(foto de Leonardo Silva)
Algum tempo atrás, remexendo aqui numas gavetas, achei um
papel dobrado. Era um daqueles papéis onde a gente anota alguma coisa e guarda
no bolso de trás, e durante semanas ou meses o papel sai pulando de calça em
calça até o sujeito estranhar e ter que olhar o que é aquilo.
Era um papel rabiscado com caneta Bic, uns riscos, uns
cálculos, e estas linhas, com a minha letra:
Amigo Zé Laurentino
estive em nossa cidade,
quando ouvi tocar o sino
da igreja da saudade.
Era uma carta que eu comecei a escrever depois de uma das
minhas passadas por Campina Grande. Isso aí era o tipo do verso que Zezinho ouvia
e dava um riso meio de banda e dizia, vige, que coisa bonita. Poesia de cantadores
tem muito dessas imagens meio singelas, que uns acham naïf. Versos que podiam
ser de ciranda ou de coco, porque são versos para serem cantados. E é por isso
que o poeta faz retinir o sino, porque a melodia pesa pelo menos tanto quanto a
retórica.
O projeto de carta ficou por aí mesmo, mas reencontrei
Zezinho meses atrás na cerimônia de entrega dos títulos de cidadãos paraibanos a Ivanildo
Vila Nova, Santanna o Cantador e Os 3 do Nordeste. Zezinho tinha perdido a vista por um tempo,
mas depois descobriu-se que era algo que podia ser operado, e depois de algum
tempo fora do ar ele recuperou a visão em grande parte, o que deve ter sido uma
grande alegria.
Tenho lembrado muito da época dos festivais de cantadores em Campina, em função de textos que estou
escrevendo ou revisando.
Zé Laurentino pertencia à Associação dos Poetas e
Repentistas Nordestinos, atuante em Campina, nessa época tendo à frente José
Gonçalves e Ivanildo. E mais Santino Luiz, João Marinho, e outros, mas todos
violeiros, e somente Zezinho era o que se chama de poeta matuto.
Os seus grandes sucessos naquela época eram “Matuto
no Futebol”, "Esmola Pra São José", "O Mal se Paga com o Bem", “Eu, a Cama e Nobelina”. O linguajar da poesia matuta engana quem pensa que o poeta fala daquele jeito. É uma fala estilizada,
uma fala-máscara, que o poeta usa para dar colorido ao seu “número” no palco.
Quem escreve versos daquele jeito dificilmente fala daquele jeito.
Não gosto da poesia matuta quando ela envereda por aquela
estética de festa junina, onde é obrigatório mostrar um matuto de chapéu
esfiapado, sem os dentes da frente, e que anda como um macaco. Não gosto quando
ridicularizam o matuto. Gosto quando o matuto (como os humoristas judeus) manga
de si mesmo, e, mangando de si mesmo, demonstra ter uma compreensão de si mesmo
e do Outro mais profunda que a compreensão do Outro.
Patativa do Assaré tinha um português melhor do que o
meu. A voz matuta era opção dramatúrgica para deixar claro o avatar que estava
incorporando.
José Laurentino era um poeta de ironia discreta, olho bom
para detalhes, riqueza de rimas que pareciam cair do céu para fechar uma estrofe
com perfeição. Seus versos que provocavam maiores gargalhadas eram quando ele descreva
o beradêro que se mete a jogar de "quipa" e vai defender um pênalti:
e um pá de jueieira
também um pá de chuteira,
uma camisa de gola
e eu gritei arra diabo
eu já peguei touro brabo
e segurei pelo rabo
porque não pego uma bola?
E quando eu fui pegá a bola
me atrapaei meu patrão
passou pru entre meus braço
bateu numa região
que foi batendo eu caindo
espulinhando no chão.
Esse tipo de humor, pra mim, tem alguma coisa de comédia
do cinema mudo, alguma coisa de cordel, de comédia de picadeiro de circo.
E a grande graça, pra mim, está nesse verbo “espolinhar”,
que é muito típico do interior do Nordeste. Uma palavra rara mas familiar, com
uma sugestão visual (“espolinhar”, para mim, é cair no chão e ficar agitando as
pernas, dando chutes no ar.)
Augusto dos Anjos usa a palavra, em “A Meretriz”:
Nesse espolinhamento
repugnante
o esqueleto irritado da
bacante
estrala... Lembra o ruído
harto azorrague
a vergastar ásperos dorsos
grossos.
A palavra rara que todo mundo conhece. O mesmo que vemos
tantas vezes no teatro de Lurdes Ramalho, de Ariano Suassuna, onde a todo
instante brilha um diamante-bruto vocabular incrustado na pedra do idioma comum.
No poema de “Nobelina”, o narrador faz um elogio à
sinfonia musical produzida por uma cama com o colchão em movimento, e depois
fala de seu noivado com Nobelina. Um dia ele a flagra recebendo a
arrastada-de-asa de um carioca, numa festa, e profere a sentença memorável:
Dei uma cordinha a ela
porque mulher é assim:
quando tá com a corda toda
mostra se é boa ou ruim.
Após a notícia do falecimento de José Laurentino, nesta
quinta-feira, vi nas redes sociais a citação de um verso feito por ele quando
do falecimento de Manoel Monteiro, o cordelista muito atuante em Campina, poucos
anos atrás. Zezinho teria dito:
Manoel, por ti eu sinto
uma saudade sem fim.
Se aí no céu encontrares
um barzinho, um botequim,
peça a Deus para que guarde
um lugarzinho pra mim.
ResponderExcluirPerfeito, Braulio. Excelente texto...Já compartilhei nas minhas paginas do Face.
Alberto Oliveira