É uma rotina antiga, confortável. Como toda rotina, é uma
tentativa de volta a um passado onde tudo correu bem. Quando D. Helena pega
Joãozinho e desce pelo elevador de serviço, ao lusco-fusco do entardecer, todos
os dias, religiosamente, ela, aos 72 anos, está fazendo na verdade uma viagem
no Tempo. Na cabeça dela, descer para o passeio diário de Joãozinho não é
apenas uma ida até a pracinha, é uma visita ao dia de ontem. O que ela espera é
voltar ao dia de ontem, a tudo que ontem ocorreu de confortável, de
reconfortante, o diálogo com as empregadas domésticas e as babás, com os donos
de pets, com o pessoal de short e tênis acenando um boa-noite arquejante nas
subidas e descidas do quarteirão. Ela quer voltar às coisas boas do dia de
ontem, quer que aquilo-bom que já aconteceu venha e aconteça de novo, com alguma variante ou
interferência, tanto faz, desde que o dia-de-ontem-revisitado-hoje seja tão
pacífico, pacato, cordeiro, manso, quanto o dia de ontem original.
Ela vai portanto à área de serviço, onde Joãozinho já a
espera, olhos brilhantes, cheio de expectativa. Recolhe os jornais sujos que
forram o chão, espalha jornais limpos, troca a água. Prende a correntinha à
coleira e Joãozinho já se agita feliz. Em momentos assim ela lembra às vezes o
dia em que o conheceu e o escolheu, no meio de tantos outros, todos tão
abandonadinhos, todos tão carentes. Acompanhada por dois funcionários ela se
debruçou na mureta, ficou olhando aquelas criaturinhas, coitadas, tão sem
ninguém. E viu os olhinhos pretos dele fitos no dela, e exclamou: “Aquele! Vai
ser aquele ali! Olha como ele me olha! Parece até que está me
reconhecendo!” Foram poucos dias de
assinatura de documentos, exames médicos, termos de responsabilidade, e
Joãozinho veio e se instalou no centro da vida dela. Como um pequenino
imperador, alguém que foi feito só para dar amor, dar gratidão.
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