sábado, 1 de agosto de 2015

3882) Traduzir e escrever (2.8.2015)



(ilustração: David Vela)

Um autor escreve e revisa seu texto sabendo que é ele a última pessoa na fila. É ele quem dá a última palavra, quem bate o martelo em todas as decisões textuais. Ninguém vai comparar o texto dele com outro. Já um tradutor sempre sabe que o que está botando no papel vai ser lido como O Livro por todos os que não podem ler o original; mas há um contingente capaz de (e às vezes disposto a) esquadrinhar os dois textos frase por frase, just in case.

O tradutor muitas vezes tem um certo entusiasmo pelo original. Por admirá-lo demais quer dar o melhor de si, acha que vai arrasar, e às vezes força a mão. Outras vezes ele não liga muito para aquele autor ou aquele tipo de livro e relaxa, manda um primeiro rascunho e vai cuidar de outra coisa. O tradutor ideal não pode ser nem starry-eyed nem blasé. Traduzir é simples, é um pouco como fazer aquelas manobras aéreas em comemoração de feriado: basta ficar olhando o avião à sua esquerda e pra onde ele for você vai.

A tentação de melhorar o original é grande. Muitas vezes a gente, mesmo quando está apenas lendo, percebe escolhas verbais toscas por parte do autor, ou frases incoerentes, confusas, partes não revisadas que destoam do resto da própria página onde estão. Deve o tradutor corrigir o que o autor não corrigiu, e cuja importância no conjunto não é grande coisa, ou transcrever o que o autor achou satisfatório?

Falo aqui de um tradutor que vai ser pago pelo trabalho, e que aceitou na boa, ou escolheu, o livro que vai traduzir. Ruim é traduzir contra a vontade, ou por um dinheiro irrisório, ou para não perder o emprego ou o cliente. Eu acho que traduzir um texto que se detesta deveria constituir um círculo à parte dentro do Inferno de Dante, não seria nada muito grave, afinal, mas ia ser a última parada antes do começo das torturas físicas.

Toda tradução tem escorregadas, tem topadas, tem quebradas de cara de todos os tamanhos e sob todos os tapetes. Mas mesmo um mico que a gente paga pode ser suplantado quando o artista recupera rápido a firmeza anterior. Traduzir é simples, é como pilotar Fórmula-1, você pode até capotar, desde que caia em pé e continue rodando.

Às vezes é legítimo o tradutor tornar-se amigo do autor morto ou incessível, sempre respeitando o grau de loquacidade ou de casmurrice de cada um. Basta que seja capaz de imaginar esse autor a ponto de trazê-lo à vida, como evocava Roquentin o Marquês de Rollebon. E que ele e o autor tenham batalhas estilísticas brigadas pra valer, e recompensadoras. E que no final o finado autor erga as mãos para o alto e diga: “Tudo bem, bota isso mesmo e vamos em frente, que vem coisa muito mais complicada por aí”.


Um comentário:

  1. Braúlio, dois exemplos de tradutores que melhoraram o original: Machado de Assis traduzindo "Os trabalhadores do mar", de Victor Hugo (o texto de Machado está cheio de tiradas irónicas que não constam do original); Eça de Queirós traduzindo "As minas do Rei Salomão", de Haggard (a tradução tem cerca de duzentas páginas a mais que o original, Eça estava sem dinheiro e sendo paga por folhetim publicado em jornal, espichou e aperfeiçoou tudo personagens e tramas).

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