"Clodomiro Ferreira era não apenas meu melhor amigo, mas uma espécie de segundo pai depois que meu pai morreu. Passou meses folheando meus cadernos, me ajudando nas tarefas de casa, até que uma noite ergueu o rosto e disse pra minha mãe: “Ele é bom em matemática. Vamos fazer dele o melhor contabilista do mundo.” Eu não sabia então o que era contabilista, mas a possibilidade de ser o melhor alguma-coisa do mundo já era bem clara para mim aos dez anos. Se me tornei o melhor contabilista do mundo? Não sei, perguntem a Clodomiro, porque virei contabilista dele.
“Quando se mudou pra casa da gente Clodomiro me protegeu, e
me exigiu muito. Tem que agradecer muito a um homem como aquele. Ele não era
bruto como os professores da escola, ensinava até melhor, eu aprendia. Cresci,
me formei, em poucos anos pulei de divisão em divisão até estar comandando as
finanças. Era tanto jeton e tanto pro-labore que me casei com uma ex-namorada
que reencontrei na fila do Banco.
Entramos para o Clube da Naja Ninja. Épocas de muitos estudos; fazíamos
sessões de transcendência ultrabiótica, peregrinação-mental, tele-espeleologia,
reconstituição de vidas futuras. Mesmerizações, e instalação de
psico-aplicativos.
“Rosinha só não era mais feliz porque todo dia tinha que
sair para comprar alguma coisa. Eu pensava em viagens e na minha secretária,
Katiushka. Sabe quando um trabalho anda sozinho? Clodomiro me chamou na sala dele, e parecia que tinha recebido
notícia de morte na estrada. Desabou na cadeira e me perguntou por que eu tinha
feito uma loucura daquela. Perguntei qual, evidentemente. Ele fechou as
cortinas e passou no telão umas imagens de câmara de vigilância. Era eu,
chegando ao prédio de madrugada, esvaziando o cofre, saindo à sorrelfa.
“Naquele instante eu soube que quando alguém se apossa da
mente da gente a gente apaga e não vê o que está fazendo e também não lembra
depois o que fez. Eu não podia negar aquela imagem, era eu, sim, eu mesmo,
naquela noite em que (fui consultar meu celular depois) eu saí para caminhar no
parque e só dei por mim horas depois, em casa, exausto e suado. Com a mesma
camisa xadrez das imagens.