quinta-feira, 17 de março de 2016

4078) O crime de Raskólnikov (18.3.2016)



Numa entrevista ao Brasil de Fato, o paraibano Paulo Bezerra, um dos nossos principais tradutores do russo, foi perguntado sobre o melhor livro para iniciar a leitura de Dostoiévski.  Ele respondeu: “Sempre sugiro Crime e Castigo, que tem como personagem central Raskólnikov, um jovem excluído que pensa como jovem, filosofa como jovem, e como jovem tem um amor verdadeiro pela vida, pelo ser humano (especialmente as crianças) e acaba amando Sônia de verdade.”

Ora, Raskólnikov ficou para muita gente como símbolo do assassino frio e cruel que, depois de praticado o crime, começa a se roer de remorsos. (O “castigo” do título é o tormento mental do personagem; o desfecho jurídico se dá apenas nas 20 últimas páginas.) Paulo Bezerra está descrevendo apenas o lado bom de Raskólnikov, um jovem brilhante e arrogante que foi atraído pelo lado negro da Força. Ou seja: pela húbris, pela crença de que é superior aos demais, pela crença de que a satisfação de um desejo seu é mais importante do que a vida de alguém.

A raiz das ações dele está no artigo “A respeito do crime” que Raskólnikov publicara, meses antes, num jornal. Nele, o rapaz explica que há dois tipos de indivíduos, os ordinários e os extraordinários; e que estes últimos têm direitos morais mais amplos do que os primeiros. Isso não significa (diz ele) que Isaac Newton, um extraordinário, tivesse o direito de sair matando ou roubando qualquer um que encontrasse na rua.  Mas Newton, tendo feito descobertas cruciais que trariam um enorme benefício à humanidade, se visse essas descobertas sendo bloqueadas ou impedidas por “um, dez, cem ou mais homens”, teria todo o direito de eliminar esses homens, para levar sua descoberta a toda a humanidade.

Dostoiévski incrusta essa teoria, no romance, através de um artigo publicado pelo personagem. Raskólnikov na verdade não sabia que o artigo (enviado para um jornal que acabou falindo) tinha sido publicado. Só depois do crime alguém o avisa de que essa justificação teórica tinha sido dada a público. Raskólnikov, assim, trai a si mesmo, chama atenção da polícia sobre si mesmo, como se o “demônio da perversidade”, de Edgar Allan Poe, tivesse baixado sobre ele.

Esse mesmo efeito de imprevisto se dá na cena do crime. Ele entra, mata a velha usurária que guardava jóias e dinheiro em casa, mas esquece a porta aberta ao entrar. A irmã da velha entra, vê tudo, e ele a mata. Não importa se o primeiro crime era filosoficamente justificável. No segundo, prevaleceu apenas a necessidade fatal de não deixar testemunhas. O crime se ampliou, como sempre se amplia, numa direção que ele jamais imaginara.



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