quinta-feira, 5 de novembro de 2015

3964) Caminhos do cinema (6.11.2015)



Muitos anos atrás, Michelangelo Antonioni observava que cinema e televisão estavam ficando cada vez mais parecidos. As salas e telas de cinema ficavam cada vez menores, e as telas da TV (e os correspondentes aparatos sonoros) cada vez maiores. 

Note-se que ele disse isso em 1985, muito antes das nossas TVs digitais de não-sei-quantas polegadas, dos nossos poderosos “home-theatres”, das nossas salinhas especiais para 60 espectadores. Isso era num tempo em que um cinema mediano tinha mil lugares.

A essência do cinema (seja lá o que isto for) muda a cada ano, a cada década. A experiência cinematográfica da minha adolescência não tem nada a ver com a da adolescência dos meus filhos. 

Lumière disse que o cinema era uma invenção sem futuro; Thomas Edison achou que o disco fonográfico iria servir para o estudo de idiomas. Inventores, em geral, estão examinando sua invenção quase tocando-a com a ponta do nariz, e não fazem a menor idéia das consequências que aquilo pode ter.

Meio século atrás, nos EUA, filmes estreavam em circuitos secundários, periféricos, e os produtores iam avaliando a reação do público e direcionando aquele título rumo aos mercadores mais promissores. Hoje, vigora a cultura do “first week-end”: toda uma verba gigantesca, e a logística correspondente, se volta para o fim-de-semana em que o filme será exibido simultaneamente em 3 mil ou 4 mil salas, no país inteiro. 

É um super investimento de risco. Um filme que não vai bem nesses três dias de lançamento raramente se recupera. É tudo ou nada. Em breve inventarão “cinemas sensíveis”, capazes de aferir a resposta emocional do público ao longo da sessão e editar o filme (suprimindo ou acrescentando cenas específicas) durante a própria projeção.

Nos subúrbios do império, a coisa é diferente. Em breve teremos em nossos smartphones não apenas os aplicativos de câmera mas também os de ilha de edição. Será possível filmar e editar o filme no celular, e depois distribuí-lo via WhatsApp, email, inbox do Facebook, o escambau. Curta-metragens serão distribuídos quase como spam, para milhares de telefones ao mesmo tempo.

A cultura do “mash-up”, da reedição e remontagem de material alheio pré-existente, vai se difundir cada vez mais. O uso de webcam e de transmissões ao vivo tipo “Mídia Ninja” vai fornecer um gigantesco copião em crescimento constante e acelerado; por trás dos que filmam virão os que editam, e esse gigantesco acervo de material produzirá filmes coletivos de todo tipo, desde cinema-verdade até colagem-dadaísta. 

"Se for algo já presente na cultura, for tecnicamente possível e não for economicamente inviável, provavelmente irá acontecer."




3963) As mulheres na FC (5.11.2015)




("James Tiptree, Jr.")

Em suas entrevistas, Ursula K. Le Guin diz envergonhar-se de um momento no início da carreira quando, para publicar em revistas de FC quase exclusivamente masculinas, usou o nome “U. K. LeGuin” para que os leitores pensassem que ela era um homem, e lessem seus contos. A FC norte-americana foi sempre um domínio de nerds anglo-saxões; eu mesmo me surpreendo até hoje com o fato de alguém como Isaac Asimov ter feito sucesso sem precisar de pseudônimo.

Ursula não foi a única, coitada, a usar esse joão-sem-braço das iniciais para esconder seu gênero. Lembro de C. L. Moore (1911-1987), autora das aventuras espaciais de Northwest Smith, entre as quais o clássico “Shambleau” (1933). Esposa e parceira de Henry Kuttner, Catherine L. Moore disfarçou sua identidade feminina através de várias colaborações com o marido e pseudônimos como “Lawrence O’Donnell” e “Lewis Padgett”. 

Algo parecido se deu com a carreira de Leigh Brackett (1915-1978), a formidável roteirista de filmes como “Rio Bravo” (1958), “The Long Goodbye” (1973) e “O Império Contra-Ataca” (1980). O prenome unissex certamente a ajudou em sua carreira literária. Rola uma história de que Howard Hawks leu um livro dela e mandou contratá-la para trabalhar no roteiro de “The Big Sleep” (1946, adaptando Raymond Chandler), pensando que se tratava de um homem.

O caso mais notório é o de Alice Sheldon (1915-1987), que usou o pseudônimo de “James Tiptree Jr.” para entrar no mercado de FC e conseguiu manter esse segredo durante dez anos. Durante esse período alguns críticos notaram um certo viés feminino na ideologia de seus contos, que produziram um tremendo impacto entre os leitores, sendo ainda hoje um exemplo de tratamento diferenciado das questões de gênero na FC.  Em 1977 Gardner Dozois publicou uma extensa análise de sua obra, ainda acreditando tratar-se de um homem. Talvez o disfarce tenha sido necessário à autora por questões pessoais: ela foi agente da CIA entre 1952-1955, e depois teve uma carreira acadêmica (era doutora em Psicologia Experimental) que preferia manter à parte de sua atividade literária.

Exemplos como estes (certamente há outros) são uma ilustração a mais das dificuldades que uma mulher encontra ao disputar vaga num mercado onde os homens predominam, não somente como leitores, mas também como editores, ou seja, as pessoas que decidem o que vai ser publicado. Hoje, mais de 40 anos depois, nomes disfarçados dessa forma são desnecessários, mas as recentes polêmicas envolvendo o Prêmio Hugo (onde se debateu ferozmente a legitimidade de uma FC escrita por “minorias”) mostra que a briga continua.