quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

4012) Resoluções de Ano Novo (1.1.2016)



Inventar uma sopa que seja de carne e de feijão, em faixas alternadas. 

Descobrir onde foram parar todas as canetas Bic que perdi em 2015. 

Passar um telegrama para “Trupizupe, o Raio da Silibrina, Campina Grande, PB” e ver se chega. 

Ensinar os brinquedos da minha filha a se arrumarem sozinhos. 

Arranjar um clone para ir no meu lugar aos compromissos. 

Pintar “Guernica”. 

Comprar um armário que tenha uma porta secreta para o reino de Nárnia ou pelo menos para o cabaré da Nega Filomena. 

Juntar lençol, travesseiro, água mineral e livros, e passar cinco semanas num balão. 

Gravar um DVD toda vez que for a uma mesa de bar, vender e ficar rico. 

Arranjar um cachorro que saiba trazer meus chinelos e acender meu cachimbo. 

Tomar remédio para orelha grande. 

Comprar um ringue de boxe, botar na praça e cobrar dez reais por round, luvas incluídas. 

Remexer a casa toda, pra valer, até achar um objeto que, com sorte, eu vou reconhecer quando encontrar. 

Ter mais paciência com os outros. 

Pescar, logo na primeira tentativa, um peixe de 2,750 kg. 

Guardar um grão de arroz dentro de um diamante. 

Instalar na minha sala uma máquina de caldo de cana, um Banco 24 Horas e um telescópio. 

Vender meu cadáver, antecipadamente, a uma Faculdade de Medicina. 

Pegar o Expresso Transiberiano até a última estação e lá decidir se vale a pena voltar. 

Jogar uma partida de xadrez contra o computador e ganhar roubando. 

Localizar a cópia completa de “Sob o Céu Nordestino” que se perdeu em Paris após a morte de Walfredo Rodriguez. 

Pular toda noite o muro de alguma casa e abrir as gaiolas dos passarinhos. 

Atribuir uma letra do alfabeto a vinte e seis objetos aleatórios, e ir anotando as palavras que eles irão formando ao serem vistos no dia a dia. 

Cruzar a Paraíba a pé, da Ponta do Seixas à fronteira com o Ceará. 

Fazer um filme com uma cantoria em tempo real, sem cortes, em plano sequência, dure quantas horas durar. 

Zerar um videogame, não importa qual. 

Percorrer de moto todos os Estados brasileiros. 

Extrair a raiz quadrada da “Mona Lisa”, plantar o resultado no jardim e fazer um suco com a fruta que nascer. 

Montar num tubarão. 

Traduzir um livro meu para o inglês. 

Aprender a dançar tango para o caso de um dia alguém me chamar para ser ator num filme argentino. 

Tatuar no antebraço esquerdo que meu sangue é A-positivo e que sou alérgico a AAS. 

Publicar um poema de Adão Ventura com meu nome e ver quantos anos demora até alguém perceber. 

Assistir um filme no Cine Capitólio e outro no Cine Babilônia. 

Montar uma tapiocaria vendendo tapiocas em todos os sabores com que se vendem pizzas. 

Fazer o check-up que não fiz de novo no ano que passou.






quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

4011) Livros do ano 2 (31.12.2015)



Os dois últimos livros que li em 2015 não poderiam parecer mais diferentes um do outro, mas têm um inquietante detalhe em comum. O penúltimo foi a biografia Trotsky (1986) escrita por Paulo Leminski, e incluída no volume Vida (Ed. Sulina, 1990, ao lado das vidas de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus Cristo). O outro, que estou prefaciando para uma reedição da Alfaguara para este ano, foi A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells. O que os dois têm em comum? O terror da fome.

Leminski evoca, com traços rápidos e vigorosos, a devastação produzida na Rússia pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917. Além dos milhões mortos pela guerra, milhões morreram de inanição nas estepes da futura URSS. E Wells descreve o terrível mês subsequente ao desembarque devastador dos marcianos na Inglaterra. O terror de não ter o que comer, e as coisas que as pessoas roem com sofreguidão para não morrerem.

Quando a civilização colapsa, todo mundo continua precisando comer todo dia. Seguem-se saques, arrombamentos, assaltos, a maioria feita por pessoas que jamais colheriam sem autorização uma goiaba na goiabeira do vizinho. Mas a fome transforma todo mundo, primeiro em bandidos, depois em animais. Tal como acontece em Ensaio sobre a Cegueira (1995, lido em maio) de José Saramago, onde a fome é agravada pela cegueira. Saramago lembra Wells inclusive na ausência de nomes próprios nos seus personagens designados por detalhes (o médico, o clérigo, etc). E na lucidez sobre as coisas de que o ser humano é capaz.

Literatura fantástica? Não tanto quanto a terrível fome que devastou a Itália durante a campanha da FEB na II Guerra, descrita por Boris Schnaiderman em Guerra em Surdina (1964; lido em agosto). A fome dos pracinhas ilhados na neve, mas principalmente a fome da população local, e o modo discreto, tocante, como as jovens italianas se entregavam em troca de algumas latas de conservas, diante da família que fazia que não estava vendo. Uma área cinzenta separando sexo livre, estupro e prostituição, descrita de modo compassivo e honesto pelo autor.

