quarta-feira, 8 de julho de 2015

3861) Vida de artista (9.7.2015)




(Anna Karina em Viver a Vida)

“Vida de garota de programa não é fácil, vai por mim que já estou nessa há mais de dez anos. Minha mãe deixou de me ver, morreu sem falar comigo. Não era culpa dela, coitada, ela se criou num mundo diferente. No mundo dela, cobrar pra fazer sexo era uma coisa vergonhosa, mas um padre podia cobrar pra batizar uma criança, um médico podia cobrar para salvar a vida de uma pessoa. Até hoje não entendi se ela tinha vergonha era da parte do dinheiro, ou se era da promiscuidade. Será que se eu desse a torto e a direito gratuitamente ela ficaria mais consolada? Não sei, era difícil conversar com ela, não tenho paciência de explicar as minhas coisas pra ninguém, ainda mais naquele clima.

“Cada uma se vira como pode. Sou contra é o que fazem por aí, quadrilha, puteiro, pegar as meninas na marra, obrigar, escravizar, aquele mundo-cão de tráfico. Eu não. Tive sorte de entrar nessa vida por mim mesma, por uma porta que só eu tenho a chave. Só saio com quem eu quero e escolho. A palavra é “agenda”, e tenho a minha, cheia, valendo uma nota. Quando não gosto dum cara aquela vez foi a última. Já entrei em algumas roubadas, mas mulher que casa também entra em roubada, ou não? Todas as roubadas que eu entrei eu consegui sair na boa.

“E tem os clientes-premium, como Dr. Osmundo. Me liga uma vez por mês, às vezes duas. Ele tem uns 70 anos, mas faz academia, está bem conservado. É viúvo, não tem filhos, mora sozinho num apartamentão. Vou lá sempre no fim da tarde, ele está me esperando. Troco de roupa num quarto-de-hóspedes onde tem um armário com roupas no meu número: blusas, bermudas, vestidinho caseiro, lingerie, camisola, chinelo. Nunca vi o quarto dele, a suíte principal. Chego, troco a roupa (e ele já me paga, o envelopezinho dobrado), ficamos por ali, eu preparo um jantar e ele fica vendo TV e tomando um drinque. Conversamos sobre o telejornal, os assuntos do dia, o clima, o trânsito na cidade, a campanha do time dele. Jantamos. Ouvimos música. Às vezes rola o sexo nessa hora. Uma coisa rápida, mas carinhosa.

“A certa altura ele ordena: Vamos dormir. E dormimos juntinhos, sempre no quarto de hóspedes, a cama é ótima, lençol cheiroso, casa bem cuidada. Ficamos conversando sobre a vida, falo minhas coisas, falo da criação da minha filhinha, ele comenta, dá conselhos. Dormimos abraçados. Às vezes o sexo acontece de manhã. Tomamos banho, faço um café, troco de roupa e vou embora. E o cachê... meu Deus. Perguntei por que ele paga tão bem, ele disse: Sai mais barato do que casar. E vou falar pra vocês, acho uma coisa tão tranquila, mas se fosse pra fazer aquilo sete vezes por semana eu ia cobrar muito mais.”


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