Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2015
4012) Resoluções de Ano Novo (1.1.2016)
Inventar uma sopa que seja de carne e de feijão, em faixas alternadas.
Descobrir onde foram parar todas as canetas Bic que perdi em 2015.
Passar um telegrama para “Trupizupe, o Raio da Silibrina, Campina Grande, PB” e ver se chega.
Ensinar os brinquedos da minha filha a se arrumarem sozinhos.
Arranjar um clone para ir no meu lugar aos compromissos.
Pintar “Guernica”.
Comprar um armário que tenha uma porta secreta para o reino de Nárnia ou pelo menos para o cabaré da Nega Filomena.
Juntar lençol, travesseiro, água mineral e livros, e passar cinco semanas num balão.
Gravar um DVD toda vez que for a uma mesa de bar, vender e ficar rico.
Arranjar um cachorro que saiba trazer meus chinelos e acender meu cachimbo.
Tomar remédio para orelha grande.
Comprar um ringue de boxe, botar na praça e cobrar dez reais por round, luvas incluídas.
Remexer a casa toda, pra valer, até achar um objeto que, com sorte, eu vou reconhecer quando encontrar.
Ter mais paciência com os outros.
Pescar, logo na primeira tentativa, um peixe de 2,750 kg.
Guardar um grão de arroz dentro de um diamante.
Instalar na minha sala uma máquina de caldo de cana, um Banco 24 Horas e um telescópio.
Vender meu cadáver, antecipadamente, a uma Faculdade de Medicina.
Pegar o Expresso Transiberiano até a última estação e lá decidir se vale a pena voltar.
Jogar uma partida de xadrez contra o computador e ganhar roubando.
Localizar a cópia completa de “Sob o Céu Nordestino” que se perdeu em Paris após a morte de Walfredo Rodriguez.
Pular toda noite o muro de alguma casa e abrir as gaiolas dos passarinhos.
Atribuir uma letra do alfabeto a vinte e seis objetos aleatórios, e ir anotando as palavras que eles irão formando ao serem vistos no dia a dia.
Cruzar a Paraíba a pé, da Ponta do Seixas à fronteira com o Ceará.
Fazer um filme com uma cantoria em tempo real, sem cortes, em plano sequência, dure quantas horas durar.
Zerar um videogame, não importa qual.
Percorrer de moto todos os Estados brasileiros.
Extrair a raiz quadrada da “Mona Lisa”, plantar o resultado no jardim e fazer um suco com a fruta que nascer.
Montar num tubarão.
Traduzir um livro meu para o inglês.
Aprender a dançar tango para o caso de um dia alguém me chamar para ser ator num filme argentino.
Tatuar no antebraço esquerdo que meu sangue é A-positivo e que sou alérgico a AAS.
Publicar um poema de Adão Ventura com meu nome e ver quantos anos demora até alguém perceber.
Assistir um filme no Cine Capitólio e outro no Cine Babilônia.
Montar uma tapiocaria vendendo tapiocas em todos os sabores com que se vendem pizzas.
Fazer o check-up que não fiz de novo no ano que passou.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
4011) Livros do ano 2 (31.12.2015)
Os dois últimos livros que li em 2015 não poderiam parecer mais diferentes um do outro, mas têm um inquietante detalhe em comum. O penúltimo foi a biografia Trotsky (1986) escrita por Paulo Leminski, e incluída no volume Vida (Ed. Sulina, 1990, ao lado das vidas de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus Cristo). O outro, que estou prefaciando para uma reedição da Alfaguara para este ano, foi A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells. O que os dois têm em comum? O terror da fome.
Leminski evoca, com traços rápidos e vigorosos, a
devastação produzida na Rússia pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil que se
seguiu à Revolução de 1917. Além dos milhões mortos pela guerra, milhões
morreram de inanição nas estepes da futura URSS. E Wells descreve o terrível
mês subsequente ao desembarque devastador dos marcianos na Inglaterra. O terror
de não ter o que comer, e as coisas que as pessoas roem com sofreguidão para
não morrerem.
Quando a civilização colapsa, todo mundo continua
precisando comer todo dia. Seguem-se saques, arrombamentos, assaltos, a maioria
feita por pessoas que jamais colheriam sem autorização uma goiaba na goiabeira
do vizinho. Mas a fome transforma todo mundo, primeiro em bandidos, depois em
animais. Tal como acontece em Ensaio sobre a Cegueira (1995, lido em maio) de
José Saramago, onde a fome é agravada pela cegueira. Saramago lembra Wells
inclusive na ausência de nomes próprios nos seus personagens designados por
detalhes (o médico, o clérigo, etc). E na lucidez sobre as coisas de que o ser
humano é capaz.
