(ilustração: Jeff Drew)
É uma espécie de gíria interna entre nós, leitores,
tradutores, críticos, que curtimos a obra do criador de Blade Runner e
do Homem do Castelo Alto. “Momentos
Philip K. Dick” ou philipkdickianos são aqueles momentos de flagrantes quebras
da realidade. Momentos em que a pessoa imagina ter cruzado um portal, uma zona
de transição entre dois universos que coexistem à revelia um do outro, mas sob
certas circunstâncias podem se tocar, podem permitir a passagem de alguém numa
direção ou na outra.
Ou duas narrativas conflitantes, dois grupos de pessoas que,
mesmo misturadas umas às outras, afirmam pertencer a universos diferentes. Cada
qual explica as coisas e os fatos à sua volta com uma narrativa histórica
totalmente coesa em si, mas irredutível à narrativa do outro. As duas se
excluem mutuamente. Alguém ali está num universo a que não pertence. É assim
com as pessoas que um acidente nuclear transporta para dentro do mundo mental
de cada uma delas, sucessivamente, em Eye in the Sky, ou o solteirão
desocupado de Time Out of Joint (1959),
que vive de favor na casa da irmã e do cunhado, e que um belo dia tem uma
revelação maior e mais apocalíptica do que a de Truman Burbank em The Truman
Show, se bem que de natureza semelhante.
Momento Philip K. Dick é quando você chega numa esquina onde
não passa há um mês e vê que a costumeira calçada escura e esquisitona está
agora coberta de mesas sob o resplendor de luzes fluorescentes e vidraças de
bares cheios de uma rapaziada bebedora que parece ter nascido ali. Rupturas
inesperadas do continuum espaçotempo a que a gente estava domesticado.
Nada porém, caracteriza melhor esses momentos do que os
pequenos detalhes que não batem, as coisas insignificantes, adereços de
cenário, props, mas que para nós
exprimem o que o mundo real tem de mais sólido, opaco, desinteressante,
confiabilíssimo. O cara mora naquela casa há anos, entra no banheiro, às
escuras, estende a mão para pegar o cordãozinho de fio pendurado junto à
lâmpada, para acendê-la, aí se detém e pensa: “Peraí! A luz daqui sempre
acendeu com interruptor! Por que eu lembrei tão vividamente que era um cordão
com uma ‘pera’ pendurada?”
Que importa se a Terra está em guerra com a Lua, ou com mais
alguém. Afinal de contas, é mais fácil se acabar o bar da esquina do que um
país inteiro, mas o mundo está cheio de bares com mais longevidade do que
algumas grandes potências ou impérios. O país pode se dissolver no ácido da
ambição alheia, mas o interruptor da luz precisa ser o mesmo, o degrau quebrado
da escada ainda é o terceiro do segundo lance, o meu botão de elevador é o
penúltimo, a bandeira esportiva na parede da sala é aquela e não outra. Esse
mundo é meu. Mas se mexem nesses detalhes tão banais, tão pessoais, aí sim,
nosso senso do real fica prejudicado. Sentimos que “o próprio tecido do
espaçotempo” está se esgarçando pelo forçar da nossa passagem.
Louis Pauwels, co-autor do clássico O Despertar dos Mágicos, onde propõe o conceito de Realismo
Fantástico, exemplificou uma vez (creio que na antiga revista Senhor) como o Fantástico surge muitas
vezes por uma diferença de percepção. Vemos algo impossível e segundos depois
nossa mente corrige nosso olho: “Não, não é isso, é isto aqui”, e às vezes basta mudar um pouco de posição para ver que
sim. Pauwels conta que num dia de nevoeiro cerrado ele caminhava ao ar livre,
numa neblina que só permitia enxergar no raio de um metro ou pouco mais. De
súbito emerge um corvo voando lento, à altura do seu rosto. Ao se deparar com
ele, o corvo solta um grito aterrorizado e desaparece num voo pânico numa
direção qualquer. Pauwels diz que o corvo achou que estava voando na camada
alta que lhe era costumeira, de modo que, do ponto de vista dele, surgiu no ar um
homem caminhando a vinte metros de altura. Daí o terror. “Ele viveu um momento
de Realismo Fantástico”, dizia o autor.
Dick usava isto extensivamente, mas era um assunto tão
importante para ele que ele nunca deixava de imaginar novas circunstâncias num enredo.
Momentos philipkdickianos são o transe zen do personagem de O Homem do Castelo Alto, segurando um
objeto e através dele sendo transportado para um mundo paralelo. É também um
leit-motif recorrente de suas histórias: o instante em que alguém enxerga a si
mesmo (corpo, comportamento, evidência externa) e percebe ser um andróide ou
equivalente. Há um momento clássico em Time
Out of Joint, quando o personagem, na piscina de um clube num dia de sol,
dirige-se para uma barraca de refrigerantes e ao fazer o pedido tem uma espécie
de vertigem, fica tonto, e quando se recompõe vê-se diante de um espaço vazio,
e no chão está pregada uma folha de papel dizendo “Barraca de Refrigerantes”.
Murakami tem uns momentos assim, já leu?
ResponderExcluirAbraços.