terça-feira, 12 de maio de 2015

3812) O que é ser analfabeto (13.5.2015)



Um amigo meu passou uma semana no Japão. “Descobri o que é ser analfabeto,” disse ele. Pensou que tudo lá tinha letreiro em inglês, mas tem muito pouco. “É terrível você ficar olhando aqueles insetozinhos escritos, saber que aquilo significa alguma coisa, mas não ter nenhuma pista. Nunca senti tanta falta das linguagens ideográficas, como os hieróglifos, onde pelo menos a palavra passarinho parece um passarinho”. Ironia maior pelo fato de que o japonês começou como linguagem ideográfica, mas foi se sofisticando. Hoje, alguém pra ler precisa ser alfabetizado.

Viver numa cidade grande e não saber ler é como ser jogado no mar com os braços amarrados. Em “Um Assassino entre Nós" ("A Judgement in Stone", 1977), Ruth Rendell conta a história de uma empregada doméstica inglesa que, por motivos variados, nunca se alfabetizou e chegou à idade adulta sem que ninguém percebesse essa deficiência. Numa infância desorganizada pela guerra, Eunice Parchman trocou várias vezes de escola, interrompeu os estudos, e durante a adolescência seu objetivo não era mais aprender a ler, e sim esconder que não sabia. E (diz a autora) a vantagem de ser analfabeto é que o indivíduo adquire uma excelente memória visual e se força a ser capaz de lembrar de tudo. Povos inteiros fazem isto desde que o mundo é mundo.

Uma velha piada apócrifa diz que Rui Barbosa saiu de casa às pressas, esqueceu os óculos, e ao chegar à rua São Clemente perguntou a um homem humilde, na calçada, que bonde era aquele que estava se aproximando. O homem respondeu: “Desculpe, eu também não sei ler”. Quem não sabe ler geralmente alega “um problema na vista” e pede para alguém lhe repetir em voz alta bilhetes, recados, tudo. Aprende a distinguir os números, acostuma-se a reconhecer palavras nas placas e letreiros públicos, mas não conseguiria reproduzi-las com lápis e papel, se lhe pedissem. Vive (diz Rendell) “numa misteriosa e sombria liberdade feita de sensações, instinto, e ausência da palavra impressa”.

O analfabeto que precisa esconder sua condição vive num estado permanente de alerta, porque de um instante para outro podem tentar obrigá-lo a decifrar alguma coisa; precisa de um repertório permanente de desculpas, evasivas. Acostuma-se a perguntar. Cultiva fama de distraído, esquecido. Conversa pouco, para que lhe façam menos perguntas. Diz Ruth Rendell: “O hábito de se isolar estava entranhado nela; não era mais consciente. Todas as fontes de calor humano e gestos de afeição e de entusiasmo tinham secado. O isolamento era algo natural agora, e ela não entendia que aquilo começara quando ela começou a se afastar da palavra impressa, dos livros, das coisas escritas à mão”. 



2 comentários:

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  2. Em 1970, no Mercado dos Afogados, aqui em Recife, perambulando à toa enquanto minha minha mãe fazia feira, eu, sete anos de idade, óculos de fundo de garrafa, cara de menino inteligente (era mesmo, emburreci muito depois), fui abordado por um "senhor" (ele deveria ser bem mais jovem do que eu hoje) que, me dando um pedaço de papel grosso e um toco de lápis, educadamente, perguntou-me se eu sabia ler e escrever e, tendo eu, cândido e de pronto, timidorgulhosamente, a ele respondido que sabia, começou ele a ditar-me, com uma ansiedade evidente até para uma criança como eu, uma verdadeira carta de amor, ainda que tosca (acho que a melhorei um pouquinho). Descobri então duas coisas extraordinárias: 1) que havia ADULTOS analfabetos; e, 2) que se podia ganhar DINHEIRO escrevendo (mas não muito), porque, finda a carta, ele me deu uma moeda de um cruzeiro com a qual, para a perplexidade da minha mãe, comprei um picolé. Nunca me recuperei desses dois espantos.

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