Literatura fantástica? Não tanto quanto a terrível fome
que devastou a Itália durante a campanha da FEB na II Guerra, descrita por
Boris Schnaiderman em Guerra em Surdina (1964; lido em agosto). A fome dos pracinhas
ilhados na neve, mas principalmente a fome da população local, e o modo
discreto, tocante, como as jovens italianas se entregavam em troca de algumas
latas de conservas, diante da família que fazia que não estava vendo. Uma área
cinzenta separando sexo livre, estupro e prostituição, descrita de modo
compassivo e honesto pelo autor.
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
4010) Outros adeuses 2015 (30.12.2015)
Durante
décadas de convivência minha com Elba Ramalho, o seu irmão Erácliton era sempre
uma das pessoas mais animadas que havia em torno. Tocador de violão, puxador
daquelas músicas tiradas “do fundo do baú”, fossem sambas ou forrós. Nas mesas
do Refavela, o bar de Bel (em Campina), ou no terraço do apartamento da Lagoa,
no Rio, ele era sempre uma risada de alto astral. O imprevisto o colheu ao
atravessar uma rua em João Pessoa. Foi a primeira vez que nos fez ficar
tristes.
Anabela
fugiu jovem de Angola, quando a guerra civil passou o rodo no país. Veio parar
no Brasil, morou na Paraíba, radicou-se em Mossoró. Viúva, sua casa reunia quem
fazia teatro, literatura, música. Era magra, espigada, sempre com um uísque na
mão e um cigarro nos dedos; ria muito, não tinha papas na língua, e com sotaque
lusitano carregado não dava bola para a opinião do povo. Nosso último encontro
foi numa farra das dez da noite às oito da manhã. Uma cirurgia problemática a levou
do nosso mundo, mas não daqui.
A vida é cheia de simetrias. Meu pai era do Recife e veio ter os filhos, e criá-los, em Campina Grande. Seu Geraldo era de Campina e foi ter os seus no Recife. Era comunista da velha guarda (daí ter um filho chamado Lenine), o que significa aquela velha guarda humanista, amante das letras e das artes, para a qual o indivíduo tem uma importância tão grande quanto o coletivo. Grande papo sobre qualquer assunto, com histórias do arco-da-velha sobre uma Campina antiga onde ele e meu pai começaram uma amizade que se prolongo entre mim e seu filho.
O
fandom da ficção científica é um feudo de batalhas e disputas constantes, onde
as preferências literárias e cinematográficas são defendidas como se fossem
outras tantas pátrias ameaçadas pelas hordas bárbaras. Pierluigi Piazzi (ex-radialista,
ex-professor de cursinho, fã de “Star Trek”) era exuberante, falador, eloquente
na defesa dos autores que admirava e na gozação sobre os que não curtia. Deixou
aos fãs de FC (e a dezenas de milhares de ex-alunos paulistanos) a editora
Aleph, e mil histórias impagáveis.
4009) A ditadura do normal (29.12.2015)
O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”. O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.
Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.
Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do
Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi
substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço.
Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como
metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles
personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue
recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como
vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as
unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à
guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por
tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter
basicamente à venda. O totalitarismo
exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde
Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston
Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular
as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como
esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a
atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury
“O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é
estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está
sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da
mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
4008) Adeuses 2015 (27.12.2015)
Amílcar era cineasta e corintiano. Ria de incredulidade quando eu falava dos times por que torço: Treze, Flamengo, Sport, Atlético Mineiro... Para ele, time era paixão, e paixão não pode haver duas. Entre outras coisas em comum, tínhamos o cinema de Roberto Santos, seu mestre. Um dia ele largou São Paulo, perdemos o contato até por Facebook. Só voltei a ter notícias dele quando a doença estava em estágio avançado. Um amigo de sorriso calmo e luminoso, com que compartilhei menos tempo do que pude.
Quando
os shows de Elba Ramalho estrondavam no Canecão, com três mil pessoas de pé
pulando ao som de ”Caldeirão dos Mitos”, a sanfona estava a cargo daquele
paraíba moreno e magrinho que anos atrás tinha sido o esteio melódico e
harmônico da banda de Jackson do Pandeiro. Severo ficava às vezes meio
deslocado entre aquele grupo de cariocas, meio desconfortável com os figurinos
“modernos” que era obrigado a vestir, e nas longas horas de camarim se
aproximava de mim para trocar histórias da “Paraíba réa”.
