“Desde o cair da noite a cidade está cheia de expedições punitivas com homens empunhando barras de ferro, tochas, facões, lanternas e megafones. Incêndios crepitam nos sobrados dos recém-aprisionados. Os grupos gritam palavras de ordem, gritam os slogans que há meses lemos nos panfletos caídos na sarjeta ou distribuídos nos vagões de trem. Os perseguidos são poucos, mas são conhecidos, e em cada bairro as milícias armadas partem direto para o endereço de cada um, como que obedecendo a um planejamento urdido há meses no silêncio das conspirações.
“Caminho pela
rua a passos apressados, porque é assim que todos estão andando, e não quero
chamar a atenção. Não reconheço a rua onde ando; o que vim fazer aqui? Visto
roupas que não são minhas. Não sei por que estou disfarçado. Sinto-me zonzo,
desorientado, não sei ao certo para onde devo ir, sei apenas que preciso andar
depressa. O alarido aumentou, e em cada rua que percorro são mais numerosas as
poças de sangue, os corpos frouxos que pendem amarrados aos postes ou aos
parachoques dos carros. Apresso o passo, vou me esquivando dos grupos com quem
cruzo, os jovens ferozes de peito inflado, os cidadãos de olhos baixos, tensos,
as mulheres dando-se os braços, apressando-se em passinhos miúdos rumo a algum
refúgio possível.
“Disfarçado,
irreconhecível, vejo surgir à frente um portão, que se abre, a mão de um menino
me puxa para dentro de um pomar com árvores copadas, onde um cachorro fareja
meus pés e se afasta. O garoto me conduz por entre os troncos, até um pátio
coberto por um telheiro baixo. Homens de chapelão e de fuzil a tiracolo me
apressam. Outro portão ao fundo. Trancas de ferro são afastadas; empurram-me
com gentileza. Outro cão, maior, se aproxima e esfrega o focinho na minha mão
estendida, parece me reconhecer. O portão se fecha e sigo sozinho por um
corredor abobadado e úmido, desço degraus de pedra, vejo ao longe uma grade de
ferro.
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