Brincando, brincando, são 104 anos de nascimento de Luiz
Gonzaga, e o pessoal não deixa de comemorar, lembrar, fazer homenagens. Que são sempre
poucas, para a importância que teve o Rei do Baião como artista e como
personalidade pública.
Anotei aqui algumas impressões sobre ele, alguns detalhes
que sempre me vêm à mente quando o ouço cantando, quando o vejo dando
entrevistas ou conversando nos palcos. Ou quando faço uma avaliação da
importância que ele teve para a música.
Tecnologia
A invenção do baião no Rio de Janeiro foi (já escrevi
sobre isso) um momento crucial na história da apropriação da tecnologia urbana pelos
artistas populares nordestinos. Gonzaga e Humberto Teixeira tomaram de assalto
um patamar tecnológico (gravadoras, rádios cariocas) que até então estava com
porta trancada e segurança na frente. Com poucas exceções, e em fixas
resttitas. Foi algo parecido com o que Leandro Gomes de Barros fez em 1895
quando se apropriou da tecnologia gráfica e começou a imprimir os poemas que
antes eram recitados de memória ou copiados à mão. Foi parecido com Linduarte
Noronha e sua equipe fazendo Aruanda
no menos provável dos Estados onde pudesse aparecer um modo novo de fazer
cinema brasileiro.
A ode à tecnologia está presente, principalmente, na canção
“Respeita Januário”, onde ele reafirma orgulhoso o sua conquista do poder high-tech da capital (a
“sanfonona” de 120 baixos) e ao mesmo tempo o orgulho do artista popular: “Eu
não sei pra que tanto baixo, porque espiando bem ele só toca em dois. Januário
não. O fole de Januário só tem 8 baixos, mas ele toca em todos 8”. Tem toda uma
teoria da Estética nessa música.
Largueza
Gonzagão tinha um sorriso largo, franco, que iluminava o
rosto em forma de lua. Sorriso de quem não tem medo. Mesmo já velho, abatido
pela doença e pelos desgostos, sem poder andar direito, cantar direito, quando
ele via algo ou alguém que o alegrava o sorrisão voltava inteiro. Não só o
sorriso: o coração era largo, brigava mas perdoava, todo mundo cabia ali
dentro. (O bolso era largo também.) O
sorriso parecia o abrir de uma sanfona. A voz era larga. Voz de quem já cantou
muitas noites em cima de um caminhão, numa praça, e tinha que cantar mais alto
do que a sanfona, porque não tinha microfone.
Política
Poucos artistas se misturaram tanto com a política, não
no sentido da militância, mas na convivência misturada que caracteriza o
artista nordestino evoluindo entre coronéis, deputados, fazendeiros, prefeitos,
vereadores , “homens por nós escolhidos para as rédeas do poder”. Qual o
nordestino que nunca pediu um favor a um cidadão desses? No tempo das vacas magras, quando passou o
tsunami do primeiro sucesso, Gonzagão botou o trio no carro e saiu de Brasil
afora, de cidadezinha em cidadezinha. Riscava na frente da Prefeitura, descia,
avisava: “Diga ao prefeito que Luiz Gonzaga está aqui e queria humildemente uns
minutinhos de atenção dele”. Descolava hotel, refeição, gasolina e cachê para
aquela noite.
O povo de Exu lembra os longos esforços dele para a
construção da estrada que ligou o município às cidades em volta. Gonzagão foi
lobista, “lobista do povo”, como ele mesmo se apressaria a acrescentar. A
convivência com políticos está no início mesmo de sua carreira. Ele contava que
na época em que passava a noite tocando “In the Mood” na sanfona, na zona do
Rio, um grupo de estudantes cearenses, tendo à frente o futuro ministro Armando
Falcão, ficavam lá da mesa lhe pedindo para tocar as coisas do Nordeste. Esse
toma-lá-dá-cá nunca mais parou.
Oralidade
Quem melhor do que Gonzagão cultivou, em cima do palco, a
arte do monólogo entremeado às canções? Eram cinco minutos de conversa e uma
música, oito minutos de conversa e outra música. Herdeiro da imensa
informalidade dos forrós de candeeiro, para ele não tinha essa coisa do
roteiro-de-ferro do show business. Ele aprendia tudo e botava no bolso para
usar quando lhe desse na telha.
Muita conversa; e ao se juntar com parceiros igualmente
loquazes como Zé Dantas, que era um tesouro de cultura oral, produzia
canções-não-canções como “Sá Marica parteira”, que na verdade não tem nada a
ver com a canção do show business (letra + melodia + arranjo), é um
interminável monólogo puxado pelo resfolêgo da sanfona, cheio de efeitos
sonoros de-boca (“piriri, piriri, piriri...”, “nheeeééém-pááá!”), sem primeira
e segunda parte, sem refrão, um misto de teatro de palco e anedota radiofônica.
Eita caminho largo para a música brasileira, caminho largo onde tão pouca gente
já passou!
Gonzagão foi contraditório como todos os grandes artistas
populares que saem da pobreza, chegam à riqueza, e insistem em continuar
segurando ambas as pontas de um cordão tão comprido. Contraditório como quem,
mesmo amado e endeusado por milhões, ainda se dirige a certas figuras com o
tratamento respeitoso de “Seu Dotô”.
Contraditório ao assinar composições que só eram suas pelas beiradas,
graças à adição de um riff de teclado, de um refrão concebido na hora de
gravar, mas que o fazia com o coração aberto de quem sabia que aquilo ali, num
sentido artístico bem profundo, era tudo seu.
Numa entrevista antiga, o repórter lhe perguntava no
final como ele via toda a sua trajetória, a vida, a obra, tudo que realizou. E
ele já velhão, cansado, tranquilo, alargou o sorriso e disse:
-- Isso estava escrito. Deus quis, aconteceu. Foi bom pra
mim. É bom pro povo.
Precisa mais?
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