Foram
poucos meus encontros com Pipol, cujo nome não sei até hoje, figura querida na
contracultura digital paulistana. Foi um dos criadores do websaite Cronópios, onde
republicava meus artigos do JPB. Gravou para a web minha palestra sobre Edgar
Allan Poe, até hoje um dos meus vídeos mais assistidos. Eu o saudava: “Power to
the Pípol!”. Na competitiva São Paulo, ele se destacava pela precisão da ação e
pelo alto astral do sorriso, sempre com um bonezinho e um par de óculos jonleno
que me lembravam eu mesmo aos 25 anos.
Quando
meus pais chegaram a Campina Grande, muito cedo ficaram amigos dos irmãos Félix
e Mário Araújo. O primeiro foi morto quando vereador, num crime célebre em 1953.
“Seu” Mário era uma espécie de tio a meia distância, morando perto do Ponto 100
Réis. Seus filhos eram quase que meus primos, ele nos dava a todos o mesmo
carinho, os mesmos conselhos bem humorados, com seu riso baixo, discreto. Num
ambiente carregado como o da política campinense, era referência de elegância,
bom senso e bom caráter. Qualidades abstratas que fazem falta, mas nem tanto
quando o ser humano concreto.
domingo, 27 de dezembro de 2015
4007) Livros do ano 1 (26.12.2015)
Esta é a época em que os críticos fazem listas dos melhores livros do ano, mas os críticos parecem ler somente o que foi lançado agora. Minhas leituras são aleatórias. Tenho muito mais interesse pela literatura de cem anos atrás do que pela atual. Não que uma seja melhor do que a outra. É mera veneta, cacoete mental; é como achar que qualquer rua de Istambul ou Toronto deve ser mais interessante do que a rua aqui do lado. Dito isto, vamos em frente.
Terminei este ano de ler a coletânea Ghost Stories of
Henry James. James é um desses casos meio raros de autores de estilo refinado
que escreviam caudalosamente. Como produziu esse sujeito! Seus contos de fantasmas
são quase todos psicológicos, de clima, ambientação, ilustrações perfeitas para
a teoria todoroviana da oscilação entre explicação real e sobrenatural. Vão do
gótico puro de “The Romance of Certain Old Clothes” (1868) até o desdobramento
físico em “The private life” (1892). Todos são muito bons. Há uma certa falta
de surpresa nos desfechos, mas a literatura de James reside mais nos detalhes
do que na estrutura, que é clássica, previsível.
Li este ano O Mago (2008) de Fernando Morais, biografia
de Paulo Coelho, desmerecida por alguns por ter sido uma biografia “chapa
branca” (autorizada). Biografias autorizadas podem ser boas, sim, menos para
quem só pensa em escândalo. Morais traça com precisão o histórico do Mago, e
mostra, curiosamente, que desde a adolescência ele sonhava em ser o escritor
mais bem sucedido do mundo. Eu achava que ele era um roqueiro que virou
best-seller meio por acaso. Não era. Foi um projeto profissional que, com
desvios inevitáveis pelo temperamento malucão do personagem, e também da época,
sofreu mil contratempos, mas se realizou.
Também este ano terminei finalmente de ler The Crying of
Lot 49 (1966), o mais curto dos romances de Thomas Pynchon, mas espantosamente
concentrado. A prosa de Pynchon é pesadíssima de alusões culturais, mas em seus
momentos mais leves é uma delícia de barroquismo pop. Este livro é um clássico
das teorias da conspiração romanescas (ou seja, as que não se propõem como
verdadeiras), sobre uma organização secreta de correios infiltrada nos EUA.
4006) Natal 2015 (25.12.2015)
(ilustração: Remedios Varo)
... e a gente arranca ao Tempo mais um ano
como quem despe as roupas da Verdade
e a deixa reluzindo, à claridade
que ela mesma produz, ao ver-se exposta.
A Verdade é mulher, e mulher gosta
de revelar-se aos poucos, mas inteira,
e a vida só é bela e verdadeira
quando exibe seu corpo em sombra e luz,
claro-escuro no ar, que nos seduz
e nos faz mergulhar no seu mistério.
Mas os tempos de hoje... Fala sério!
Será tudo um teatro dadaísta?
E o que terá fumado o roteirista
que escreveu o Brasil de atualmente?
Basta olhar para a comissão de frente
que encabeça a terrível procissão
nas praças e avenidas da nação,
pesadelo hi-tech e surreal.
E quem sabe onde está oculto o Mal
no coração humano? O Sombra sabe.
É Moby Dick o monstro, ou é Ahab?
A Natureza, ou o engenho humano?
Quem tem poder, ao sol de um fim de ano
de erguer a mão e despejar a chuva?
Não existe. O que existe é a saúva
de terno e de gravata, anel no dedo,
que todo dia acorda muito cedo
e rói sem pena o que possível for.
