sexta-feira, 25 de novembro de 2016

4182) A pista do passado (25.11.2016)





Falei dias atrás sobre as histórias de viagem no Tempo onde dois fatos, em momentos diferentes do Tempo, se refletem um no outro, quando um personagem, viajando na direção do passado, encontra um objeto significativo que conhecera em sua própria época, e que de certa maneira é a razão de sua viagem.

Outro efeito empregado pelos autores dessas histórias pode ser resumido assim: alguém da nossa época viaja (mental ou fisicamente) ao Passado. Lá, interfere de alguma maneira nos acontecimentos e isso produz uma marca que poderá ser vista pelas pessoas do “presente”, da época de onde ele próprio partiu.

Um dos melhores livros de Isaac Asimov é The End of Eternity (1955) (no Brasil, O Fim da Eternidade, Editora Aleph), cuja premissa básica é a existência de uma espécie de Túnel do Tempo pelo qual um grupo de “Eternos” é capaz de acessar cada século da História. Um personagem é enviado ao passado, o ano de 1932, e por uma série de razões fica preso ali.

Os Eternos se reúnem. Sabem que estando preso no passado o explorador pode tentar mandar algum recado para eles. E começam a pesquisar as revistas da época, até que encontram um desenho de uma nuvem em forma de cogumelo (que em 1932, antes da bomba atômica, não despertaria nenhuma ressonância especial nos leitores) e a frase “All the Talk Of the Market”, que forma o acróstico A-T-O-M. É um recado, à vista de todos, mas que só poderia ser corretamente interpretado pelas pessoas do futuro.

(Segundo consta, Asimov teria visto a foto casual de uma nuvem-cogumelo (natural, não atômica) numa revista antiga, e isso lhe deu a idéia da história, plantando um viajante do Tempo no passado.)

Outro exemplo vem do conto “Uma mensagem de Charity” (“A message from Charity”, 1967, de William M. Lee), que incluí na minha antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, Rio, 2011.

Desta vez não se trata de viagem no Tempo, mas de contato telepático através do Tempo entre dois adolescentes, um garoto do século 20 e uma garota do começo do século 18, no mesmo local da Nova Inglaterra (EUA).

Charity e Peter (por mecanismos que não vale a pena questionar aqui) entram em contato telepático, leem o pensamento um dos outro, ficam amigos. Ela descreve para ele o mundo soturno em que vive, cheio de caças às bruxas; ele mostra a ela o mundo moderno (cada um consegue, numa certa medida, ver o que o outro está vendo). Eles moram exatamente no mesmo local físico, e há um rochedo, a Pedra do Urso, onde os dois costumam sentar para “conversar” mentalmente – como se fosse um local onde o sinal do celular pega melhor.

Só que, com esse moído todo, o pessoal da época de Charity começa a desconfiar do comportamento dela, alheia, distraída, aparentemente falando sozinha. Suspeitam que ela é bruxa. Ela é submetida a um julgamento onde Peter ajuda na sua defesa – no futuro ele é capaz de pesquisar na biblioteca local e descobrir informações sobre crimes praticados pelos acusadores de Charity, que os ameaça veladamente no tribunal e acaba se safando.

Mas o perigo continuia, e ela resolve cortar a ligação com Peter. Despede-se dele, e diz: “Olhe na Pedra do Urso, embaixo do queixo, do lado esquerdo”.

Peter vai lá, naquele lugar tão conhecido dele, tateia embaixo da pedra, e encontra, gravado na pedra, um coração com as iniciais deles dois.

É mais uma vez essa figura das duas pontas que se encontram; neste último caso, o detalhe mais significativo é saber que, durante todas as conversas dos dois, o sinal (em 1967, digamos) já estava gravado na pedra, três séculos antes, mas é só quando ela o revela que ele vai à procura e o encontra.

Em sua Poética, Aristóteles propõe uma figura literária chamada “anagnórise”, que é “um recurso narrativo que consiste no descobrimento por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade, de entes queridos ou do entorno, ocultos para ele até então. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma idéia mais exata de si mesma e do que a rodeia.” (Wikipédia).


Quando eu tiver tempo vou inventar um nome para esse instante em que duas pontas do Tempo se tocam e um personagem, ao conhecer o Passado, entende o real significado de algo que fez parte do seu Presente. 





2 comentários:

  1. Adorei o parágrafo final , "quando eu tiver tempo...".!!

    ResponderExcluir
  2. Seria correto dizer, também, que muitos trechos de livros e mesmo romances inteiros são fundados na anagnórise, de modo que a gente tem até que reler para ver as coisas de outra maneira? Por exemplo, o livro Serena, de Ian McEwan.

    ResponderExcluir