Mais alegoria religiosa. Ele se ergueu dos mortos. Moby ataca mais uma vez, chocando-se contra o Pequod e afundando-o.

Ahab se enrola nas cordas do arpão e é jogado para fora do barco, para o sepulcro nas águas.

Ismael sobrevive. Ele fica no mar, flutuando com um ataúde. E isto é tudo. É toda a história.

Este tema, e tudo que ele sugere, acabaria surgindo em várias das minhas canções.

Nada de Novo na Frente Ocidental foi outro livro que me marcou. Nada de Novo na Frente Ocidental é uma história de horror.

Este é um livro onde você perde sua infância, sua fé num mundo que faça sentido, sua preocupação com os indivíduos.

Você está preso num pesadelo. Arrebatado por um redemoinho misterioso de morte e de dor. Você está se defendendo da aniquilação.

Você está sendo varrido do mapa. Houve um tempo em que você era um jovem inocente que sonhava em ser pianista de concerto.

Houve um tempo em que você amava a vida e amava o mundo, e agora você os está reduzindo a pedaços com uma arma.

Dia após dia, os marimbondos o ferroam, e os vermes bebem seu sangue. Você é um animal encurralado. Não se encaixa em lugar nenhum.

A chuva cai, monótona.

Há intermináveis tiroteios, gás venenoso, gás dos nervos, morfina, faixas ardentes de gasolina, a caça febril por comida, a gripe, o tifo, a disenteria.

A vida desmorona ao seu redor, e as balas passam zunindo. Esta é a mais baixa região do inferno.

Lama, arame farpado, trincheiras cheias de ratos, ratos comendo os intestinos de homens mortos, trincheiras cheias de sujeira e excremento.

Alguém grita: “Ei, você aí, fique de pé e lute!”

Quem sabe quanto tempo essa loucura vai demorar? A guerra não conhece limites. Você está sendo aniquilado, e essa sua perna está sangrando demais.

Você matou um homem ontem, e conversou com o corpo dele. Você lhe disse que quando isto tudo terminar, você vai passar o resto da sua vida cuidando da família dele.

Quem ganha alguma coisa com isto? Os líderes e os generais ganham fama, e muitos outros têm lucros financeiros.

Mas é você quem faz o trabalho sujo. Um dos seus camaradas diz: “Espere aí, onde você está indo?” e você responde: “Me deixe em paz, eu volto num minuto”.

E você sai andando por entre o bosque da morte, à procura de um pedaço de salsicha. Você não entende como é que qualquer pessoa na vida civil possa ter algum propósito na vida.

Todas as preocupações deles, os seus desejos – você não consegue compreendê-los.

Mais metralhadoras disparam, mais pedaços de corpos pendem dos arames farpados, mas pedaços de braços e pernas e cabeças onde as borboletas pousam sobre os dentes,

Mais feridas horrendas, o pus brotando dos poros, ferimentos no pulmão, ferimentos grandes demais para um corpo, cadáveres soltando gases, corpos de defuntos produzindo ruídos repugnantes.

A morte está por toda parte. Nada mais é possível. Alguém vai matá-lo e usar seu corpo para praticar tiro ao alvo.

As botas também. São sua coisa mais preciosa. Mas daqui a pouco estarão nos pés de alguém.

Os franceses estão surgindo por entre as árvores. Bastardos impiedosos. Sua munição está acabando. “Não é justo nos atacar de novo tão rápido”, diz você.

Um dos seus colegas está caído na lama, e você quer levá-lo para o hospital de campanha. Alguém diz: “Pode economizar essa viagem.”

“O que quer dizer?”  “ Vire o corpo dele, vai ver o que é”.

Você espera para ouvir as notícias. Não entende por que essa guerra não acabou ainda.

O exército está tão entregue a seus próprios recursos para repor tropas que está recorrendo a meninos, que têm pouca utilidade militar, mas têm que ser convocados de qualquer modo, porque os homens estão acabando.

A doença e a humilhação deixam você de coração partido. Você foi traído pelos seus pais, seus professores, seus ministros, seu próprio governo.

O general que fuma devagar seu charuto traiu você também – transformou você num bandido e num assassino. Se você pudesse, meteria uma bala na cara dele.

O comandante também.

Você fantasia que se tivesse dinheiro, ofereceria uma recompensa para qualquer homem que tirasse a vida dele por qualquer meio.

E se perdesse a vida fazendo isso, o dinheiro iria para seus herdeiros. O coronel, também  - com seu caviar e seu café. É outro.

