(ilustração: Poty)
“Minha Gente” é o quinto conto de Sagarana, de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro, segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas seguintes.
Num depoimento-carta, bem longo, para o jornalista João Condé, incluído no
livro Relembramentos: João Guimarães
Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa
(Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:
MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente,
com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao
escrever as demais.
É um conto considerado menor dentro do livro, mas para
mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo
desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros
olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da
moeda, que girava, para um dos dois lados.
O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos
descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com
quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas
eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores,
azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.
É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural
já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre
também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).
O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no
vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra
ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda
do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha
política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador
começa a arrastar uma asa firme na direção dela.
O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro
do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda
ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da
prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.
Outros elementos dão o tom da história. Um deles é
Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico
interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com
propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo
enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.
Outro elemento é a política local (para o brasileiro
médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele
descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:
Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no
seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do
Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a
leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do
município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas
correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande
município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio,
resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições
estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.
Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro
figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e
resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.
O grande momento dramático do conto é o assassinato de
Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias.
Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como
ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está
tendo um caso com uma mulher casada.
Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do
marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e
entrecortado como o assassinato é descrito:
Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi:
um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como
um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças
arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se
agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre,
primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue,
ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a
raiva. O morto não se vê. Está no fundo.
Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a
de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la.
Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se
arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só
por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado,
pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à
beira-rio.
O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que
dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo
amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que
amava Maria...”
O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas
descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta
livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda,
grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.
O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata,
logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama
“mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre
qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:
Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me
deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso,
porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa,
com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: --
Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo
de novo!...
Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações,
o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar
interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é
noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:
É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é
filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...) Da minha altura. Mais cheia de corpo... É
bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...) É muito desembaraçada... Independente...
Moderna...
O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando
enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata
de “ceder terreno, para depois
recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”.
Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.
A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio
quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes,
recebe do tio o elogio: “você costurou
certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o
adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar
que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na
negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente
narrada com suas idas e vindas.
No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador,
que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao
lado de Armanda:
Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos.
(...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão
de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de
repente, e eu senti que ela também estremeceu.
Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final
dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava
indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de
xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:
E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de
maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro
Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.
Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações
semelhantes: “Tudo está bem quando acaba
bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura
das alianças amorosas.
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