O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”. O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.
Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.
Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do
Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi
substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço.
Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como
metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles
personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue
recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como
vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as
unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à
guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por
tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter
basicamente à venda. O totalitarismo
exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde
Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston
Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular
as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como
esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a
atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury
“O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é
estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está
sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da
mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.
Gosto do jeito como esse cara escreve, é um craque.Queria ter um amigo assim.
ResponderExcluirGosto do jeito como esse cara escreve, é um craque.Queria ter um amigo assim.
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