Numa entrevista recente no Literary Hub (http://lithub.com/salman-rushdie-on-poetry-being-a-reader-and-going-to-the-movies/),
Salman Rushdie, que é um literato com espírito de cinéfilo, lembra a época de
ouro do chamado cinema de arte:
“Eu acho que fui um cara de sorte em ser jovem num tempo em que o cinema do mundo inteiro passava por uma fase brilhante. Talvez seja difícil agora, na era do Netflix, explicar às pessoas a sensação de ir ver o filme novo desta semana e ser Pierrot Le Fou de Godard. E na semana seguinte havia um filme novo de Fellini, e na semana depois dele, o novo filme de Kurosawa. E na semana seguinte veríamos o novo filme de Bergman. E depois, o novo de Buñuel. E estes filmes nos quais pensamos hoje como os grandes clássicos do cinema mundial eram as estréias da semana.”
Rushdie está sendo benevolente e deixando de mencionar
que essa época era também a era dos Épicos Halterofilísticos de Cinecittà, estrelados pelos
Schwarzeneggers da época no papel de qualquer herói mitológico, os
espada-e-saiote cujo sincretismo foi imortalizado em Hércules, Sansão e Ulisses (Ercole
sfida Sansone, Pietro Francisci). Foi a época (pelo menos aqui no Brasil,
não sei na Índia ou em Londres) de maior concentração de comédias bestas de
Hollywood por hora de projeção, filmes estrelados por Doris Day, Elvis Presley,
Rock Hudson, Dean Martin & Jerry Lewis, Pat Boone, o escambau, e eu assisti
quase tudo.
Foi uma grande época não só para quem aprecia a arte
cinematográfica, mas para quem gosta de se divertir no cinema.
Eu tinha pensado nisso vendo comentários de Julio
Cortázar depois que se mudou de Buenos Aires para Paris. Talvez por se dirigir
a um amigo artista plástico e poeta (Cartas
a Los Jonquières, 2010) ele fale pouco em cinema, mas de vez em quando ele
mostra que deve ter estava vendo os mesmos filmes que Rushdie (nessa época, ambos
eram desconhecidos e inéditos, e ver aqueles filmes pode lhes ter encorajado a
ambição):
“Mais notícias de Paris. Vimos Intermezzo pela companhia de Barrault (suponho que o viste em B. A.) e gostamos muito. Mas quem nos sacudiu de verdade foi La Strada [A Estrada da Vida], uma película italiana de Fellini que deixou Paris inteira com as patinhas para cima, e com razões. Não sabes se vai passar aí? É um produto quase indefinível, onde a pantomima está sempre presente através de sua estranha e assombrosa protagonista. Se passar aí, não deixes de vê-lo. Cedendo a uma fraqueza que nos custou 500 francos fomos ver On the Waterfront [Sindicato de Ladrões], o filme tão elogiado de Elia Kazan, com Marlo Blando [sic] de herói (acho que me equivoquei com o nome). Nos deparamos com a repetição de todas as receitas ianques, e com um grande ator. Mas o que pode fazer um ator a quem quer que seja, se não está a serviço de algo que tenha sentido? Me senti tão culpado quanto se tivesse acedido em escutar um concerto de Tchaikovsky somente porque Heifetz estaria tocando.” (29 de abril de 1955)
Em 23 de agosto de 1954, Julio tinha escrito para Maria
Jonquières, a mulher de Eduardo:
“Aqui em Paris a Cinemateca tem coisas excelentes, mas infelizmente não se pode ver nada porque a sala é horrível, com o piso horizontal, de modo que basta que se sentem duas ou três pessoas com o torso medianamente erguido e daí em diante tudo que se pode ver são uns recortezinhos de filme entre seus pescoços, orelhas e cachos (se houver). De qualquer maneira, assisti ali La Edad de Oro [L’Âge d’Or, Luis Buñuel], que é uma maravilha, e Que viva México! de Eisenstein. Nada mau. E já que estou falando de cinema, não há nada para ver no momento. Na última vez que fomos nos coube Touchez pas au grisbi [Grisbi, Ouro Maldito, Jacques Becker] que é muito bem feito e nada mais. Na Itália não vimos absolutamente nada, primeiro porque estávamos mais pobres que um casal de ratos, e depois porque os italianos não gostam do bom cinema que fazem, e só querem Lollobrigida (e os compreendo) e cowboys e gangsters. I Vitelloni [Os Boas Vidas, Fellini], que vimos em Paris, nos pareceu muito bom.”