Passa todo o seu tempo no bordel dos oficiais. Você gostaria de vê-lo morto também. Mais soldados rasos cantando “whack for me daddy-o” e “whiskey in the jars”.  [https://en.wikipedia.org/wiki/Whiskey_in_the_Jar ]


Você mata trinta, e outros trinta se erguem no mesmo lugar. O mau cheiro enche suas narinas.

Você sente desprezo pela velha geração que mandou você para essa loucura, para essa câmara de tortura. À sua volta, seus camaradas estão todos morrendo.

Morrendo de ferimentos abdominais, amputações duplas, fêmures destroçados, e você pensa: “Eu só tenho vinte anos, mas sou capaz de matar qualquer um”.

“Até meu pai, se aparecer aqui”.

Ontem, você quis salvar um cão-mensageiro ferido, e alguém gritou: ”Não seja idiota”.

Um francês está gorgolejando aos seus pés. Você enterrou a baioneta no estômago dele, mas ele ainda continua vivo.

Você sabe que devia acabar o serviço, mas não consegue. É você quem está numa cruz de verdade, e um soldado romano pondo uma esponja com vinagre em sua boca.

Os meses passam. Você recebe uma licença para visitar a família.

Você não se comunica mais com seu pai. Ele diz: “Você seria um covarde se não se alistasse”.

Sua mãe também; quando o acompanha até a porta ela diz: “É melhor ter cuidado com aquelas garotas da França”.

Mais loucura. Você luta durante uma semana ou um mês, e avança dez metros. E na semana seguinte é forçado a recuar.

Toda aquela cultura de mil anos atrás, aquela filosofia, aquela sabedoria – Platão, Aristóteles, Sócrates – o que aconteceu com ela? Ela devia ter evitado isto.

Seus pensamentos se voltam para sua casa. E mais uma vez você é um estudante caminhando entre as árvores. É uma lembrança agradável.

Mais bombas caem à sua volta. Você precisa se controlar agora. Não pode sequer olhar para alguém com medo de algo imprevisível que possa acontecer.

A vala comum. Não há outra possibilidade.

Então você vê as flores brotando, e percebe que a natureza não é afetada por aquilo tudo.

As árvores, as borboletas vermelhas, a beleza frágil das flores, o sol – você vê como a natureza é indiferente àquilo tudo.

Toda a violência e o sofrimento da humanidade. A natureza nem sequer se dá conta.

Você está tão sozinho. Então um estilhaço de obus acerta o lado de sua cabeça e você morre.

Você foi riscado, eliminado. Foi exterminado.

Eu pousei esse livro e o fechei. Nunca quis ler outro romance de guerra depois, e não li.

Charlie Poole, da Carolina do Norte, tem uma canção que tem a ver com isto. Ela se intitula “Você Não Está Falando Comigo”, e a letra diz assim:

“Eu vi um letreiro numa janela quando vinha pela cidade um dia. Venha para o Exército, veja o mundo e o que ele tem para dizer.

“Você vai conhecer belos lugares com uma turma animada, vai encontrar gente interessante, e aprender a matá-la também.

“Ah, você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Eu posso ser doido e tudo o mais, mas veja que eu tenho bom senso

“Você não está falando comigo, não está falando comigo.

“Matar com um a arma não parece muito divertido. Você não está falando comigo.”

A Odisséia é um grande livro cujos temas chegaram até as baladas de muitos compositores:

“Indo Para Casa”, “Os Verdes Relvados da Minha Terra”, “Casa na Campina”... e nas minhas canções também.

A Odisséia é a história estranha e aventurosa de um homem adulto tentando voltar para casa depois de lutar numa guerra.

Ele está numa longa viagem para casa, cheia de acidentes e armadilhas.

A maldição dele é vaguear. Ele está sendo sempre levado para o mar, sempre perseguido. Grandes rochedos caem perto do seu barco.

Ele irrita pessoas que não deveria irritar. Na sua tripulação há uma porção de encrenqueiros. Traidores.

Seus homens são transformados em porcos, e depois em homens jovens e bonitos. Ele está sempre tentando resgatar alguém.

Ele é acostumado a viagens, mas desta vez está fazendo paradas demais.

Ele está perdido numa ilha deserta. Encontra cavernas vazias e se esconde nelas. Encontra gigantes que dizem: “Vou comer você por último”.

E ele escapa dos gigantes.

Ele tenta ir para casa, mas está sendo empurrado e retido pelos ventos.

Ventos inquietos, ventos gelados, ventos inimigos. Ele viaja para longe, e depois é empurrado de volta pelo vento.

Ele está sempre recebendo avisos de coisas que estão por vir. Tocando em coisas proibidas. Há dois caminhos para escolher, e ambos são más escolhas. Ambos são incertos.