Perdoai (e evitai) o roedor:
está sendo roído, ele também.
Eu só sei que o Natal um dia vem.
Impressionante como ele não falta.
E todo ano a humanidade incauta
ouve a sineta que a faz salivar.
A igreja do vender e do comprar
reza missa após missa o mês inteiro.
Quem tem mais sorte vê raiar janeiro
e recomeça o ciclo, o carrossel,
outro tijolo ao muro de Babel,
outra volta cruel do parafuso.
E a cada livro que eu em vão produzo
feito um mudo pregando no deserto
em linguagem de Libras, fico certo
de que mais vale a dor de estar fazendo
do que a não-dor do não fazer, e entendo
que a resposta virá. Mas não pra mim.
Se assim for, maravilha; e sendo assim
“taca-le pau”, poeta, faz sextilhas.
Imperfeitas ou não, são tuas filhas,
serão um dia o que restou de ti.
Quando meu pai erguia um Bacardi
inebriava o mundo num sorriso,
mandava um chiste, um verso, um improviso...
e esse momento reverbera ainda.
Se o Natal é um dia em que se brinda
e transformam-se em vinho águas passadas,
então que venham renas, rabanadas,
pacumês, espumantes, Concha y Toro!
Gasta logo, se o Tempo é teu tesouro,
a moeda de ouro deste dia.
Que o mundo fosse outro, eu bem queria,
mas aceito este fato consumado,
de vê-lo assim, desnudo, desvendado
pelo excesso de ser que é sua essência.
Se ele um dia notar a minha ausência,
que faça bom proveito destes versos!
Estarão os meus átomos dispersos
sem notar que outra vez bimbalham sinos
e que nascem milhões de outros meninos
neste ciclo-espiral do circo humano...
neste ciclo-espiral do circo humano...
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
4005) Os dois filhos (24.12.2015)
Uma família humilde tinha dois filhos, um de quinze e outro de doze anos. O mais velho nasceu de um parto difícil, sobreviveu com sequelas. Precisava de fisioterapias, etc., e se desenvolveu muito lentamente. Passava o dia na cama, falava com dificuldade, e nos fins de semana a família o levava para tomar sol no parque municipal numa cadeira de rodas. Já o garoto mais novo era muito esperto, estudioso, um menino bom que ajudava a cuidar do irmão mais velho. Os dois aliás se gostavam muito, eram unidos, dentro das limitações de linguagem do primeiro.
É quando o pai ganha um dinheiro numa loteria qualquer. Nada
que o tornasse milionário; mas de repente ele tinha em mãos muito mais grana do
que seria capaz de imaginar. Parentes se reaproximaram do casal, dispostos a
ajudar num momento tão delicado. Passada a euforia inicial, todos, em volta da
mesa, com lápis e papel, faziam contas e listavam as diferentes maneiras
possíveis de aplicar aquela pequena fortuna caída do céu.
Anota daqui, risca dali, ficaram com apenas dois projetos
em mãos. Fazendo as contas e as projeções futuras, descobriram que a grana
recém-chegada lhes dava a chance de optar entre duas utilizações diferentes.
Havia nos EUA um hospital especializado no tipo de problema do garoto mais
velho. Com dois anos de tratamento, grande parte dos problemas dele poderiam
ser revertidos: ele conseguiria andar, alimentar-se sozinho, falar de maneira
inteligível, quem sabe até ser matriculado numa escola especial.
A outra opção era mandar para um curso de dois anos na
Europa o garoto mais novo. Estudioso e bom em matemática, ele ganhava todas as
competições desse tipo, era saudado como “futuro gênio” pelos professores, e os
pais já colecionavam um álbum de matérias de jornal (e DVDs com reportagens de
TV) sobre “o Einstein de Vila Junqueira”, como o menino era chamado no bairro
onde sempre residiram.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
4004) Linha de chamar verso (23.12.2015)
(Nei Lopes)
No trabalho da gente, seja ele qual for, a gente cria às
vezes um dicionário pessoal para indicar coisas sem nome definido. Na poesia de
estrofes rimadas e metrificadas, eu sempre usei, por conta própria, dois
conceitos relativos ao improviso com batuque. Tinha o “refrão de chamar verso”
e a “linha de chamar verso”.
O refrão de chamar verso é aquele velho esquema de canto com
palmas: “Chora bananeira / bananeira chora / chora bananeira / meu amor já foi
embora.” Aí alguém dá um passo pro meio da roda, ou (se numa mesa) ergue o
braço pedindo a vez, e manda uma quadrinha improvisada, ao fim da qual todos voltam
a cantar juntos: “Chora bananeira... (etc)”.