Coisa do passado? Nem tanto, se pensarmos nos condôminos do High Rise (1975, lido em novembro), onde a fome e a sede levam aqueles profissionais liberais da Londres afluente do futuro à prostituição, ao crime, ao canibalismo. Se hoje há pessoas capazes de matar por um celular, o que não farão por um pedaço de comida, quando o possível colapso econômico futuro estancar a produção e comercialização de alimentos? Que pai conseguirá evitar a “necessidade de também ser fera”, quando somente as feras serão capazes de alimentar seus filhotes? (Continua)







terça-feira, 29 de dezembro de 2015

4010) Outros adeuses 2015 (30.12.2015)



Durante décadas de convivência minha com Elba Ramalho, o seu irmão Erácliton era sempre uma das pessoas mais animadas que havia em torno. Tocador de violão, puxador daquelas músicas tiradas “do fundo do baú”, fossem sambas ou forrós. Nas mesas do Refavela, o bar de Bel (em Campina), ou no terraço do apartamento da Lagoa, no Rio, ele era sempre uma risada de alto astral. O imprevisto o colheu ao atravessar uma rua em João Pessoa. Foi a primeira vez que nos fez ficar tristes.

Anabela fugiu jovem de Angola, quando a guerra civil passou o rodo no país. Veio parar no Brasil, morou na Paraíba, radicou-se em Mossoró. Viúva, sua casa reunia quem fazia teatro, literatura, música. Era magra, espigada, sempre com um uísque na mão e um cigarro nos dedos; ria muito, não tinha papas na língua, e com sotaque lusitano carregado não dava bola para a opinião do povo. Nosso último encontro foi numa farra das dez da noite às oito da manhã. Uma cirurgia problemática a levou do nosso mundo, mas não daqui.

A vida é cheia de simetrias. Meu pai era do Recife e veio ter os filhos, e criá-los, em Campina Grande. Seu Geraldo era de Campina e foi ter os seus no Recife. Era comunista da velha guarda (daí ter um filho chamado Lenine), o que significa aquela velha guarda humanista, amante das letras e das artes, para a qual o indivíduo tem uma importância tão grande quanto o coletivo. Grande papo sobre qualquer assunto, com histórias do arco-da-velha sobre uma Campina antiga onde ele e meu pai começaram uma amizade que se prolongo entre mim e seu filho.

Quando comecei a fazer meus primeiros shows musicais entre o Recife e Olinda, no final dos anos 1970, fiquei amigo de uma turma de jovens jornalistas no circuito que cobria do Bar do Ninho à Rua do Hospício. Entre eles reencontrei Juliana Cuentro, que era da antiga rapaziada da Rua Solon de Lucena, em Campina, filha de amigos dos meus pais. Éramos da mesma geração, e ela vibrava tanto com minhas músicas que fez uma das primeiras grandes matérias sobre o Trupizupe, que me deixou cheio de responsabilidades poéticas e com fumaças de cantor de verdade.

O fandom da ficção científica é um feudo de batalhas e disputas constantes, onde as preferências literárias e cinematográficas são defendidas como se fossem outras tantas pátrias ameaçadas pelas hordas bárbaras. Pierluigi Piazzi (ex-radialista, ex-professor de cursinho, fã de “Star Trek”) era exuberante, falador, eloquente na defesa dos autores que admirava e na gozação sobre os que não curtia. Deixou aos fãs de FC (e a dezenas de milhares de ex-alunos paulistanos) a editora Aleph, e mil histórias impagáveis.



4009) A ditadura do normal (29.12.2015)



O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”.  O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.  

Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.

Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço. Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter basicamente à venda.  O totalitarismo exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury “O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.




segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

4008) Adeuses 2015 (27.12.2015)



Amílcar era cineasta e corintiano. Ria de incredulidade quando eu falava dos times por que torço: Treze, Flamengo, Sport, Atlético Mineiro... Para ele, time era paixão, e paixão não pode haver duas. Entre outras coisas em comum, tínhamos o cinema de Roberto Santos, seu mestre. Um dia ele largou São Paulo, perdemos o contato até por Facebook. Só voltei a ter notícias dele quando a doença estava em estágio avançado. Um amigo de sorriso calmo e luminoso, com que compartilhei menos tempo do que pude.

Quando os shows de Elba Ramalho estrondavam no Canecão, com três mil pessoas de pé pulando ao som de ”Caldeirão dos Mitos”, a sanfona estava a cargo daquele paraíba moreno e magrinho que anos atrás tinha sido o esteio melódico e harmônico da banda de Jackson do Pandeiro. Severo ficava às vezes meio deslocado entre aquele grupo de cariocas, meio desconfortável com os figurinos “modernos” que era obrigado a vestir, e nas longas horas de camarim se aproximava de mim para trocar histórias da “Paraíba réa”.

Foram poucos meus encontros com Pipol, cujo nome não sei até hoje, figura querida na contracultura digital paulistana. Foi um dos criadores do websaite Cronópios, onde republicava meus artigos do JPB. Gravou para a web minha palestra sobre Edgar Allan Poe, até hoje um dos meus vídeos mais assistidos. Eu o saudava: “Power to the Pípol!”. Na competitiva São Paulo, ele se destacava pela precisão da ação e pelo alto astral do sorriso, sempre com um bonezinho e um par de óculos jonleno que me lembravam eu mesmo aos 25 anos.

Quando meus pais chegaram a Campina Grande, muito cedo ficaram amigos dos irmãos Félix e Mário Araújo. O primeiro foi morto quando vereador, num crime célebre em 1953. “Seu” Mário era uma espécie de tio a meia distância, morando perto do Ponto 100 Réis. Seus filhos eram quase que meus primos, ele nos dava a todos o mesmo carinho, os mesmos conselhos bem humorados, com seu riso baixo, discreto. Num ambiente carregado como o da política campinense, era referência de elegância, bom senso e bom caráter. Qualidades abstratas que fazem falta, mas nem tanto quando o ser humano concreto.