O pessoal diz que não se fazem mais filmes tão bons
quanto esses filmes europeus dessa época. Eu diria que fazemos filmes tão bons
quanto, mas são filmes de uma época diferente, com subtextos diferentes. A obra
de caras como Fellini, Buñuel, Kazan, Godard etc. se beneficiou, entre outras
coisas, de um momento em que o cinema de arte pôde criar para si uma elite
pensante que flutuava entre a imprensa geral, a imprensa especializada, a
universidade (as teorias dos professores e as práticas dos estudantes), os
circuitos alternativos (cineclubes, cinematecas).
Nos meus tempos de cineclubista imberbe me passou muitas
vezes pela mão um livro de Henri Agel chamado O cinema tem alma?. O
substrato religioso já me incomodava (eu já era sherlockiano então), mas eu
sentia (acho que corretamente) que a alma em questão não é espiritual, é uma
epifania mental. Não existiria sem
neurônios que a abrigassem. É a alma que brota do centro de nós, o feixe de
emoções gerado por cada filme. A alma é uma estalactite por onde gotejaram Casablanca, Aruanda, Viridiana, Scanner, Shane. A alma é uma resposta sensorial, intelectual e emocional que
esse tipo de cinema fez nascer na gente. O lado bom é que isso é possível. O
lado ruim é que para que isso aconteça é preciso que esses filmes (ou outros
que se lhes assemelhem) sejam vistos. Porque cada tipo de filme agrega um
estímulo e faz nascer uma reação.
De lá para cá, o fenômeno – a relação entre o filme de
arte e a mente coletiva da sociedade em que surge - se transformou muito e
nunca mais será a mesma coisa. Não se trata simplesmente de opor esses filmes
aos “filmes comerciais”. Todos estes filmes acima eram produtos comerciais.
Muitos deram lucro. Um diretor como Buñuel tinha produtores que apostavam nele,
fazia filmes relativamente baratos, e até Oscar já ganhou.
O cinema de arte continua a ser importante para os
cinéfilos, que são muitos. Mas o linguajar teórico da crítica de cinema, deixou
de ter o peso que antes tinha. Existem bons críticos e bons filmes. Mas os
críticos de cinema antes ocupavam o salão nobre. Agora estão noutro andar, num
espaço até confortável, mas é do lado do prédio onde bate o sol no verão e o
vento no inverno, e onde nem bebedouro tem.
A discussão do mercado cinematográfico submerge e dissipa
a discussão do cinema, da alma do cinema, assim como discussões sobre
literatura hoje em dia começam com Borges e com dez minutos estão falando de
contratos, percentagens, faixas de royalties e público-alvo. O que é muito bom.
Escritor brasileiro dos velhos tempos era mais desligadão do que Borges, às
vezes nem cobrava nada, às vezes se sentia ofendido se um editor viesse lhe
pedir para acertar contas financeiras. Eu acho que um cara só deveria ter a
licença para publicar um livro como autor se antes fizesse um estágio numa
editora, mas trabalhando mesmo, pra valer, acompanhando o processo desde a
aceitação do manuscrito até o livro pronto, na mão.
Mas no cinema essa mobilização profissionalizante já faz
parte há muito tempo. O cinema brasileiro sempre foi tipicamente mobilizado e
organizado em torno da profissão. O que pode haver hoje é uma desmobilização da
alma (ou do pensamento crítico) do cinema.
A discussão teórica do cinema tem um bom espaço hoje nas
universidades e nas revistas especializadas (inclusive eletrônicas), mas perdeu
o peso que tinha na grande imprensa. Sua
importância ficou meio espremida por uma forte contraofensiva do “cinema
comercial”. Não os modestos sucessos daquela época, mas os megablasters
blockbusters que estreiam ocupando simultaneamente quatro mil salas nos EUA.
Diz Fellini que quando A Doce Vida
(1960) foi um mega-sucesso de bilheteria no mundo inteiro ele pensou que era o
começo do seu sucesso. “Em vez disso, acabou sendo meu ponto mais alto,” diz
ele. Dali em diante foi só descida.
Um dia, todas as formas de arte deixarão de dar dinheiro
e serão realizadas apenas por quem gosta e por quem cria, e tudo que se fizer
sem um tostão será poesia.
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