terça-feira, 27 de setembro de 2016

4164) O artista múltiplo Jean Cocteau (27.9.2016)




Ninguém o cita muito hoje em dia, e não sei como ele é visto pelos jovens, se é como um dramaturgo de vanguarda, um poeta e desenhista gay, um cineasta surrealista...

Há meio século, Cocteau, para mim, era menos um escritor importante do que uma figura folclórica, como Salvador Dali. Os dois podiam até ser de fato grandes artistas, quando estavam trabalhando, mas a imprensa (pelo menos a imprensa brasileira, a única de que eu tinha referências aos quinze anos) os tratava como figuras meramente folclóricas.

Dali era um excêntrico. Cocteau era uma figura menos excêntrica do que ele. Tinha o lado pitoresco do artista em evidência, autor de espetáculos, livros ou projetos que causavam algum impacto e polêmica. Sempre rendia uma notinha, uma frase com legenda espirituosa.

Era também um desses artistas sempre meio em xeque por serem gays num tempo em que essa palavra nem era usada para isto. Ele era daquele faixa que demarca seu terreno com inteligência e verve. Era um poeta, mas era também um Desconstrutor Surrealista, muitas vezes um Rei do Paradoxo Aforístico, um convidado capaz de tornar uma noitada social inesquecível com meia dúzia de frases, como também foram Oscar Wilde ou G. K. Chesterton.

Cocteau era para mim o poeta e pintor francês cujos versos e linhas lembravam os de Garcia Lorca. Só deixou de ser quando vi pela primeira vez seu filme Orfeu. É um surrealismo mitológico que só Cocteau acertou a fazer, muito diferente do absurdo feroz de Buñuel, e com efeitos bem originais para produzir o sonho, o fantástico.

É o mito de Orfeu: a morte da esposa, a descida aos infernos, a solução negociada, a olhada para trás, a perda final. Cocteau reconta essa história na Paris de 1950, tendo como centro um Café des Poètes. Na sequência inicial do filme acontece uma briga nesse café, uma daquelas coreografias executadas com prazer pelos extras. (O cinema inventou esse conceito: a briga feliz.)

Quem nos mostrou esse filme foi o padre Massote, na Escola de Cinema de BH, onde ele e professores como Paulo Pereira e Hélio Gagliardi tinham grande admiração pelo diretor. Os truques de espelho, de água, de tela transparente, são todos convincentes. Sabe-se que Buñuel tinha pouca paciência com a técnica e a filmagem; Cocteau devia gostar muito de cinema, das soluções técnicas.

Cocteau é um nome distante hoje em dia, mas acabou de sair a tradução para o inglês de uma daquelas biografias-de-mil-páginas sobre ele, resenhada aqui:


Pouco tempo atrás percebi, lendo a correspondência de Julio Cortázar com seus amigos portenhos (Cartas a los Jonquières, 2010), que Cocteau foi uma de suas grandes influências. Cortázar diz aos amigos que irá ver pela primeira vez um show de Louis Armstrong (ele já mora em Paris; o ano é 1952) daí a poucos dias, e comenta:

“Imaginarás, creio, o que é isto para mim. Sei que Louis está velho, e naturalmente não espero dele o que me deu em seus discos durante tantos anos. Mas ele foi uma das grandes paixões da minha juventude, e vê-lo em cena me parece como uma homenagem, algo como o que senti nesse mesmo teatro quando vi Cocteau abraçado a Stravinsky depois de Oedipus Rex. Pouco a pouco vou encontrando em meu caminho os meus deuses de adolescência. É um sinal de morte e de velhice, mas que importa. Me faltam Duke Ellington, Colette, Earl Hines, Picasso. Talvez me seja dado vê-los um dia.”

Paixões de juventude, deuses de adolescência: talvez seja essa mentalidade meio de fandom que faz alguns críticos considerarem Cortázar, hoje, um autor imaturo. Mas essas cartas são registros de impressões endereçadas a amigos muito próximos, que dificilmente não entenderão alusões ou ironias propositais. Cortázar, nessa época com 38 anos, tinha o cacoete de falar de morte e de velhice, figura de linguagem endêmica em gente como ele.  

Em agosto de 1955 ele escrevia aos amigos:

“Ontem completei quarenta e um anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema que hás de recordar, e o dizia com tanta tristeza como eu.”

Só mesmo um virginiano para dizer isso. Em 1966, dentro dos cinquenta e dois, ele lembrava Cocteau num contexto mais brincalhão, ao rechaçar os elogios descabelados de alguns conhecidos após o sucesso de O Jogo da Amarelinha (1962):

“Voltando àquela nota de Arroyo: é divertido que ele divida o tempo literário em a.C. e d.C., o que é absurdo, mas vá lá. Suponho que minhas iniciais o ajudaram a organizar esse novo calendário, mas diga a Rocco, se é amigo de Arroyo, que eu sempre me senti mais próximo de Jean Cocteau do que de Jesus Cristo, no que diz respeito a iniciais.”

Cocteau desenhista tinha um pequeno detalhe de estilo que eu chamo ”desenho de guardanapo”, onde cada vez que a caneta se detém num ponto produz um pequeno borrão. Isso aparece nos letreiros de abertura do Orfeu, aqui:


Foi um desses artistas que mexem em tudo (cinema, desenho, poesia, teatro, pintura, etc.) e tudo que fazem é parecido, tem o carimbo de uma maneira única de ver e de dizer.










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