Já a “linha de chamar verso” é como se fosse um mote de uma
linha só, mas ao invés de aparecer no fim da estrofe aparece no começo, e o
cantor improvisa o restante. A linha-de-chamar-verso mais antiga que conheço é
“Lá em cima daquela serra...” Quantos
milhares de quadrinhas não já terão sido escritas ou improvisadas pegando a
partir de um início tão promissor?
Em Partido Alto – Samba de Bamba (Pallas, 2005) de Nei
Lopes há uma porção de termos para essas linhas. À pág. 107, Nei Lopes explica
que muitas das quadras cantadas em partidos altos, seja de memória ou de
improviso, se desenvolvem “a partir de um pé-de-cantiga, isto é, de um verso
inicial padronizado, bastante conhecido.”
À pág. 139, ele amplia essa definição: “Grande parte das trovas, quadras
e outros tipos de estrofes da poesia popular se inicia por versos padronizados
através dos quais se propõe e estabelece o tema a ser trovado e cantado. A
esses versos-matrizes costuma-se chamar ‘trampolins’, ‘muletas’ (...),
‘pés-de-cantigas’, no dizer de Joaquim Ribeiro (...), ou ‘versos feitos’,
segundo Mário de Andrade.” Ou seja, é o mesmo princípio do mote na Cantoria
nordestina – só que vem no começo, e não no fim.
Nei Lopes lista alguns desses começos, e mostra com que
frequência eles iniciam estrofes em nossa música popular: “Vou-me embora, vou-me
embora”, “Minha mãe me deu dinheiro” (no Nordeste usa-se tipo assim: “Minha mãe
me dê dinheiro / preu comprar um cinturão / o punhal e a cartucheira / pra
brigar mais Lampião”), “Alecrim na beira d’água”, “No tempo em que eu cantava”,
“Dizem que cachaça mata”, “Minha mãe sempre me disse”... Eu lembraria outros
como “Quando eu vim da minha terra” (resgatado por Paulo Vanzolini em sua
“Capoeira do Arnaldo”), “Vou falar pra todo mundo”, etc.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
4003) Como odiar Lovecraft (22.12.2015)
(ilustração: Selin Arisoy)
H. P. Lovecraft foi um dos escritores mais influentes da
literatura de horror, que ele misturou com ficção científica para produzir uma
espécie de “horror cósmico”. Ele apregoava ser “um homem do século 18 perdido
no insuportável século 20”. Criado com certo luxo até os 14 anos, depois teve
que se adaptar a uma vida de penúria financeira, doenças na família, um casamento
fugaz, daqueles que nunca poderiam ter dado certo. Era em essência um solteirão
calado, cheio de venetas, que gostava de dar longos passeios e de ler
alfarrábios antigos. E escrevia longas cartas para colegas escritores que, em
muitos casos, nunca veio a conhecer.
A cabeça de Lovecraft, esculpida por Gahan Wilson (famoso
pelos seus cartuns de humor negro) tornou-se a materialização do World Fantasy
Award, um dos principais troféus anuais da literatura fantástica. A lista de
quem já ganhou o troféu é enorme, e inclui autores como Fritz Leiber, Gene
Wolfe, Tim Powers, Peter Straub e Jack Vance.
Acontece que Lovecraft tinha uma visão muito peculiar a
respeito de outras raças, como os negros e os judeus. Seu aristocratismo
pomposo exigia esse tipo de esnobismo, e ele parece ter acreditado, como tantos
intelectuais brasileiros da mesma época, que a mistura de raças empobreceria ambas.
Vai daí que escritores atuais, informados das idéias racistas de HPL,
questionaram o uso de sua imagem no troféu. Como se dissessem: “Esse cara é o
modelo que devemos seguir?”.
A substituição da estátua foi anunciada na entrega dos
prêmios de 2015. Uma reação imediata foi a de S. T. Joshi, biógrafo de
Lovecraft, que devolveu os troféus que já tinha ganho e disse ser tudo aquilo
“uma concessão covarde ao pior tipo de atitude politicamente correta”. Eu mesmo
fiquei pensando: Quem tem razão? Quem acha que HPL por ser grande escritor já
está anistiado? Ou quem acha que não, que preconceitos racistas devem ser
sempre denunciados e punidos, mesmo que postumamente?
sábado, 19 de dezembro de 2015
4002) Seis lendas urbanas (20.12.2015)
(ilustração: Eleonore Weil)
O Homem Sem Cabeça de Badrajupur, na Índia, é uma entidade
misteriosa que aparece nas festas e peregrinações populares. É visto seguindo
os cortejos, movimentando-se como uma pessoa normal, mas sua cabeça é cortada à
altura do pescoço. As pessoas que o tocam são percorridas por uma espécie de
choque elétrico suave e têm a sensação de que sua própria cabeça está começando
a desaparecer. Ele se aproveita disto para dançar numa clareira da multidão.