No Encontro Para a Nova Consciência, Pedro Camargo era o “mestre sem cerimônia”, o apresentador das mesas redondas e dos palestrantes. Mediava conflitos, informava a imprensa, entretinha o público com miniparábolas zen. Ao longo de mais de vinte anos, foram muitas as nossas conversas sobre filosofia, Tarô, cinema carioca, literatura fantástica, política. Dirigiu comédias no cinema, foi editor da revista “Ano Zero”, professor universitário. Um mestre sempre leve, sempre arguto, irônico, compassivo, solidário.




domingo, 27 de dezembro de 2015

4007) Livros do ano 1 (26.12.2015)



Esta é a época em que os críticos fazem listas dos melhores livros do ano, mas os críticos parecem ler somente o que foi lançado agora. Minhas leituras são aleatórias. Tenho muito mais interesse pela literatura de cem anos atrás do que pela atual. Não que uma seja melhor do que a outra. É mera veneta, cacoete mental; é como achar que qualquer rua de Istambul ou Toronto deve ser mais interessante do que a rua aqui do lado. Dito isto, vamos em frente.

Terminei este ano de ler a coletânea Ghost Stories of Henry James. James é um desses casos meio raros de autores de estilo refinado que escreviam caudalosamente. Como produziu esse sujeito! Seus contos de fantasmas são quase todos psicológicos, de clima, ambientação, ilustrações perfeitas para a teoria todoroviana da oscilação entre explicação real e sobrenatural. Vão do gótico puro de “The Romance of Certain Old Clothes” (1868) até o desdobramento físico em “The private life” (1892). Todos são muito bons. Há uma certa falta de surpresa nos desfechos, mas a literatura de James reside mais nos detalhes do que na estrutura, que é clássica, previsível.

Li este ano O Mago (2008) de Fernando Morais, biografia de Paulo Coelho, desmerecida por alguns por ter sido uma biografia “chapa branca” (autorizada). Biografias autorizadas podem ser boas, sim, menos para quem só pensa em escândalo. Morais traça com precisão o histórico do Mago, e mostra, curiosamente, que desde a adolescência ele sonhava em ser o escritor mais bem sucedido do mundo. Eu achava que ele era um roqueiro que virou best-seller meio por acaso. Não era. Foi um projeto profissional que, com desvios inevitáveis pelo temperamento malucão do personagem, e também da época, sofreu mil contratempos, mas se realizou.

Também este ano terminei finalmente de ler The Crying of Lot 49 (1966), o mais curto dos romances de Thomas Pynchon, mas espantosamente concentrado. A prosa de Pynchon é pesadíssima de alusões culturais, mas em seus momentos mais leves é uma delícia de barroquismo pop. Este livro é um clássico das teorias da conspiração romanescas (ou seja, as que não se propõem como verdadeiras), sobre uma organização secreta de correios infiltrada nos EUA.

The third policeman (1967), de Flann O’Brien, é um dos melhores romances absurdistas que já li (há tradução brasileira). Uma sucessão de episódios fantásticos que parecem dar acesso a universos paralelos, ao Além-túmulo ou a delírios do personagem. Há momentos que lembram Alice de Lewis Carroll, outros que lembram Ubik de Philip K. Dick, outros que dão a impressão de um Jorge Luís Borges tentando escrever um romance policial metafísico. (Continua)




4006) Natal 2015 (25.12.2015)




(ilustração: Remedios Varo)

... e a gente arranca ao Tempo mais um ano
como quem despe as roupas da Verdade
e a deixa reluzindo, à claridade
que ela mesma produz, ao ver-se exposta.
A Verdade é mulher, e mulher gosta
de revelar-se aos poucos, mas inteira,
e a vida só é bela e verdadeira
quando exibe seu corpo em sombra e luz,
claro-escuro no ar, que nos seduz
e nos faz mergulhar no seu mistério.

Mas os tempos de hoje... Fala sério!
Será tudo um teatro dadaísta?
E o que terá fumado o roteirista
que escreveu o Brasil de atualmente?
Basta olhar para a comissão de frente
que encabeça a terrível procissão
nas praças e avenidas da nação,
pesadelo hi-tech e surreal.
E quem sabe onde está oculto o Mal
no coração humano? O Sombra sabe.

É Moby Dick o monstro, ou é Ahab?
A Natureza, ou o engenho humano?
Quem tem poder, ao sol de um fim de ano
de erguer a mão e despejar a chuva?
Não existe. O que existe é a saúva
de terno e de gravata, anel no dedo,
que todo dia acorda muito cedo
e rói sem pena o que possível for.
Perdoai (e evitai) o roedor:
está sendo roído, ele também.

Eu só sei que o Natal um dia vem.
Impressionante como ele não falta.
E todo ano a humanidade incauta
ouve a sineta que a faz salivar.
A igreja do vender e do comprar
reza missa após missa o mês inteiro.
Quem tem mais sorte vê raiar janeiro
e recomeça o ciclo, o carrossel,
outro tijolo ao muro de Babel,
outra volta cruel do parafuso.

E a cada livro que eu em vão produzo
feito um mudo pregando no deserto
em linguagem de Libras, fico certo
de que mais vale a dor de estar fazendo
do que a não-dor do não fazer, e entendo
que a resposta virá. Mas não pra mim.
Se assim for, maravilha; e sendo assim
“taca-le pau”, poeta, faz sextilhas.
Imperfeitas ou não, são tuas filhas,
serão um dia o que restou de ti.

