(Anna Karina em Viver a Vida)
“Vida de garota
de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos.
Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada,
ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma
coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico
podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela
tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que
se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não
sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas
coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.
“Cada uma se
vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as
meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não.
Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a
chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a
minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a
última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em
roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.
“E tem os
clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele
tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem
filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está
me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com
roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola,
chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele
já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e
ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os
assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos.
Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas
carinhosa.