Os Ladrões da Lua. Num povoado do Chile é hábito das famílias
sentarem na rua nas noites de lua cheia e inventarem histórias que se passam
nessa lua sobre suas cabeças. Inventaram a história de um povoado na lua, assaltado
por bandidos perigosos. Inventavam cada ladrão mais perigoso do que o outro.
Preocupavam-se tanto com as famílias da lua que deixavam suas portas e janelas
mal trancadas, para bom proveito dos meliantes de cá.
O Tonel Rolante do Sêrro (MG). Em noites muito silenciosas
ouve-se pelas ruas da cidade o ruído de um tonel de metal, oco, sendo empurrado
por cima das pedras do calçamento, às vezes descendo uma ladeira com um clangor
infernal, às vezes escalando os paralelepípedos devagar e sempre, como que
empurrado por mãos vigorosas. Abrem-se as janelas e ninguém vê nada. Fantasma
auditivo.
O Brinquedo do Miúdo é um episódio misterioso que se dá em
Coimbra e no Algarve. Um miúdo (um menino) aborda um transeunte numa rua escura
e pede que devolva o seu brinquedo, que (segundo ele) a pessoa traz no bolso.
Em todos os relatos a pessoa mete a mão no bolso e de fato tira de lá o objeto
que o menino lhe pedira: uma gaita, um par de óculos, um confeito, um versinho manuscrito,
uma bola de gude, um isqueiro, um soco-inglês... E todas as vezes a criança
recebe, agradece e some para sempre.
O Carro Que Não Pega. Uma lenda frequente na Ucrânia, na
Rússia, na Letônia, e, curiosamente, também no Estado de Sergipe. Um carro
fantasma acorda de repente uma vizinhança inteira, com aquele ruído insano,
engasgado, de uma ignição que não pega de jeito nenhum, sendo coagida por uma
pessoa que não vai desistir com facilidade. Um engasgo torturante, que até
parece vai redundar numa explosão, mas não, fica só taxiando. Para quem dirige,
é o mesmo que injetar querosene na veia.
4001) A roda gigante (19.12.2015)
Ele estava passando uns dias naquele lugar, a serviço. Era uma cidade pequena mas tinha cinema, tinha um teatro com cartazes anunciando show musicais, e tinha um parque de diversões. Chamar aquilo disso era força de expressão. Tudo bastante precário. Brinquedos enormes, mas muito velhos e desgastados. Na segunda noite ele entrou, pensando somente em fazer algumas fotos com o celular, porque havia uns cartazes e uns ângulos interessantes. Comprou ingresso aqui, cerveja ali, puxou conversa. Na bilheteria viu a morena, a quem chamou brincando de Luluza, ao recolher o troco, e ouviu dela uma resposta que o fez dar uma gargalhada e olhar naqueles olhos pela primeira vez.
Voltou na noite seguinte (o trabalho o ocupava das dez até o
anoitecer) e retomou o papo com ela numa brecha entre o fim de uma fila e o
começo da próxima. Perguntou: “Parquezinho esquisito, hem? Por que não botam luzes coloridas, como todo
mundo?” Ela de olhos baixos, arrumando notas por ordem de valor: “O dono gosta
assim. Tudo preto e branco.” Ele falou:
“Que coisa, hem. E você? Gosta mais de preto e branco ou de colorido?” Para ele era só um puxa-conversa pra não
deixar a peteca cair, manter o timing da simpatia. Teria pegado mal para
ela? Que disse: “Eu danço conforme a
música, amorzinho,”. Plantou as mãos na bancada, ergueu os olhos para ele, e
abriu um sorriso dentifrício. “Eu sou a esposa dele, e danço a música que ele
tocar.” “Oooops,” disse ele, gargalhando, “não se ofenda. Não estou achando
feio. Torna-se até uma coisa bastante cult.”
Foi quando ele viu o homem descer da roda gigante, e entrar
cambaleando num pequeno chalé de madeira ali perto, passando a menos de cinco
metros da bilheteria onde estavam. “Lá vai ele,” disse ela. E depois: “Deixou
de beber. Agora ele dá uma volta na roda, desce tonto, e escreve.” “Escreve o
que?” “Romance. Vai dizer que nunca
ouviu falar de...” Ele anotou o nome, soletradamente. “E como deixaram ele
fazer a cabana dele aqui dentro?”, perguntou, e ela: “Ele é o dono do parque.
