(ilustração: David Vela)
Um autor escreve e revisa seu texto sabendo que é ele a
última pessoa na fila. É ele quem dá a última palavra, quem bate o martelo em
todas as decisões textuais. Ninguém vai comparar o texto dele com outro. Já um
tradutor sempre sabe que o que está botando no papel vai ser lido como O Livro
por todos os que não podem ler o original; mas há um contingente capaz de (e às
vezes disposto a) esquadrinhar os dois textos frase por frase, just in case.
O tradutor muitas vezes tem um certo entusiasmo pelo
original. Por admirá-lo demais quer dar o melhor de si, acha que vai arrasar, e
às vezes força a mão. Outras vezes ele não liga muito para aquele autor ou
aquele tipo de livro e relaxa, manda um primeiro rascunho e vai cuidar de outra
coisa. O tradutor ideal não pode ser nem starry-eyed nem blasé. Traduzir é
simples, é um pouco como fazer aquelas manobras aéreas em comemoração de
feriado: basta ficar olhando o avião à sua esquerda e pra onde ele for você
vai.
A tentação de melhorar o original é grande. Muitas vezes a
gente, mesmo quando está apenas lendo, percebe escolhas verbais toscas por
parte do autor, ou frases incoerentes, confusas, partes não revisadas que
destoam do resto da própria página onde estão. Deve o tradutor corrigir o que o
autor não corrigiu, e cuja importância no conjunto não é grande coisa, ou
transcrever o que o autor achou satisfatório?
Falo aqui de um tradutor que vai ser pago pelo trabalho, e
que aceitou na boa, ou escolheu, o livro que vai traduzir. Ruim é traduzir
contra a vontade, ou por um dinheiro irrisório, ou para não perder o emprego ou
o cliente. Eu acho que traduzir um texto que se detesta deveria constituir um
círculo à parte dentro do Inferno de Dante, não seria nada muito grave, afinal,
mas ia ser a última parada antes do começo das torturas físicas.
Toda tradução tem escorregadas, tem topadas, tem quebradas
de cara de todos os tamanhos e sob todos os tapetes. Mas mesmo um mico que a
gente paga pode ser suplantado quando o artista recupera rápido a firmeza
anterior. Traduzir é simples, é como pilotar Fórmula-1, você pode até capotar,
desde que caia em pé e continue rodando.
Braúlio, dois exemplos de tradutores que melhoraram o original: Machado de Assis traduzindo "Os trabalhadores do mar", de Victor Hugo (o texto de Machado está cheio de tiradas irónicas que não constam do original); Eça de Queirós traduzindo "As minas do Rei Salomão", de Haggard (a tradução tem cerca de duzentas páginas a mais que o original, Eça estava sem dinheiro e sendo paga por folhetim publicado em jornal, espichou e aperfeiçoou tudo personagens e tramas).
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