Quando meu pai erguia um Bacardi
inebriava o mundo num sorriso,
mandava um chiste, um verso, um improviso...
e esse momento reverbera ainda.
Se o Natal é um dia em que se brinda
e transformam-se em vinho águas passadas,
então que venham renas, rabanadas,
pacumês, espumantes, Concha y Toro!
Gasta logo, se o Tempo é teu tesouro,
a moeda de ouro deste dia.

Que o mundo fosse outro, eu bem queria,
mas aceito este fato consumado,
de vê-lo assim, desnudo, desvendado
pelo excesso de ser que é sua essência.
Se ele um dia notar a minha ausência,
que faça bom proveito destes versos!
Estarão os meus átomos dispersos
sem notar que outra vez bimbalham sinos
e que nascem milhões de outros meninos
neste ciclo-espiral do circo humano...







quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

4005) Os dois filhos (24.12.2015)



Uma família humilde tinha dois filhos, um de quinze e outro de doze anos. O mais velho nasceu de um parto difícil, sobreviveu com sequelas. Precisava de fisioterapias, etc., e se desenvolveu muito lentamente. Passava o dia na cama, falava com dificuldade, e nos fins de semana a família o levava para tomar sol no parque municipal numa cadeira de rodas. Já o garoto mais novo era muito esperto, estudioso, um menino bom que ajudava a cuidar do irmão mais velho. Os dois aliás se gostavam muito, eram unidos, dentro das limitações de linguagem do primeiro.

É quando o pai ganha um dinheiro numa loteria qualquer. Nada que o tornasse milionário; mas de repente ele tinha em mãos muito mais grana do que seria capaz de imaginar. Parentes se reaproximaram do casal, dispostos a ajudar num momento tão delicado. Passada a euforia inicial, todos, em volta da mesa, com lápis e papel, faziam contas e listavam as diferentes maneiras possíveis de aplicar aquela pequena fortuna caída do céu.

Anota daqui, risca dali, ficaram com apenas dois projetos em mãos. Fazendo as contas e as projeções futuras, descobriram que a grana recém-chegada lhes dava a chance de optar entre duas utilizações diferentes. Havia nos EUA um hospital especializado no tipo de problema do garoto mais velho. Com dois anos de tratamento, grande parte dos problemas dele poderiam ser revertidos: ele conseguiria andar, alimentar-se sozinho, falar de maneira inteligível, quem sabe até ser matriculado numa escola especial.

A outra opção era mandar para um curso de dois anos na Europa o garoto mais novo. Estudioso e bom em matemática, ele ganhava todas as competições desse tipo, era saudado como “futuro gênio” pelos professores, e os pais já colecionavam um álbum de matérias de jornal (e DVDs com reportagens de TV) sobre “o Einstein de Vila Junqueira”, como o menino era chamado no bairro onde sempre residiram.

Só que o cálculo era mesmo na ponta do lápis, despesas reduzidas ao mínimo do mínimo. Não dava para cortar aqui-e-ali e realizar os dois projetos. Colocava-se diante dos pais a famosa “escolha de Sofia”. Tentar diminuir o sofrimento e as limitações do menino mais velho, aumentar sua relativa autonomia, aliviar o peso que recairia um dia sobre o mais novo, já que os pais já estavam envelhecidos, cansados, com a saúde meio-lá-meio-cá? Ou explorar o potencial do menino mais novo, podendo inclusive, quem sabe, transformá-lo num fenômeno nacional, o que, a se confirmar essa hipótese, geraria um excesso de renda capaz de a longo prazo, reverter em algum benefício para o menino com problemas? Os pais continuam debatendo. Cartas para a redação.



terça-feira, 22 de dezembro de 2015

4004) Linha de chamar verso (23.12.2015)



(Nei Lopes)

No trabalho da gente, seja ele qual for, a gente cria às vezes um dicionário pessoal para indicar coisas sem nome definido. Na poesia de estrofes rimadas e metrificadas, eu sempre usei, por conta própria, dois conceitos relativos ao improviso com batuque. Tinha o “refrão de chamar verso” e a “linha de chamar verso”.

O refrão de chamar verso é aquele velho esquema de canto com palmas: “Chora bananeira / bananeira chora / chora bananeira / meu amor já foi embora.” Aí alguém dá um passo pro meio da roda, ou (se numa mesa) ergue o braço pedindo a vez, e manda uma quadrinha improvisada, ao fim da qual todos voltam a cantar juntos: “Chora bananeira... (etc)”.

Já a “linha de chamar verso” é como se fosse um mote de uma linha só, mas ao invés de aparecer no fim da estrofe aparece no começo, e o cantor improvisa o restante. A linha-de-chamar-verso mais antiga que conheço é “Lá em cima daquela serra...”  Quantos milhares de quadrinhas não já terão sido escritas ou improvisadas pegando a partir de um início tão promissor?

Em Partido Alto – Samba de Bamba (Pallas, 2005) de Nei Lopes há uma porção de termos para essas linhas. À pág. 107, Nei Lopes explica que muitas das quadras cantadas em partidos altos, seja de memória ou de improviso, se desenvolvem “a partir de um pé-de-cantiga, isto é, de um verso inicial padronizado, bastante conhecido.”  À pág. 139, ele amplia essa definição: “Grande parte das trovas, quadras e outros tipos de estrofes da poesia popular se inicia por versos padronizados através dos quais se propõe e estabelece o tema a ser trovado e cantado. A esses versos-matrizes costuma-se chamar ‘trampolins’, ‘muletas’ (...), ‘pés-de-cantigas’, no dizer de Joaquim Ribeiro (...), ou ‘versos feitos’, segundo Mário de Andrade.” Ou seja, é o mesmo princípio do mote na Cantoria nordestina – só que vem no começo, e não no fim.