Ninguém vive de literatura neste país. Quando sobrevive, pode pegar uma cerva e
comemorar.” Ele entendeu “uma serva”, gargalhou, fez sinal de positivo, legal.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
4000) Problemas de escritor (18.12.2015)
Carlos Drummond de Andrade publicou em 1967, pela Editora do Autor (Rio), o curioso livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema. Durante anos o poeta arquivou tudo que saía sobre seu poeminha da pedra, fosse a que pretexto fosse, e foi separando tudo em pastas. Os títulos de alguns capítulos dão uma idéia da variedade do material: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Popularidade, mesmo negativa”, “Os amigos da pedra”, “E os inimigos”, etc. Pena que seja meio difícil de obter, e não sei se foi reeditado.
Poucos
poemas daquele século provocaram reações tão esperneantes. A pedra de Drummond
tirou do sério muitos críticos. Deixaram-se perturbar demais pelo que o próprio
autor considerava um poema interessante mas menor, quase uma brincadeira, por
que estaria produzindo tanta raiva?
O
momento auto-ajuda é você perceber que nem sempre a sua obra que vai ter
impacto é sua epopéia de dois mil versos ou sua trilogia que engloba seis
gêneros. Às vezes basta um pequeno escândalo estético desse tipo para fazer uma
fama. Drummond impressiona pelo modo aparentemente tranquilo e equilibrado como
descreve, transcreve e comenta o que disseram a seu respeito. Ele tem o ar
kafkeano de um entomólogo examinando a si mesmo. Nesse livro ele republica
também o poema em prosa “O Enigma” (Correio da Manhã, 1947; depois em “Novos
poemas”, 1946-7), uma clara resposta ao poema da pedra, invertendo apenas seu
ponto de vista narrativo.
O
bombardeio massacrante dos articulistas que não gostaram da “pedra” é atenuado
em parte pelos que a traduziram, a adaptaram, ou lhe deram variadas utilidades
a título de homenagem. O poema mais famoso de Drummond virou um meme do seu
tempo. Um meme cuja viralidade durou várias décadas e ainda não se esgotou de
todo, porque hoje ou amanhã um cartunista do Norte ou um diretor de teatro do
Sul vai lançar mão dele para produzir um efeito qualquer.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
3999) Os estrangeiros (17.12.2015)
Entre 1942 e 1947, Boucher manteve uma coluna periódica no San Francisco Chronicle. Em um artigo
de 5 de maio de 1946, ele comenta duas traduções recentes para o inglês: O
Homem que Via o Trem Passar de Georges Simenon e O Estrangeiro de Albert
Camus (ambos traduzidos por Stuart Gilbert). Diz ele:
“Trata-se em essência da mesma história: a de um homem que
não consegue aceitar em seu íntimo as convenções usuais da sociedade, mas
apenas deixa-se levar por elas até que um assassinato, cometido quase por
acaso, lhe dá a chance de explodir a moldura social”. Boucher descreve Camus como “um jovem romancista
com respeitável estatura filosófica e estética, que é uma das duas
figuras-chave do curioso movimento contemporâneo francês do Existencialismo”. O
ano era 1946 – ainda não era o Camus do Prêmio Nobel; era apenas mais um jovem
escritor botando as unhas de fora.
Boucher lembra: “Camus se dedica à criação de um personagem
extraordinário, um caixa de banco na Argélia cujas reações (ou ausência delas)
apenas não são aquelas que a sociedade exige. Comentaristas do Existencialismo
parecem dar a esse personagem um valor filosófico para além da literatura; mas
ao nível do romance propriamente dito, é um retrato espantosamente bem
executado de um indiferentista em estado puro.”
De fato, o jeitão à deriva do “estrangeiro” Meursault está
somente um degrau acima de um indiferentista total, no caso o escrivão
Bartleby, de Melville, que reagia a todos os pedidos para que fizesse não
importa o que, dizendo: “Eu preferiria não fazer isto”. Meursault é meio que
uma versão pop disso, porque tem namorada, toma cerveja com amigos, se preocupa
com isso e com aquilo... Mas é como se a vida dele fosse ligeiramente irreal,
sem propósito.
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
3998) "Retrato do Artista Quando Jovem Cão" (16.12.2015)
(Dylan Thomas, jovem)
Quando um cara faz um livro de memórias espera-se que ele
comece do começo, passe pelo meio e acabe no fim. Claro que há talentos mais
ambiciosos que querem ir além disto, com resultados variados. As memórias de
Bob Dylan recolhidas em Crônicas, vol. 1 (2004) começam com a chegada dele em
Nova York, fazem um ótimo retrato dos músicos boêmios do Greenwich Village de
onde ele se catapultou para o sucesso, e depois começam a ricochetear para a
frente e para trás, sem cronologia aparente, apenas uma coisa meio por
associação de idéias. O que não é nada mau, se as idéias em si valerem a pena.
