("Sonnet en X", Mallarmé)
Eu
estava numa mesa com alguns amigos que curtem repente. Alguém recitou uma décima
de martelo improvisada por um cantador, todo mundo elogiou, e então alguém
disse:
–
Improvisar nessa estrofe tradicional todo mundo já se acostumou. Eu queria ver
era Fulano de Tal (o repentista em questão) improvisar em forma de soneto.
Eu
retruquei que, para quem sabe improvisar, o formato da estrofe é o de menos,
tem apenas que não se atrapalhar, mas o método de improviso é o mesmo. Houve
discordância, e eu me propus a improvisar um soneto em voz alta, ali mesmo. Casou-se
dinheiro em aposta (entre eles – eu não tenho esses vícios).
Enchi o
copo, fiz um drama de franzir a testa e comecei.
Vou fazer um soneto
de improviso
nesta mesa, diante de
vocês.
Vejam só, já estou na
linha três
e a quatro é somente
o que preciso.
Tomei
um gole e corri o rabo do olho pela mesa. Eles estavam na expectativa, mas era
ainda uma expectativa de quem diz, “vá, pode começar”. Senti que estava
devendo.
Engatei
marcha e fui em frente:
O meu verso é tirado
do juízo
não foi outra pessoa
quem o fez,
porém quando a
questão é rapidez
o que for necessário
eu realizo.
Essa aí
produziu mais efeito, porque um deles deu uma risada, e falou:
– Eita,
o caba é corajoso. Medo de dizer besteira é uma coisa que ele não tem.
Ignorei-o
majestosamente, e prossegui:
Só quem sabe entender
o que é poesia
dá valor ao repente
que se cria
na medida correta, e
bem rimado.
Hora de
mais um gole para lubrificar o desfecho. E assim foi:
O formato é que pode
ser soneto,
sem ter tinta ou
papel, branco nem preto,
mas que seja martelo
agalopado.
Tudo
isto me exigiu, o quê? Dois, três minutos. Uma eternidade de lazer, se você
comparar com o tempo dos versos improvisados por profissionais, ao som da
viola.
O cara
que apostou em mim acabou ganhando por consenso da mesa, porque bem ou mal esse
trambolho em itálico aí em cima é juridicamente um soneto: tem 14 versos, 2
quartetos, 2 tercetos, o esquema de rimas é um dos vários universalmente
aceitos. Tampa da caçuleta.
Transcrevo
a façanha, não para me gabar (se fosse o caso teria inventado alguma coisa
melhorzinha e também plausível), mas para discutir um tema que nem sempre se
questiona a respeito do improviso.
Lembro
a lição do mestre Zé de Cazuza, que numa conversa me disse certa vez:
– Todo
verso, mesmo verso escrito, é meio improvisado, né? O verso brota na mente. A
diferença é que no verso escrito o camarada pode ficar horas e horas ajeitando
aquilo que improvisou, e na viola não, do jeito que ele improvisa na cabeça ele
tem que cantar, não dá tempo de ficar ajeitando.
A “contrainte”
embutida nessas formas fixas (martelo, soneto, etc.) obriga o poeta a se
concentrar na obediência obrigatória à rima e à métrica. A grande maioria dos
versos improvisados “não tem poesia”, é apenas uma espécie de prosa cuja
preocupação é manter-se fiel a uma cadência, e terminar cada frase com um som
obrigatório.
Todo
improvisador tem truques para cumprir essas obrigações. O truque a que recorri
na primeira quadra é um dos mais antigos de quem escreve soneto: fazer o
comentário metalínguístico sobre cada linha que vai compondo. Já li dezenas de
sonetos que não dizem outra coisa senão comentar: “Tou fazendo a linha 1... a
linha 2... a linha 3... a linha 4...”.
Outra
coisa: repertório de rimas. Eu sei que para compor os 2 quartetos preciso de 4
palavras com uma rima e 4 palavras com outra. Escolhi duas que acho facílimas:
ISO e ÊS. É nessa primeira escolha que muitos candidatos dançam, porque,
preocupados com o conteúdo, eles fazem duas frases iniciais bem elegantes e
depois percebem que vão ter alguns segundos apenas para catar na memória alguma
palavra que rime com aquilo.
Não,
amigo. Pense na rima primeiro, e na palavra só depois. “Run for cover”, como dizia Alfred Hitchcock: corra para o terreno
onde você tem cobertura. Deixe as rimas difíceis para o momento do caderno, da
caneta e da poltrona. Para improvisar de verdade, pegue rimas que têm vasto
vocabulário. Improviso, por exemplo,
eu só tendo a rimar com juízo, com
algo que vai ser preciso... Clichê,
mas quando a gente corre contra o relógio não pode ficar escolhendo.
Outra
coisa: prepare um final. Eu decidi, durante o gole de cerveja, que terminaria
dizendo algo sobre martelo agalopado,
então já estava tranquilo: se esta seria a rima da linha 14, não me daria
trabalho achar algo que rimasse para fechar a linha 11 (no caso, foi “rimado”).
Se eu
estivesse escrevendo, não rimaria improviso,
com meus clichês habituais. Procuraria algo mais afastado – faria uma
comparação qualquer com Narciso, ou
diria que como cascavel-do-repente eu balanço o meu guizo, ou que meu verso vem do Paraíso,
ou que sou um poeta liso...
Rimas,
existem muitas. Quanto mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de
pescar uma rima que suba o nível poético da frase. São as palavras que rimam
quem vão nos trazer – pela mão dessa concidência arbitrária e obrigatória – o
assunto das próximas linhas, as imagens, as associações de idéias.
Gosto
deste comentário do poeta Tom Lehrer (no livro Le Ton Beau de Marot, de Douglas Hofstadter):
Parece aos outros uma
grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões inesperadas do
espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias possíveis) por causa da
rima, que é uma restrição auto-imposta. (O poeta) acaba pensando em imagens que
jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de rimar as linhas umas
com as outras.
Quanto
mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de achar uma rima que, além
de arrastar a frase para uma direção nova, inesperada, dê a impressão de que se
encaixa tão bem no assunto que está ali pelo seu conteúdo (e não pela rima).
Um
último comentário, sobre a dúvida que deu origem a tudo isto. Improvisar um
martelo e improvisar um soneto não são coisas muito diferentes. É um poema de
10 linhas contra um poema de 14, apenas. Um esquema de rimas ABBAACCDDC e um
esquema ABBA-ABBA-CCD-EED (o soneto admite vários; o que usei foi este).
A
dificuldade é grande, talvez, para aqueles violeiros que são acostumados ao
martelo e mas não têm muita familiaridade com o soneto. A velocidade da mente
já se formatou com um esquema, e, quando forçada a trabalhar em outro, dá um
branco.
Já vi
cantadores desafiando uns aos outros a improvisar uma estrofe de martelo
totalmente sem rima, livre – e alguns não conseguiam, se atrapalhavam e
acabavam rimando.
Adquirir
técnica é adquirir uma forma diferente de liberdade; ficar preso a ela é sempre
perder a liberdade.
Trocar
de formatos e de fórmulas de vez em quando ajuda a manter vibrando o diapasão
da criatividade.
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