Nei Lopes lista alguns desses começos, e mostra com que frequência eles iniciam estrofes em nossa música popular: “Vou-me embora, vou-me embora”, “Minha mãe me deu dinheiro” (no Nordeste usa-se tipo assim: “Minha mãe me dê dinheiro / preu comprar um cinturão / o punhal e a cartucheira / pra brigar mais Lampião”), “Alecrim na beira d’água”, “No tempo em que eu cantava”, “Dizem que cachaça mata”, “Minha mãe sempre me disse”... Eu lembraria outros como “Quando eu vim da minha terra” (resgatado por Paulo Vanzolini em sua “Capoeira do Arnaldo”), “Vou falar pra todo mundo”, etc.

Esse mote inicial (ao invés de mote final) é mais um parentesco entre o partido alto e a cantoria, mostrando que os dois compartilham as mesmas raízes e o mesmo espírito, apenas evoluíram por caminhos diferentes.




segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

4003) Como odiar Lovecraft (22.12.2015)



(ilustração: Selin Arisoy)

H. P. Lovecraft foi um dos escritores mais influentes da literatura de horror, que ele misturou com ficção científica para produzir uma espécie de “horror cósmico”. Ele apregoava ser “um homem do século 18 perdido no insuportável século 20”. Criado com certo luxo até os 14 anos, depois teve que se adaptar a uma vida de penúria financeira, doenças na família, um casamento fugaz, daqueles que nunca poderiam ter dado certo. Era em essência um solteirão calado, cheio de venetas, que gostava de dar longos passeios e de ler alfarrábios antigos. E escrevia longas cartas para colegas escritores que, em muitos casos, nunca veio a conhecer.

A cabeça de Lovecraft, esculpida por Gahan Wilson (famoso pelos seus cartuns de humor negro) tornou-se a materialização do World Fantasy Award, um dos principais troféus anuais da literatura fantástica. A lista de quem já ganhou o troféu é enorme, e inclui autores como Fritz Leiber, Gene Wolfe, Tim Powers, Peter Straub e Jack Vance.

Acontece que Lovecraft tinha uma visão muito peculiar a respeito de outras raças, como os negros e os judeus. Seu aristocratismo pomposo exigia esse tipo de esnobismo, e ele parece ter acreditado, como tantos intelectuais brasileiros da mesma época, que a mistura de raças empobreceria ambas. Vai daí que escritores atuais, informados das idéias racistas de HPL, questionaram o uso de sua imagem no troféu. Como se dissessem: “Esse cara é o modelo que devemos seguir?”.

A substituição da estátua foi anunciada na entrega dos prêmios de 2015. Uma reação imediata foi a de S. T. Joshi, biógrafo de Lovecraft, que devolveu os troféus que já tinha ganho e disse ser tudo aquilo “uma concessão covarde ao pior tipo de atitude politicamente correta”. Eu mesmo fiquei pensando: Quem tem razão? Quem acha que HPL por ser grande escritor já está anistiado? Ou quem acha que não, que preconceitos racistas devem ser sempre denunciados e punidos, mesmo que postumamente?

Leio no fanzine eletrônico Ansible (#341, dezembro 2015) o comentário de Dave Langford: “De qualquer maneira, trata-se do adeus do que é largamente considerado o prêmio mais feio concedido na longa e irregular carreira dos prêmios para literatura de gênero.” A visão de Lovecraft sobre a humanidade é que era feia – ele era um misantropo sem generosidade com os que considerava “inferiores”. Apesar dessa deformação, foi também (como tantas vezes acontece) um grande escritor, no sentido de que produziu uma visão do mundo única, vívida, através de imagens que revelam esse mundo ao leitor. O erro talvez tenha sido terem colado sua imagem pessoal a um prêmio que deveria ser algo neutro, sem viés individualista.




sábado, 19 de dezembro de 2015

4002) Seis lendas urbanas (20.12.2015)



(ilustração: Eleonore Weil)

O Homem Sem Cabeça de Badrajupur, na Índia, é uma entidade misteriosa que aparece nas festas e peregrinações populares. É visto seguindo os cortejos, movimentando-se como uma pessoa normal, mas sua cabeça é cortada à altura do pescoço. As pessoas que o tocam são percorridas por uma espécie de choque elétrico suave e têm a sensação de que sua própria cabeça está começando a desaparecer. Ele se aproveita disto para dançar numa clareira da multidão.

Os Ladrões da Lua. Num povoado do Chile é hábito das famílias sentarem na rua nas noites de lua cheia e inventarem histórias que se passam nessa lua sobre suas cabeças. Inventaram a história de um povoado na lua, assaltado por bandidos perigosos. Inventavam cada ladrão mais perigoso do que o outro. Preocupavam-se tanto com as famílias da lua que deixavam suas portas e janelas mal trancadas, para bom proveito dos meliantes de cá.

O Tonel Rolante do Sêrro (MG). Em noites muito silenciosas ouve-se pelas ruas da cidade o ruído de um tonel de metal, oco, sendo empurrado por cima das pedras do calçamento, às vezes descendo uma ladeira com um clangor infernal, às vezes escalando os paralelepípedos devagar e sempre, como que empurrado por mãos vigorosas. Abrem-se as janelas e ninguém vê nada. Fantasma auditivo.

