terça-feira, 10 de novembro de 2015

3968) O renascer da barbárie (11.11.2015)



“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”

A cena é de High Rise (1975), o romance em que J. G. Ballard descreve um condomínio de luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionais liberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.

O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade. Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da Noite.

Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas, investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de batalha.

“Sentados em círculo à luz das velas, aqueles neurocirurgiões, catedráticos de universidade e investidores no mercado financeiro demonstravam todo o seu talento para a intriga e a sobrevivência, exercitado por anos de serviço na indústria, no comércio e na vida universitária”. A explosão de barbarismo não é apenas o ressurgimento do troglodita ansioso por “segurança, comida e sexo”.  A civilização, por mais tecnológica e racional que pareça, está a serviço dos instintos básicos do troglodita, que é capaz de brotar como um Hulk furioso todas as vezes que o verniz das convenções sociais e da segurança econômica começa a se descascar. 



3967) Arrastão em Alphaville (10.11.2015)





Este ano marca o 40º. aniversário de lançamento de High Rise (1975), um dos romances mais perturbadores do inglês J. G. Ballard. O que não é pouco, visto se tratar do autor de livros como Crash (filmado por David Cronenberg, com James Spader). Ballard é um crítico cruel da sociedade tecnoburocrática, que ele vê como uma violentação constante da natureza humana.  Os impulsos animais são cobertos com uma capa de civilização consumista, escrava da mecanização, embrutecida mental e emocionalmente através da publicidade, da política, dos códigos de conduta.

High Rise descreve três meses na existência de um enorme condomínio residencial para profissionais de alto nível, na periferia de Londres. Nesse prédio de 40 andares, com 20 poços de elevador, encontram-se todas as instalações indispensáveis à vida civilizada moderna: escolas infantis, bancos, supermercados, piscinas, salões de beleza, quadras de esporte, salões de festa. E aos poucos se forma entre os dois mil moradores uma pirâmide social com os mais ricos nos andares superiores (e elevadores exclusivos) e os mais pobres nos de baixo. Tensões sociais começam a brotar, ao mesmo tempo em que a manutenção falha e os conflitos tornam-se brigas declaradas.

Ballard obtém o efeito do fantástico através da escalada gradual do absurdo no comportamento desses executivos, astros de TV, psicanalistas, publicitários, arquitetos, etc. Eles entram espontaneamente em conflito quando elevadores, lixeiras e outras instalações começam a falhar. Das discussões com insultos verbais passam às agressões físicas, aos espancamentos, aos crimes.  Eletricidade e abastecimento de água entram em colapso, e o prédio se transforma numa imensa lixeira onde clãs de profissionais liberais, empunhando facas e bastões, invadem os apartamentos dos andares rivais, estuprando suas mulheres e saqueando suas despensas.

De dia, os moradores vestem suas roupas elegantes, ligam seus carros de luxo e vão à cidade trabalhar. À noite voltam para o prédio e se dedicam a embriagar-se em orgias ruidosas.  Praticam arrastões ao longo dos corredores, uns subindo rumo ao topo como uma forma de conquista de um poder simbólico, outros descendo aos andares de baixo para dar uma lição aos inferiores.

Delirante e provocador em 1975, o livro, a cada década que passa fica parecendo mais uma profecia terrível sobre o que pode acontecer na vida real, se forem cortados alguns fios muito retesados que mantêm erguida e esticada a lona do circo civilizatório. O vôo acelerado rumo ao futuro high-tech pode nos levar num salto brusco para o tempo das cavernas. Um primata com sede de sangue empunhando uma chave inglesa.