Num você pode se afogar, no outro pode morrer de fome.

Ele entra no desfiladeiro estreito onde redemoinhos espumejantes o engolem. Encontra monstros de seis cabeças com dentes afiados. Raios caem sobre ele.

Galhos altos de onde ele se joga e se agarra para fugir de um rio furioso.

Deuses e deusas o protegem, mas há outros que querem matá-lo.

Ela muda de identidade. Está exausto. Adormece, e acorda com um som de gargalhada.

Ele conta sua história a alguns estranhos. Esteve fora durante vinte anos.

Ele foi carregado por alguém e largado ali. Botaram drogas no seu vinho. Foi uma estrada muito dura de trilhar.

De muitas maneiras, estas mesmas coisas aconteceram com você.

Também botaram drogas no seu vinho. Você também dividiu a cama com a mulher errada.

Você também foi seduzido pelo encantamento de vozes mágicas, vozes doces com estranhas melodias.

Você também chegou até aqui e foi empurrado de volta.

Você também passou por perigos iminentes.

Você irritou gente que não devia.

Você também andou sem destino por este país. E você também sentiu o sopro daquele vento mau, aquele que não traz nenhuma coisa boa.

E isto ainda não é tudo.

Quando ele volta para casa, as coisas não estão melhores. Canalhas invadiram sua casa e estão tirando proveito da hospitalidade da esposa dele.

E eles são muitos.

E embora ele seja maior que todos, e seja o melhor em tudo – o melhor carpinteiro, o melhor caçador, o melhor conhecedor de animais, o melhor marinheiro –

Sua coragem não vai poder salvá-lo, mas sua esperteza sim.

Todos esses penetras vão pagar por terem profanado o seu palácio.

Ele se disfarça como um mendigo sujo, e um dos criados o derruba na escada a pontapés, com arrogância e estupidez.

A arrogância do criado o revolta, mas ele controla sua raiva. Ele é um contra uma centena, mas todos eles vão tombar, mesmo os mais fortes.

Ele não era ninguém. E quando tudo acaba, quando finalmente ele pode dizer que está em casa, ele senta com sua esposa, e conta a ela as histórias.

Então, o que significa tudo isto?

Eu e muitos outros autores de canções fomos influenciados por estes mesmos temas.

E eles podem significar uma porção de coisas.

Se uma canção emociona você, é isso que importa.

Eu não preciso saber o que uma canção significa. Eu já escrevi todo tipo de coisas em minhas canções.

E não vou me preocupar com isso – com o que aquilo significa.

Quando Melville emprega todas aquelas referências bíblicas do Velho Testamento,

Teorias científicas, doutrinas protestantes,

E todo aquele conhecimento do mar, dos navios e das baleias, tudo numa só história,

Eu também não creio que ele estivesse também preocupado com isso – com o que aquilo significa.

John Donne, também, o padre-poeta que viveu no tempo de Shakespeare, escreveu estas palavras,

“O Sestos e Abydos dos seus seios. Não de dois amantes, mas dois amores, os ninhos”.

Eu também não sei o significado. Mas o som é bonito.

E você vai querer que suas canções soem bem.

Quando Odisseu, na Odisséia, visita o famoso guerreiro Aquiles no mundo subterrâneo,

Aquiles, que trocou uma vida longa, cheia de paz e satisfação, por uma vida curta cheia de honra e de glória,

Diz a Odisseu que foi tudo um engano. “Eu morri, e isso é tudo.

“Não houve honra. Não houve imortalidade.

E diz que se pudesse escolheria voltar e ser escravo de um fazendeiro qualquer na terra do que ser o que é–

“Um rei na terra dos mortos."

Diz que não importa quais fossem suas lutas na vida, elas eram preferíveis a estar ali naquele reino dos mortos.

E é isso que as nossas canções também são. Nossas canções estão vivas, na terra dos vivos.

Mas canções são diferentes da literatura. São feitas para serem cantadas, não para serem lidas.

As palavras nas peças de Shakespeare foram feitas para ser ditas num palco. Assim como as letras das canções são feitas para ser cantadas, não para ser lidas numa página.

E eu espero que alguns de vocês tenham a chance de escutar estas letras de acordo com a intenção com que elas foram feitas:

Em concertos, ou em discos, ou onde quer que as pessoas estejam escutando canções nos dias de hoje.

Volto mais uma vez a Homero, que diz: “Canta em mim, ó Musa, e através de mim conta a história”.


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O arquivo de áudio com o texto em inglês:

https://www.youtube.com/watch?v=3Zf04vnVPfM