O Brinquedo do Miúdo é um episódio misterioso que se dá em Coimbra e no Algarve. Um miúdo (um menino) aborda um transeunte numa rua escura e pede que devolva o seu brinquedo, que (segundo ele) a pessoa traz no bolso. Em todos os relatos a pessoa mete a mão no bolso e de fato tira de lá o objeto que o menino lhe pedira: uma gaita, um par de óculos, um confeito, um versinho manuscrito, uma bola de gude, um isqueiro, um soco-inglês... E todas as vezes a criança recebe, agradece e some para sempre.

O Carro Que Não Pega. Uma lenda frequente na Ucrânia, na Rússia, na Letônia, e, curiosamente, também no Estado de Sergipe. Um carro fantasma acorda de repente uma vizinhança inteira, com aquele ruído insano, engasgado, de uma ignição que não pega de jeito nenhum, sendo coagida por uma pessoa que não vai desistir com facilidade. Um engasgo torturante, que até parece vai redundar numa explosão, mas não, fica só taxiando. Para quem dirige, é o mesmo que injetar querosene na veia.

A Ponte Fantasma da Kawa-kahihi, no Havaí, é uma ponte que muda de aspecto: é de madeira, ou de pedra em estilo antigo, ou de ferro fundido, de mármore cheio de ornatos... Ela aparece unindo as margens de um rio ou de um desfiladeiro. É uma ponte sempre diferente, mas tão real quanto qualquer outra até o momento em que o viandante encontra-se lá pela metade, quando então ela some no ar.




4001) A roda gigante (19.12.2015)



Ele estava passando uns dias naquele lugar, a serviço. Era uma cidade pequena mas tinha cinema, tinha um teatro com cartazes anunciando show musicais, e tinha um parque de diversões. Chamar aquilo disso era força de expressão. Tudo bastante precário. Brinquedos enormes, mas muito velhos e desgastados. Na segunda noite ele entrou, pensando somente em fazer algumas fotos com o celular, porque havia uns cartazes e uns ângulos interessantes. Comprou ingresso aqui, cerveja ali, puxou conversa. Na bilheteria viu a morena, a quem chamou brincando de Luluza, ao recolher o troco, e ouviu dela uma resposta que o fez dar uma gargalhada e olhar naqueles olhos pela primeira vez.

Voltou na noite seguinte (o trabalho o ocupava das dez até o anoitecer) e retomou o papo com ela numa brecha entre o fim de uma fila e o começo da próxima. Perguntou: “Parquezinho esquisito, hem?  Por que não botam luzes coloridas, como todo mundo?” Ela de olhos baixos, arrumando notas por ordem de valor: “O dono gosta assim. Tudo preto e branco.”  Ele falou: “Que coisa, hem. E você? Gosta mais de preto e branco ou de colorido?”  Para ele era só um puxa-conversa pra não deixar a peteca cair, manter o timing da simpatia. Teria pegado mal para ela?  Que disse: “Eu danço conforme a música, amorzinho,”. Plantou as mãos na bancada, ergueu os olhos para ele, e abriu um sorriso dentifrício. “Eu sou a esposa dele, e danço a música que ele tocar.” “Oooops,” disse ele, gargalhando, “não se ofenda. Não estou achando feio. Torna-se até uma coisa bastante cult.”

Foi quando ele viu o homem descer da roda gigante, e entrar cambaleando num pequeno chalé de madeira ali perto, passando a menos de cinco metros da bilheteria onde estavam. “Lá vai ele,” disse ela. E depois: “Deixou de beber. Agora ele dá uma volta na roda, desce tonto, e escreve.” “Escreve o que?”  “Romance. Vai dizer que nunca ouviu falar de...” Ele anotou o nome, soletradamente. “E como deixaram ele fazer a cabana dele aqui dentro?”, perguntou, e ela: “Ele é o dono do parque. Ninguém vive de literatura neste país. Quando sobrevive, pode pegar uma cerva e comemorar.” Ele entendeu “uma serva”, gargalhou, fez sinal de positivo, legal.

A outra reportagem, a que o levara ali, foi feita, mas logo em seguida ele entregou as fotos e a história (meio dramatizada, e com certa licença poética) do “Eremita High-Tech”. Não, não houve intenção, houve oportunismo. Ele não podia saber que o eremita pularia do alto da roda apenas três dias depois da reportagem.  Deixou a coisa marinando 48 horas e foi apresentar os pêsames à viúva, perguntar se precisava de alguma coisa. “Música, amorzinho, música”.




quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

4000) Problemas de escritor (18.12.2015)



Carlos Drummond de Andrade publicou em 1967, pela Editora do Autor (Rio), o curioso livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema. Durante anos o poeta arquivou tudo que saía sobre seu poeminha da pedra, fosse a que pretexto fosse, e foi separando tudo em pastas. Os títulos de alguns capítulos dão uma idéia da variedade do material: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Popularidade, mesmo negativa”, “Os amigos da pedra”, “E os inimigos”, etc. Pena que seja meio difícil de obter, e não sei se foi reeditado.

Poucos poemas daquele século provocaram reações tão esperneantes. A pedra de Drummond tirou do sério muitos críticos. Deixaram-se perturbar demais pelo que o próprio autor considerava um poema interessante mas menor, quase uma brincadeira, por que estaria produzindo tanta raiva?