Ele não diz um “A” sobre a criação dos seus grandes discos. Conta apenas os bastidores
de estúdio de Oh, Mercy, álbum talvez imerecedor de tal prioridade.
Por que falei em Dylan? Acho que porque o Dylan que me
lembrou esse aí foi o poeta Dylan Thomas com seu Portrait of the Artist as a
Young Dog (1940). O título já é uma gréia com o Portrait of the Artist as a
Young Man (1916) de Joyce, onde aparece o famoso personagem Stephen Dedalus.
Um crítico observa que apesar disso é com Dublinenses (1914), do mesmo Joyce,
que o Portrait de Thomas se assemelha. Tendo em mente, claro, que estamos
comparando um galês e um irlandês.
São dez histórias curtas que vão desde retratos da vida em
família de um Thomas bem garoto até um Thomas jovem-adulto, trabalhando em
redação, fumando, indo aos bordéis. Algumas histórias são narradas por ele na
primeira pessoa, outras vezes é na terceira pessoa, referindo-se apenas a “o
rapaz”, “o jovem”. Em momento algum
pode-se pensar que isto é uma autobiografia no sentido acadêmico. É uma
reescritura livre de memórias compartilhadas mas não unânimes.
Quando Bob Dylan lançou em livro suas crônicas, publiquei
uma intitulada “Bob Dylan sabe escrever”, porque achei o livro muito bem
escrito, no sentido de que parecia escrito pela mesma pessoa que fez aquelas
letras, deu aquelas entrevistas, etc.
Bem, Dylan Thomas também sabe, e os seus contos são até fáceis de ler,
comparados aos seus poemas densos, alusivos, cheios de imagens surpreendentes.
Mas o olho que capta aqueles parágrafos é o mesmo olho do poema.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
3997) Noel Rosa (15.12.2015)
(Noel Rosa, por Thiago Bertoni)
Pois é, Noel Rosa faz 105 anos. Noel e Adoniran Barbosa
(ambos de 1910) falavam de um tipo de gente muito específico, o sujeito de
certo nível que pelas contingências da vida está precisando dormir num banco de
praça, porque foi desalojado do muquifo que habitava de graça. É um momento zen
da vida humana. A vida é uma coisa diferente para quem só tinha o direito de se
concentrar em duas coisas: o que eu vou comer hoje, e onde vou dormir a próxima
noite.
“Eu, Mato Grosso e o Joca” são personagens de um que
poderiam estar disputando o banco de praça de “O orvalho vem caindo”. Eu
entendia que umas daquelas histórias se passavam em São Paulo, outras no Rio.
Mas eu achava que conhecia os ambientes, de tanto ver as chanchadas no cinema.
Tinha uma vaga idéia dos principais pontos de referência turística no Rio. Eu
era um menino. Então vi numa revista Brasil Enigmista um artigo de alguém
destacando e comentando versos de Noel Rosa. Reconheci algumas canções que
volta e meia eram ouvidas no rádio. Tudo aquilo era dele.
Noel tem virtudes variadas como letrista, mas eu queria
bater na tecla de sempre, a da letra que conta uma historinha. Ou letras que
são praticamente um cartum em animação, como “Conversa de Botequim”, “Com que
roupa”, “Três apitos”... São gifs animados em várias partes. Não é uma história
com começo, meio e fim; é uma sucessão de flashes com parcial passagem de
tempo, mais em uns, menos em outros. Flashes poéticos que às vezes contam mais
sobre um pedaço da história humana do que um livro inteiro.
O freguês do botequim de Noel é como o Riobaldo de Rosa, uma
voz incessante, reiterante, minudente e disposta a refletir em voz alta cada
luz que lhe mandar a vida. Ele fala com o garçom como o jagunço falava com “o
doutor”. Aliás, essa letra parece mais com o monólogo rosiano Meu tio, o
Iauaretê, com Cacá Carvalho. Uma peça com apenas dois atores, um só falando, o
outro só escutando, quase sem se mexer. No fim, um deles mata o outro. (No
botequim o garçom não fala, mas escapa.)
sábado, 12 de dezembro de 2015
3996) O eu lírico (13.12.2015)
(ilustração: Mana Neyestani)
Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as
pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o
que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a
tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer.
Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras
que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de
jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante
de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.
Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de
programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais
paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas
escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes,
um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as
runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento
próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são
mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.
Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os
supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que
atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por
um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de
idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um
editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada
em cartório.
As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não
gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o
que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de
teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas,
pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda
mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.