O momento auto-ajuda é você perceber que nem sempre a sua obra que vai ter impacto é sua epopéia de dois mil versos ou sua trilogia que engloba seis gêneros. Às vezes basta um pequeno escândalo estético desse tipo para fazer uma fama. Drummond impressiona pelo modo aparentemente tranquilo e equilibrado como descreve, transcreve e comenta o que disseram a seu respeito. Ele tem o ar kafkeano de um entomólogo examinando a si mesmo. Nesse livro ele republica também o poema em prosa “O Enigma” (Correio da Manhã, 1947; depois em “Novos poemas”, 1946-7), uma clara resposta ao poema da pedra, invertendo apenas seu ponto de vista narrativo.

O bombardeio massacrante dos articulistas que não gostaram da “pedra” é atenuado em parte pelos que a traduziram, a adaptaram, ou lhe deram variadas utilidades a título de homenagem. O poema mais famoso de Drummond virou um meme do seu tempo. Um meme cuja viralidade durou várias décadas e ainda não se esgotou de todo, porque hoje ou amanhã um cartunista do Norte ou um diretor de teatro do Sul vai lançar mão dele para produzir um efeito qualquer.

A pedra no caminho viralizou na administração pública, no esporte, na moda, no rádio; foi vítima de insinuações políticas e era citada nas propagandas. Virou, a julgar pelas centenas de notas e de matérias transcritas por Drummond, uma dessas coisas que você usa sem saber quem inventou e sem ligar a mínima para isso. Poucos poetas que tiveram inclinações modernistas deixaram de fazer algum tipo de paródia, citação ou homenagem a ele. Como se diz da massa de bolo e de alguns clubes de futebol (“quanto mais apanham mais crescem”), Drummond apanhou, certamente preferiria não ter que passar por aquilo, mas como não podia mesmo mudar nada parece que decidiu se divertir um pouco e dar risada de quem dele ria.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

3999) Os estrangeiros (17.12.2015)




Anthony Boucher é um nome familiar a quem conhece a literatura policial e de FC norte-americana de 50 anos atrás. Ele foi uma figura decisiva nos dois gêneros, como autor, editor, crítico, resenhador. Era um escritor católico, com formação latina que lhe permitia traduzir do espanhol e do português para o inglês. Philip K. Dick foi grato a ele pela vida inteira, pelo incentivo que recebeu. Foi ele quem traduziu e publicou (no Mistério Magazine de Ellery Queen) o primeiro conto de Jorge Luís Borges a sair nos EUA.

Entre 1942 e 1947, Boucher manteve uma coluna periódica no San Francisco Chronicle.  Em um artigo de 5 de maio de 1946, ele comenta duas traduções recentes para o inglês: O Homem que Via o Trem Passar de Georges Simenon e O Estrangeiro de Albert Camus (ambos traduzidos por Stuart Gilbert). Diz ele:

“Trata-se em essência da mesma história: a de um homem que não consegue aceitar em seu íntimo as convenções usuais da sociedade, mas apenas deixa-se levar por elas até que um assassinato, cometido quase por acaso, lhe dá a chance de explodir a moldura social”.  Boucher descreve Camus como “um jovem romancista com respeitável estatura filosófica e estética, que é uma das duas figuras-chave do curioso movimento contemporâneo francês do Existencialismo”. O ano era 1946 – ainda não era o Camus do Prêmio Nobel; era apenas mais um jovem escritor botando as unhas de fora.

Boucher lembra: “Camus se dedica à criação de um personagem extraordinário, um caixa de banco na Argélia cujas reações (ou ausência delas) apenas não são aquelas que a sociedade exige. Comentaristas do Existencialismo parecem dar a esse personagem um valor filosófico para além da literatura; mas ao nível do romance propriamente dito, é um retrato espantosamente bem executado de um indiferentista em estado puro.”

De fato, o jeitão à deriva do “estrangeiro” Meursault está somente um degrau acima de um indiferentista total, no caso o escrivão Bartleby, de Melville, que reagia a todos os pedidos para que fizesse não importa o que, dizendo: “Eu preferiria não fazer isto”. Meursault é meio que uma versão pop disso, porque tem namorada, toma cerveja com amigos, se preocupa com isso e com aquilo... Mas é como se a vida dele fosse ligeiramente irreal, sem propósito.

Boucher lembra que Camus trabalhou como leitor na editora Gallimard, que publicou o livro de Simenon em 1938. Não é exagero supor que Camus o leu e que foi um dos policiais “hardboiled” que ele diz ter querido emular quando escreveu O Estrangeiro, quatro anos depois: os livros (provavelmente) de Hammett e Chandler... Talvez se possa colocar Simenon nessa lista.



terça-feira, 15 de dezembro de 2015

3998) "Retrato do Artista Quando Jovem Cão" (16.12.2015)




(Dylan Thomas, jovem)


Quando um cara faz um livro de memórias espera-se que ele comece do começo, passe pelo meio e acabe no fim. Claro que há talentos mais ambiciosos que querem ir além disto, com resultados variados. As memórias de Bob Dylan recolhidas em Crônicas, vol. 1 (2004) começam com a chegada dele em Nova York, fazem um ótimo retrato dos músicos boêmios do Greenwich Village de onde ele se catapultou para o sucesso, e depois começam a ricochetear para a frente e para trás, sem cronologia aparente, apenas uma coisa meio por associação de idéias. O que não é nada mau, se as idéias em si valerem a pena. Ele não diz um “A” sobre a criação dos seus grandes discos. Conta apenas os bastidores de estúdio de Oh, Mercy, álbum talvez imerecedor de tal prioridade.

Por que falei em Dylan? Acho que porque o Dylan que me lembrou esse aí foi o poeta Dylan Thomas com seu Portrait of the Artist as a Young Dog (1940). O título já é uma gréia com o Portrait of the Artist as a Young Man (1916) de Joyce, onde aparece o famoso personagem Stephen Dedalus. Um crítico observa que apesar disso é com Dublinenses (1914), do mesmo Joyce, que o Portrait de Thomas se assemelha. Tendo em mente, claro, que estamos comparando um galês e um irlandês. 

São dez histórias curtas que vão desde retratos da vida em família de um Thomas bem garoto até um Thomas jovem-adulto, trabalhando em redação, fumando, indo aos bordéis. Algumas histórias são narradas por ele na primeira pessoa, outras vezes é na terceira pessoa, referindo-se apenas a “o rapaz”, “o jovem”.  Em momento algum pode-se pensar que isto é uma autobiografia no sentido acadêmico. É uma reescritura livre de memórias compartilhadas mas não unânimes.

Quando Bob Dylan lançou em livro suas crônicas, publiquei uma intitulada “Bob Dylan sabe escrever”, porque achei o livro muito bem escrito, no sentido de que parecia escrito pela mesma pessoa que fez aquelas letras, deu aquelas entrevistas, etc.  Bem, Dylan Thomas também sabe, e os seus contos são até fáceis de ler, comparados aos seus poemas densos, alusivos, cheios de imagens surpreendentes. Mas o olho que capta aqueles parágrafos é o mesmo olho do poema.

São as duas moças que se enfurecem ao descobrir que têm o mesmo namorado, o jovem repórter começando a frequentar os inferninhos onde vão os jornalistas mais velhos, os dois garotos de mochila passando um fim de semana num lugar distante, os escritores amadores discutindo seus manuscritos... O olho do jovem Dylan Thomas era um cão farejador, que não perdia um detalhe, conferia tudo, e só trazia aos pés do leitor aqueles que deixavam implícita toda a verdade do resto.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

3997) Noel Rosa (15.12.2015)




(Noel Rosa, por Thiago Bertoni)


Pois é, Noel Rosa faz 105 anos. Noel e Adoniran Barbosa (ambos de 1910) falavam de um tipo de gente muito específico, o sujeito de certo nível que pelas contingências da vida está precisando dormir num banco de praça, porque foi desalojado do muquifo que habitava de graça. É um momento zen da vida humana. A vida é uma coisa diferente para quem só tinha o direito de se concentrar em duas coisas: o que eu vou comer hoje, e onde vou dormir a próxima noite.

“Eu, Mato Grosso e o Joca” são personagens de um que poderiam estar disputando o banco de praça de “O orvalho vem caindo”. Eu entendia que umas daquelas histórias se passavam em São Paulo, outras no Rio. Mas eu achava que conhecia os ambientes, de tanto ver as chanchadas no cinema. Tinha uma vaga idéia dos principais pontos de referência turística no Rio. Eu era um menino. Então vi numa revista Brasil Enigmista um artigo de alguém destacando e comentando versos de Noel Rosa. Reconheci algumas canções que volta e meia eram ouvidas no rádio. Tudo aquilo era dele.

Noel tem virtudes variadas como letrista, mas eu queria bater na tecla de sempre, a da letra que conta uma historinha. Ou letras que são praticamente um cartum em animação, como “Conversa de Botequim”, “Com que roupa”, “Três apitos”... São gifs animados em várias partes. Não é uma história com começo, meio e fim; é uma sucessão de flashes com parcial passagem de tempo, mais em uns, menos em outros. Flashes poéticos que às vezes contam mais sobre um pedaço da história humana do que um livro inteiro.

O freguês do botequim de Noel é como o Riobaldo de Rosa, uma voz incessante, reiterante, minudente e disposta a refletir em voz alta cada luz que lhe mandar a vida. Ele fala com o garçom como o jagunço falava com “o doutor”. Aliás, essa letra parece mais com o monólogo rosiano Meu tio, o Iauaretê, com Cacá Carvalho. Uma peça com apenas dois atores, um só falando, o outro só escutando, quase sem se mexer. No fim, um deles mata o outro. (No botequim o garçom não fala, mas escapa.)

Noel tinha uma riqueza de rimas que lhe permitia dizer uma coisa inesperada sem perder o fio da meada. Usava em suas letras modos de dizer da época, do momento, como qualquer compositor sempre fez.  Para Noel (imagino) bastava dinheiro no bolso, namoro engatando, uma turma boa com quem sair... Nesse ponto se parece a Castro Alves. O número de obras que cada um deixou é muito grande. O poeta baiano morreu com 24 anos; o compositor carioca com 26.  Me pergunto às vezes as obras que teríamos se Noel Rosa, nascido no mesmo ano que Adoniran Barbosa, tivesse vivido até a mesma idade dele.




sábado, 12 de dezembro de 2015

3996) O eu lírico (13.12.2015)




(ilustração: Mana Neyestani)


Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer. Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.

Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes, um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.

Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada em cartório.

As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas, pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.

As pessoas muitas vezes não percebem que um texto de um desconhecido (mesmo um desconhecido que seja famoso para milhões de pessoas) está ligado a outros contextos e envolve outros sentidos e comenta outros comentários. Enfim. É difícil pegar um jornalista finlandês recém-chegado ao Brasil e tentar explicar para ele nossos 500 anos de história, e a influência que eles têm na atual conjuntura política. Pois bem, o jornalista finlandês é cada um de nós, brasileiros. Não sabemos da missa um terço. O fato de a gente achar que sabe ler não significa que a gente entenda.